Incêndio no campo de Moria. “Há 13 mil pessoas nas ruas. Estamos à espera que o Governo diga onde vão passar a noite”

Um responsável de uma ONG grega que trabalha na ilha de Lesbos relata ao Expresso o que esteve na origem do incêndio que destruiu parte do maior campo de refugiados da Grécia

Moria era uma tragédia anunciada. “Agora aconteceu este incêndio, mas as razões que levaram a isto duram há muitos meses”, diz ao Expresso Mixalis Aivaliotis, responsável da organização não governamental grega Stand by me Lesvos. “Já sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, isto ia acontecer e fartámo-nos de dar o alerta. Mas ninguém se importou.”

Aquele que é o maior campo de refugiados da Grécia — um dos países mais expostos ao drama dos refugiados que tentam alcançar a Europa — ardeu parcialmente depois de um fogo ter deflagrado às primeiras horas da madrugada desta quarta-feira. “O campo não ficou totalmente destruído”, diz Mixalis Aivaliotis, “mas cerca de 35% ficou inabitável.”

No campo de refugiados de Moria, montado na ilha de Lesbos, viviam cerca de 13 mil pessoas, num espaço inicialmente delineado para acolher 2800 candidatos a de asilo, em situação transitória.

Umas diretamente afetadas pelo incêndio, outras tomadas pelo pânico, todas fugiram para fora do campo durante a noite, mal as chamas começaram a iluminar a escuridão da noite. Andam neste momento ao deus-dará.

“Há cerca de 13 mil pessoas que fugiram do campo, por causa do incêndio, e que agora estão nas ruas”, diz este grego, que vive em Mytilene, capital da ilha de Lesbos. “Estamos à espera que o Governo grego decida onde é que estas pessoas vão passar a noite.”

Mixalis explica que o incêndio começou porque “há pessoas com medo. Há 35 pessoas infetadas com o coronavírus, ficaram com medo [por terem de ir para um centro de isolamento] e atearam o fogo”, que consumiu partes do campo e do olival circundante.

“Isto aconteceu devido às más condições em que se vive dentro do campo e ao aparecimento do problema do coronavírus”, diz o membro da Stand by me Lesvos. Esta organização, fundada em 2017, é dinamizada por professores e comerciantes locais e visa apoiar os candidatos a asilo em termos educativos para facilitar a sua integração.

“A questão dos refugiados não é um problema grego, é um problema europeu”, diz Mixalis Aivaliotis. “Os países têm de conversar e resolver o problema. A União Europeia tem de fazer alguma coisa.”

(FOTO Antes viviam em tendas precárias, agora nem essas têm para os proteger, após um incêndio devastar parte do campo de Moria ANGELOS TZORTZINIS / AFP / Getty Images)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Washington, Louisville, Portland, Rochester… Não se vê o fim dos protestos

Várias cidades norte-americanas continuam tomadas por protestos contra a violência policial que visa os negros de uma forma particular. Começaram com o caso de George Floyd e, pelo caminho, foram adicionando os nomes de outras vítimas

A menos de dois meses de umas eleições presidenciais que se adivinham polémicas e tensas, as ruas dos Estados Unidos não dão sinais de acalmia. Nos últimos dias, vários protestos dinamizados pelo movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) saíram às ruas de várias cidades norte-americanas para repetir até à exaustão slogans de protesto contra a violência policial que visa os negros de forma particular e os nomes de vítimas.

Na capital do país, Washington DC, realizaram-se no sábado marchas e vigílias para exigir justiça para Deon Kay, um afroamericano de 18 anos mortalmente baleado no peito, na quarta-feira, quando fugia da polícia armado. A polícia disse ter disparado antes de o jovem largar a arma, que seria encontrada a 30 metros do local onde Kay tombou.

Em Louisville, estado do Kentucky, o nome mais invocado pelos manifestantes foi o de Breonna Taylor, uma negra de 26 anos morta pela polícia no seu apartamento na própria cidade, em março. Centenas de pessoas tentaram chamar a atenção para o problema concentrando-se antes da realização do Kentucky Derby, uma tradicional competição hípica, vestidos com fardas e armados. A tensão subiu quando o grupo ficou frente a frente com uma milícia armada de direita.

A indignação está igualmente ao rubro em Rochester, no estado de Nova Iorque. Sete polícias foram suspensos na quinta-feira passada pela participação na detenção violenta do afroamericano Daniel Prude, que levaria à sua morte, dias depois.

