P&R Fogo em Moria: horror ditado pelo desespero

Dois incêndios destruíram o maior campo de refugiados da Europa. Situado na ilha grega de Lesbos, Moria era, para quem lá vivia, “um inferno”

1 Porque ardeu o campo de Moria?
Há uma investigação em curso para apurar o que esteve na origem de dois incêndios, terça e quarta-feira, que transformaram o acampamento num emaranhado de aço fumegante e lonas derretidas. Mas a pronta reação do Governo grego indicia uma ação deliberada. “Alguns não respeitam o país que os acolhe”, acusou Stelios Petsas, porta-voz do Executivo, terça-feira à noite. “Pensaram que se incendiassem Moria deixariam a ilha de forma indiscriminada. O que quer que tivesse em mente quem ateou os fogos, esqueça-o.” Testemunhos no local relatam situações de tensão entre moradores e as autoridades após a confirmação de 35 casos de covid-19. Com o campo em chamas, os cerca de 13 mil habitantes fugiram com a roupa do corpo e os pertences que os braços conseguiram transportar. Acomodaram-se em bermas de estradas, descampados e estacionamentos de supermercados, à espera de novo abrigo.

2 Qual foi a resposta do Governo grego?
Soado o alarme em Moria, o Governo de Atenas declarou o estado de emergência na ilha de Lesbos e reforçou o dispositivo policial nas ruas, para impedir que os milhares de migrantes que ficaram ao deus-dará se dirigissem para Mitilene, principal cidade da ilha. Em paralelo, quinta-feira, as autoridades concluíram a transferência de 406 menores não-acompanhados de Moria para outro campo, em Salónica (Grécia Continental). Os jovens seguiram em três voos, organizados pela Organização Internacional para as Migrações e pagos pela Comissão Europeia.

3 Porque se diz que Moria é um inferno?
O rótulo foi-lhe colocado por quem lá viveu. Naquele espaço sobrelotado e com deficientes condições de salubridade, foram-se multiplicando alertas de organizações não-governamentais que lá trabalhavam para tragédias iminentes. Não raras vezes, registavam-se confrontos na hora de distribuir comida e, entre as mulheres, havia queixas de assédio na hora de usar os lavabos. Em 2016, o Papa Francisco visitou Moria para alertar para o drama. Outrora um paraíso turístico — como Lampedusa, em Itália —, Lesbos paga hoje uma das maiores faturas da crise migratória.

4 Quando e com que objetivo foi criado?
O campo de Moria abriu portas a 16 de outubro de 2015, pouco mais de um mês após o cadáver de um menino sírio de três anos ter atraído os holofotes mundiais para o cemitério em que se tinha tornado o Mediterrâneo: Alan Kurdi foi encontrado numa praia da Turquia após o naufrágio do barco em que seguia com a família, que tencionava ir para o Canadá. Moria devia funcionar como centro de acolhimento e registo dos migrantes chegados à ilha de Lesbos, que fica muito próxima da costa da Turquia. Administrado pelas autoridades gregas em conjunto com agências da União Europeia, tinha carácter transitório, já que dali estava previsto que os migrantes seguissem para outros países. Projetado para acolher 3 mil pessoas, tinha atualmente quatro vezes mais. A população já tinha transbordado o arame farpado para o olival circundante.

5 Quão responsável é a União Europeia?
“Os acampamentos de migrantes em solo grego são principalmente uma responsabilidade do Governo grego”, afirmou na quinta-feira a comissária europeia para os Assuntos Internos, Ylva Johansson. “O fracasso da Comissão anterior em alcançar uma política europeia comum em matéria de migração e asilo também é parte do problema.” O mea culpa da dirigente europeia alude ao acordo celebrado entre a UE e a Turquia, a 18 de março de 2016, que limitava o afluxo de migrantes e refugiados à Europa, em troca de €6 mil milhões. Por muitos rotulado “acordo da vergonha”, condenou os requerentes de asilo que estavam nos acampamentos gregos a processos burocráticos intermináveis. Este ano, a escalada na guerra da Síria e a crescente hostilidade entre Grécia e Turquia contribuíram para o fim do acordo. Ancara abriu as suas fronteiras aos migrantes a caminho da Europa e Moria transbordou.

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

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