A ascensão ao poder de um ‘self-made man’

Yoshihide Suga é o mais que provável futuro primeiro-ministro do Japão. Eleito esta segunda-feira presidente do Partido Liberal
Democrático (no poder), sujeitar-se-á à votação parlamentar na próxima quarta, para chefiar o Governo. Ao Expresso, um doutorando português na Universidade de Osaca enumera os principais desafios do novo governante

O Japão virou a página da era Shinzo Abe — o nipónico que durante mais tempo chefiou o Governo do país (mais de oito anos) — e, esta
segunda-feira, encarregou um novo escriba de redigir os próximos capítulos da sua história. Yoshihide Suga, de 71 anos, foi eleito
presidente do Partido Liberal Democrático (PLD, conservador), a formação política que governou o país ao longo de 60 dos últimos 65 anos.

Na próxima quarta-feira, o seu nome será votado para o cargo de primeiro-ministro, numa sessão extraordinária da Dieta, o Parlamento japonês. Será uma mera formalidade, sem margem para grandes surpresas, já que o PLD controla quer a Câmara dos Conselheiros (alta) quer a dos Representantes (baixa).

Suga ficará então encarregue de completar o mandato de Abe — que se demitiu em virtude do agravamento de uma colite ulcerosa —, que deveria terminar em setembro de 2021.

Nascido a 6 de dezembro de 1948, numa localidade que é hoje Yuzawa, no seio de uma família de plantadores de morangos, Suga chega ao cargo após quase oito anos como secretário-geral do Conselho de Ministros, um recorde na história do país, que o tornou fiel braço-direito de Shinzo Abe.

Presidência e assuntos parlamentares

Pensando na hierarquia política portuguesa, “creio que a comparação mais adequada talvez seja a da função de ministro da Presidência ou, a outro nível, de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares”, explica ao Expresso o investigador César Rodrigues, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Osaca.

No Japão, o secretário-geral do Conselho de Ministros “é responsável por coordenar políticas do Governo entre os vários ministérios, efetuar negociações dentro do Governo, estabelecer a ligação entre o primeiro-ministro e o seu partido, gerir crises, entre outras funções. Também realiza conferências de imprensa regulares, atuando como porta-voz do Governo”.

Essa omnipresença nos corredores do poder conferiu favoritismo a Suga entre os militantes do PLD. De igual forma, a estreita colaboração com Shinzo Abe leva César Rodrigues a prever que “o mais provável é que a liderança de Suga seja de continuidade”.

Na leitura do académico português, três motivos potenciam essa tendência. “Em primeiro lugar, a política japonesa é tipicamente caracterizada por mudanças lentas, sistémicas e incrementais. Quando há mudanças profundas, normalmente não são abruptas e resultam de um processo demorado de harmonização dos vários interesses estabelecidos.”

Em segundo, “o PLD é a força política do status quo, tendo governando quase ininterruptamente no período do pós-guerra. Isso também contribui para um certo padrão de continuidade”. E por último, “Suga pertenceu durante muitos anos ao círculo próximo de Abe, tendo sido nos últimos tempos apresentado — inclusive pelo próprio — como um candidato capaz de dar continuidade à sua governação, com quem partilha o essencial da visão política”.

Apesar de toda a experiência acumulada em matéria político-partidária, a sua envergadura ao nível de política externa é uma incógnita. “Existe uma perceção geral de dúvida em relação à capacidade de Suga em lidar com política internacional”, diz o académico Rodrigues.

Entre as frentes que enfrentará estão a gestão da aliança com os Estados Unidos face às crescentes tensões na região, as disputas territoriais com os vizinhos (em especial China, Rússia e Coreia do Sul), os riscos inerentes aos programas nuclear e de mísseis da Coreia do Norte e ainda a questão dos japoneses raptados e levados para este último país há cerca de 40 anos.

Memos carisma, mais pragmatismo

Paralelamente, “existem algumas distinções entre Abe e Suga que se podem traduzir em diferenças na agenda política e no modo de governar”. Formado em Direito, em 1973, pela Universidade Hosei (instituição privada em Tóquio), e eleito deputado pela primeira vez em 1996, “Suga é retratado como um self-made man, de estilo político menos carismático mas mais pragmático, sendo também conhecido pela sua capacidade de controlo sobre os burocratas”.

Outra distinção importante, refere César Rodrigues, prende-se com a questão da revisão constitucional. Era uma bandeira de Abe, que desejava alterar a lei fundamental pacifista, imposta pelos EUA após o fim da II Guerra Mundial, para que o Japão pudesse reforçar as suas Forças Armadas. Para Suga, esta “não parece ser uma prioridade de monta”.

Yoshihide Suga herda o poder numa altura em que, como todo o mundo, o Japão está a braços com a pandemia de covid-19. Apesar da sua proximidade geográfica à China — onde primeiro surgiu o novo coronavírus —, este país com mais de 125 milhões de habitantes não é dos mais fustigados. Até esta segunda￾ feira, o Japão tinha declarado 75.909 casos positivos e 1453 mortos (mais casos mas menos mortos do que em Portugal).

O novo primeiro-ministro recebe ainda o quebra-cabeças que será organizar os Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021 — ou ter de lidar com grandes custos políticos decorrentes de um eventual cancelamento —, adiados este ano em virtude do contexto pandémico. Rodrigues junta a estes dois “desafios imediatos” um terceiro. “Terá também de consolidar a sua posição política, designadamente em relação a opositores dentro do partido.”

Vitória expressiva

Na corrida à liderança do PLD, Suga enfrentou dois adversários: Fumio Kishida, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, e Shigeru Ishiba, ex-ministro da Defesa. Este último é visto como arquirrival partidário de Abe e — diziam as sondagens — o preferido dos japoneses para a che8a do Governo. Suga recolheu 377 votos (70%), num universo de 534 eleitores. Em tempos de pandemia, o PLD, que tem cerca de um milhão de militantes, simplificou o processo de escolha, limitando-o à vontade de 393 deputados e 141 delegados.

Paralelamente aos “desafios imediatos”, Suga terá pela frente “desafios estruturais”, acrescenta o académico português. Entre eles estão “a tarefa de revitalizar a economia e prosseguir com a ‘Abenomics’, a estratégia económica de Shinzo Abe delineada há quase dez anos [que conjugava flexibilização monetária, estímulos fiscais e reformas estruturais] e ainda não totalmente concretizada”.

Outro grande desafio é “o problema demográfico do Japão, marcado pelo rápido envelhecimento e retração da população, que requer respostas políticas de fundo a fim de inverter a tendência atual”.

Suga é casado e pai de três rapazes. Segundo a publicação “Nikkei Asian Review”, tem uma fraqueza por panquecas, vício que tenta compensar com a prática diária de exercício: 100 abdominais e 40 minutos de caminhada de manhã e mais 100 abdominais à noite. No seu gabinete de secretário-geral do Conselho de Ministros, tem um quadro de caligrafia japonesa onde se lê: “Onde há vontade, há um caminho”. Um lema do passado que vai querer que se perpetue no futuro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

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