O caso aconteceu em março, mas os agentes apenas foram detidos um dia após os advogados da família terem divulgado as imagens da detenção captadas pela própria polícia, onde se vê os agentes a taparem a cabeça do homem com um capuz quando já estava no chão.

Nem sempre os protestos são pacíficos, como muitas vezes anunciados. Em Portland, no estado do Oregon, a marcha prevista para este sábado transformou-se numa batalha campal. Manifestantes arremessaram coquetéis molotov contra a polícia. Esta considerou que a manifestação “não autorizada” transformou-se num “motim” e respondeu com gás lacrimogéneo e outras munições “não letais”.

Esta revolta generalizada leva já 100 dias nas ruas. Começou na sequência do assassínio de George Floyd, sufocado pelo joelho de um polícia, a 25 de maio, em Minneapolis, e vai sendo alimentada por outros casos tornados públicos.

O último destes casos aconteceu a 23 de agosto e envolveu o afroamericano Jacob Blake, baleado sete vezes nas costas, pela polícia, em Kenosha, estado do Wisconsin. Na terça-feira passada, o Presidente Donald Trump visitou a cidade e atribuiu os protestos à esquerda radical e ao “terrorismo doméstico”.

Na quinta-feira, um estudo elaborado pelo US Crisis Project revelou que 93% dos protestos realizados desde a morte de George Floyd foram pacíficos e não causaram destruição. Uma conclusão que contraria diretamente a visão dos acontecimentos expressa pelo Presidente do país.

(FOTO Detenção de uma manifestante no exterior do edifício da polícia CARLOS BARRIA / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Portland continua a ferro e fogo, 100 dias após o início dos protestos

Começaram após o assassínio de George Floyd, o negro asfixiado pelo joelho de um polícia branco, e foram sendo alimentados por outros casos de violência policial e as desigualdades raciais. Os protestos na cidade norte-americana de Portland, levam já 100 dias nas ruas. A efeméride foi assinalada no sábado à noite com uma nova jornada de contestação

Investida policial numa rua de Portland CARLOS BARRIA / REUTERS
Detenção de uma manifestante no exterior do edifício da polícia CARLOS BARRIA / REUTERS
Batalha campal entre polícias e manifestantes CARLOS BARRIA / REUTERS
Um frente a frente que dura há 100 dias CAITLIN OCHS / REUTERS
Um manifestante ferido é levado pela polícia CARLOS BARRIA / REUTERS
Apreensão dentro de uma casa em relação ao que se passa nas ruas CARLOS BARRIA / REUTERS
Os protestos intensificam-se durante a noite CARLOS BARRIA / REUTERS
Um manifestante com dificuldade em respirar, após inalar gás lacrimogéneo CAITLIN OCHS / REUTERS
Socorro a um manifestante atingido por um cocktail molotov CAITLIN OCHS / REUTERS
Desespero e impotência no rosto desta manifestante solitária CARLOS BARRIA / REUTERS
Manifestantes disparam artefactos pirotécnicos para assinalar o 100º dia de protestos CAITLIN OCHS / REUTERS
A aparente serenidade de quem acha que está do lado certo do problema CARLOS BARRIA / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Um mês depois das explosões no porto, Beirute reergue-se “com muita dor”

Uma portuguesa que ficou ferida e desalojada descreve ao Expresso como recupera a capital libanesa. “Eu e muita gente estamos um bocado sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir”

Um mês após a grande explosão no porto de Beirute, a capital do Líbano está transformada num enorme estaleiro. Ao som dos vidros partidos, característico dos dias que se seguiram ao rebentamento, que não deixou janela intacta na cidade, sucede-se o barulho das máquinas de construção.

“Neste momento há muito barulho na cidade, por causa das obras”, descreve ao Expresso Marta Abrantes Mendes, portuguesa de 41 anos que ficou ferida na explosão. “Quanto mais perto do porto, mais estruturais são as obras. Na zona onde estou agora, os estragos são sobretudo ao nível de portas e janelas.”

A casa onde Marta vivia, no bairro de Ashrafiyah, ficou inabitável. Nos dias seguintes à explosão, com ferimentos no corpo, foi acolhida por um casal amigo, na zona de Hamra. Há quase três semanas, mudou-se para casa de outra amiga, que também sofreu estragos.

“A minha amiga decidiu viajar. Estou em regime de house-sitting, a abrir a porta, a acompanhar as obras, a trazer flores, a dar um jeitinho à casa”, diz. “Eu e muita gente estamos sem poiso, dormimos numa casa, depois vamos a outra, andamos sempre de um lado para o outro porque ainda há muito por reconstruir.” Estima-se que 300 mil pessoas tenham ficado desalojadas por causa da explosão de 4 de agosto.

Um grande nível de destruição

Com a vida de muitos habitantes virada do avesso, aos poucos, Beirute reergue-se. “Com muita dor”, acrescenta Marta. “Nos dias seguintes à explosão, houve uma mobilização enorme da sociedade civil, muitos voluntários, as pessoas uniram-se muito, sobretudo jovens, que se dirigiram às zonas mais afetadas e ajudaram na recolha do lixo, dos detritos.”

“Isso é fantástico”, continua, “mas, por outro lado, expôs as pessoas a um grande nível de destruição. Estes jovens já nasceram depois da guerra civil, ou têm pouca memória dela. Em muitas destas zonas havia restos mortais. Foi uma constatação muito dura da realidade.”

A 24 de agosto, no Twitter, a jornalista Rania Abouzeid, que vive em Beirute, denunciou um entrave à tarefa da reconstrução e, implicitamente, do funcionamento do país. “A arquidiocese maronita de Beirute está a substituir janelas de graça — mas apenas para maronitas em áreas afetadas pela explosão, e outros grupos religiosos estão a fazer a mesma coisa. E então as pessoas que simplesmente se identificam como libaneses e rejeitam rótulos sectários? Temos de pagar. O Líbano não é um país para laicos.”

Marta diz não ter reparado neste tipo de ajuda sectária. “Para ser honesta não. É óbvio que vai sempre haver a história da ajuda que é canalizada por um cristão para outro cristão. Mas acho que houve muitos mais exemplos de uma solidariedade que aconteceu com base no sofrimento da pessoa e não com base religiosa. Vi de tudo, estrangeiros, emigrantes, refugiados, toda a gente a ajudar. Até as senhoras da Etiópia…”

As mulheres a que se refere são centenas de etíopes que emigraram para o Líbano para trabalharem como empregadas domésticas e que, neste contexto de crise e pandemia, foram abandonadas pelos seus empregadores e ficaram sem meios para regressarem ao seu país de origem. Um drama paralelo a muitos que o Líbano enfrenta.

Esta sexta-feira, num artigo de balanço sobre um mês após a tragédia, o jornal libanês “L’Orient-Le Jour” escreve: “Um mês após o cataclismo, reina o caos na gestão da ajuda. Muitos moradores e comerciantes da capital estão a lutar para fazerem reparações e lamentam a ausência do Estado no local”.

Fortemente pressionadas, pelas ruas e por parceiros internacionais para realizarem reformas e se credibilizarem, dentro e fora de portas, as autoridades libanesas nomearam, segunda-feira, um novo primeiro-ministro. Mustapha Adib, de 48 anos, era até agora embaixador libanês na Alemanha. No próprio dia em que assumiu o cargo, visitou a zona de Gemmayzeh, fortemente devastada pela explosão.

“A situação política é o assunto mais explosivo — enfim, a comparação é má, mas é verdade —, é o mais preocupante”, diz a portuguesa, natural da Costa de Caparica. Licenciada em Relações Internacionais, já trabalhou durante anos para o Comité Internacional da Cruz Vermelha.

“Neste momento, preocupam-me muito mais as tensões internas e a falta de gestão delas. A situação pode derrapar muito rapidamente, não diria para uma guerra civil, mas uma guerra civil também não acontece de um momento para o outro, um fator leva ao outro e assim sucessivamente. Já vivi na Síria, onde toda a gente viu isso acontecer.” No rosto dos locais, a portuguesa diz sentir nervosismo.

Que alternativa ao sistema confessional?

O sistema confessional que tem governado o Líbano desde 1943, assente numa divisão do poder por confissões religiosas segundo um critério de representatividade demográfica, está sob fogo. “Qual é a alternativa?”, questiona-se Marta. “Não há resposta para esta questão. As pessoas querem um fim, mas a alternativa não foi ainda articulada. Faltam debates e discussões para averiguar que outras possibilidades existem.”

Marta foi um dos quase 6000 feridos das explosões — morreram pelo menos 191 pessoas. “Os meus ferimentos estão praticamente todos sarados, já não preciso de ir ao hospital. Fui sempre muito bem atendida, acho que houve uma espécie de pudor em relação aos feridos estrangeiros, foram extra delicados”, recorda. “Fico com algumas cicatrizes, mas isso é o menos.”

(FOTO Destruição provocada pela explosão no porto de Beirute MEHDI SHOJAEIAN / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

No Líbano, o sectarismo político também entra nos campos de futebol

Num país pequeno e tão fragmentado em termos religiosos como é o Líbano, o futebol não escapa à rivalidade entre fações. Nos últimos anos, o clube dominante é apoiado pela comunidade xiita e pelo Hezbollah

Futebol de rua em Beirute por entre a destruição causada pelas explosões no porto, que devastaram parte da capital do Líbano, a 4 de agosto AFP / GETTY IMAGES

Num dos raros textos que dedicou ao desporto, George Orwell não foi brando nas palavras. “O desporto à séria não tem nada que ver com jogo limpo. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à arrogância, ao desrespeito por todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência: por outras palavras, é a guerra sem o tiroteio”, escreveu o escritor inglês num artigo intitulado “O espírito desportivo”.

Publicado no semanário “Tribune” em dezembro de 1945, o texto foi escrito na sequência de uma digressão a Inglaterra da equipa de futebol do Dínamo de Moscovo. A Segunda Guerra Mundial terminara, havia feridas abertas e amizades por consolidar. Dentro das quatro linhas, o périplo saldou-se por ‘um passeio’ dos soviéticos, que saíram invictos da ‘pátria do futebol’. “Se uma visita como esta teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas, só pode ter sido torná-las um pouco piores do que já eram”, concluiu Orwell.

Num artigo de 2011, Danyel Reiche, estudioso do desporto em contexto político, recuperou a tese de Orwell para descrever o panorama desportivo libanês. “Os clubes desportivos profissionais desempenham um papel único no sistema sectário libanês. Não há outro sector com tanta competição, não só dentro das fações, como acontece na política, mas também entre fações. Não há outro campo com tanto confronto direto entre os diferentes grupos sectários e políticos como o desporto. No Líbano, o desporto pode ser descrito usando uma citação de George Orwell: é ‘a guerra sem o tiroteio’.”

A tese central deste professor da Universidade Americana de Beirute é a de que no Líbano o desporto é usado para dividir (ainda mais) a sociedade. O Expresso perguntou-lhe se no atual contexto de crise generalizada, em que o sectarismo é apontado como estando na origem da fragilidade do país, o desporto — e o futebol em particular — pode contribuir para a unidade nacional.

“A situação no Líbano é dramática: a crise económica, a covid-19 e a recente explosão [no porto de Beirute, a 4 de agosto]. Acredito fortemente que o futebol (e também o basquetebol, que é muito popular no país) tem potencial para contribuir para a união. Se o Líbano se qualificar pela primeira vez para um Campeonato do Mundo, em 2022, isso pode dar alguma esperança às pessoas nestes tempos difíceis”, diz o coautor do livro “Sport, Politics, and Society in the Middle East”, de 2019.

Orgulho na seleção

“A seleção nacional é fonte de orgulho para os libaneses e até um sinal do potencial para uma comunidade libanesa unida”, acrescenta ao Expresso Yehuda Blanga, professor na Universidade Bar-Ilan (Israel).

Em novembro passado, em plena Revolução de Outubro, como os libaneses chamam aos grandes protestos antigovernamentais só interrompidos pela pandemia, a seleção libanesa recebeu a Coreia do Sul, de Paulo Bento (dia 14), e a Coreia do Norte (19) em jogos à porta fechada por receio de contágio dos protestos às bancadas do Estádio Camille Chamoun.

Ao estilo de uma trégua, a Praça dos Mártires, principal centro das manifestações, fez uma pausa nas reivindicações para assistir às partidas.

Expectativa e sofrimento na Praça dos Mártires, em Beirute, durante o jogo de futebol entre as seleções do Líbano e da Coreia do Norte, a 19 de novembro ANDRES MARTINEZ CASARES / REUTERS

Com 18 fações religiosas oficialmente reconhecidas, o Líbano é o protótipo de um Estado confessional, onde o poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades consoante o seu peso demográfico. “A maioria dos clubes de futebol está associada a diferentes grupos sectários. Há clubes sunitas, xiitas, drusos e cristãos. Poucos são neutros, só encontrei dois”, diz Yehuda Blanga.

O principal campeonato é disputado por 12 equipas. Todas já sentiram o sabor de ser campeão mas, como em Portugal, há “três grandes” que se destacam. O Ansar, o mais vitorioso (13 campeonatos) e dominador entre o fim da guerra civil e o início do século XXI, é popular entre os sunitas.

O Nejmeh é o clube com mais adeptos, entre sunitas, xiitas, drusos e arménios. Fundado em 1945, foi o primeiro clube não-cristão. Em 2003, foi comprado pela família Hariri (muçulmana sunita) que nos últimos 20 anos já contribuiu com dois primeiros-ministros: Saad, que se demitiu em janeiro na sequência das manifestações, e o seu pai, Rafiq, assassinado em 2005, que dá nome ao estádio do Nejmeh.

Grande rival do Nejmeh, o Ahed é o campeão em título. Preferido dos xiitas, foi fundado pelo movimento islamita Hezbollah no início deste século. É o clube dominador da última década. Em 2019, tornou-se a primeira equipa libanesa a vencer uma competição internacional, a Taça da Confederação Asiática de Futebol.

A ascensão do Ahed tirou do pódio o Homenetmen, fundado por arménios, comunidade que dominou o futebol libanês nas décadas de 1940 a 1960.

Euforia entre jogadores e “staff” da equipa libanesa do Ahed, após a conquista da Taça da Confederação Asiática de Futebol, a 4 de novembro passado, em Kuala Lumpur. O amarelo e verde dos equipamentos é o mesmo da bandeira do Hezbollah MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES

Falta de profissionalismo

“O problema não é tanto uma subordinação sectária, como é política. A maioria das equipas está relacionada com partidos políticos por vários motivos”, explica ao Expresso o jornalista desportivo libanês Rawad Mezher. “Uma das razões mais importantes prende-se com a falta de profissionalismo ao nível da gestão desportiva, o que se traduz num problema para garantir orçamentos.”

Num país com sensivelmente o dobro do tamanho do Algarve e cerca de quatro milhões de habitantes (excetuando os refugiados), as receitas provenientes da bilheteira, merchandising, publicidade e direitos televisivos são insuficientes para assegurar o concurso de jogadores talentosos. A isto acresce a instabilidade que, de tempos a tempos, paralisa o país. Entre 2006 e 2010, a presença de adeptos nos estádios foi interdita após episódios de violência sectária entre apoiantes de vários clubes dentro e fora dos estádios.

Este panorama torna os clubes permeáveis a quem está disposto a injetar dinheiro em nome de interesses próprios e na expectativa de total lealdade. Não raras vezes, as cores do clube são as de partidos, nos estádios há grandes fotografias de políticos e os seus nomes são invocados nos cânticos das claques. Nos seus primeiros anos de vida, o patrocinador das camisolas do Ahed era a Al-Manar, televisão por satélite do Hezbollah.

A pandemia de covid-19 não para o futebol de rua, em Beirute, junto ao Estádio Camille Chamoun. E as máscaras não atrapalham GETTY IMAGES

Estas especificidades tornam o mercado libanês pouco atrativo para os investidores estrangeiros. Danyel Reiche recorda que, há uns anos, a Coca-Cola demonstrou interesse em financiar um clube libanês. Para evitar associações sectárias e ser acusada de favoritismo, acabou por patrocinar… três equipas: uma sunita, outra xiita e uma terceira cristã.

A 6 de abril de 1975, quando o Líbano estava prestes a implodir numa guerra civil que duraria 15 anos, a chegada a Beirute de Pelé parou o país e apartou as tensões. “Pelé veio jogar pelo Nejmeh um amigável com uma equipa de estrelas do campeonato libanês. O estádio encheu-se com 40 mil pessoas”, diz Yehuda Blanga.

“Os anos de 1974 e 1975 são considerados os mais importantes do futebol libanês, por dois acontecimentos importantes: a vitória do Nejmah sobre o campeão soviético, o Ararat Yerevan, e a visita da estrela brasileira.” Há mesmo quem defenda que a presença de Pelé no Líbano adiou o início da guerra civil, que começaria uma semana depois.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui