Adeus a um dos símbolos da Revolução: Cuba prepara-se para acabar com a caderneta de racionamento

Faz parte dos domicílios cubanos há quase 60 anos, mas está de saída. O pequeno “caderno de abastecimento”, com que os cidadãos adquirem produtos básicos a preços subsidiados, tem fim anunciado. Um economista cubano explica ao Expresso qual parece ser a futura estratégia do regime de Havana: subsidiar pessoas e não produtos

Ultrapassada a era dos Castro, Cuba continua a trilhar o caminho da mudança. Sem data concreta na agenda, as autoridades de Havana preparam-se para acabar com um dos principais símbolos da Revolução comunista de 1959 — a libreta de abastecimiento.

Este pequeno caderno, que nas últimas décadas é presença constante nas casas cubanas, garante a cada família o acesso a um cabaz básico de produtos subsidiados pelo Estado, a esmagadora maioria deles importada.

“O caderno de abastecimento foi criado em 1962, dura há muito tempo. No princípio, foi uma coisa justa e creio que sim, ajudou a distribuir entre todos os produtos que o Estado podia produzir ou importava”, explica ao Expresso o economista cubano Omar Everleny. “Mas na realidade é um símbolo da escassez do Estado, que teve de subsidiar os produtos que ali se vendem, durante muito tempo.”

Na lista de produtos comparticipados há arroz, ovos, açúcar, frango, massa, sal, azeite, café, leite, pão, dietas especiais para crianças, grávidas e doentes. Estima-se que o Estado cubano gaste anualmente cerca de 1000 milhões de dólares (850 milhões de euros) com este sistema, no qual estão inscritas quase quatro milhões de famílias, e que já não colhe a unanimidade de outros tempos.

À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento
À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

“Hoje a libreta é também um símbolo de desigualdade, já que se entrega o mesmo a um aposentado do Estado, com poucos rendimentos, e a uma pessoa que tem um negócio e vai de férias para o estrangeiro”, comenta Everleny, antigo professor catedrático na Universidade de Havana. “Por isso, acredito que o Estado passe a uma fase em que prefira subsidiar pessoas e não produtos.”

Durante a presidência de Raúl Castro (2008-2018), o irmão de Fidel qualificou o mecanismo de obsoleto. Para reduzir subsídios, cortou alguns artigos do cabaz básico — batata, grão-de-bico, cigarros, charutos, sabonetes e pasta dos dentes —, que passaram a ser vendidos apenas no mercado livre. Raúl considerava que o mecanismo, “com os anos, tornou-se uma carga insuportável e um desincentivo ao trabalho”.

Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba
Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O fim da caderneta foi abordado na quinta-feira passada pelo atual Presidente cubano, no programa televisivo “Mesa Redonda”, criado por Fidel Castro. Miguel Díaz-Canel esclareceu que a libreta deixará de existir após a conclusão da anunciada reforma monetária que o regime de Havana tem em vista, visando eliminar uma das duas moedas oficiais que circulam na ilha.

No território, coexistem o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC). O CUP é a moeda em que os cubanos recebem salários e pensões e equivale, atualmente, a quatro cêntimos do dólar. O CUC é a moeda usada pelos turistas e por quem trabalha no sector do turismo, a galinha dos ovos de ouro da economia cubana. Criado em 1994, o CUC é paritário ao dólar norte-americano e não é aceite em muitas lojas e farmácias. Havana quer acabar com o CUC e ficar com o CUP como moeda única de Cuba.

Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo
Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O Presidente cubano garantiu que a reforma monetária não irá pôr em causa a continuidade de grandes conquistas da Revolução, como a saúde e a educação universal gratuitas. Díaz-Canel assegura que nenhum cubano ficará desamparado: “Se alguém ficar numa situação de vulnerabilidade, o Governo procurará forma de apoiá-lo”.

Comenta o economista Everleny: “Cuba vive uma das crises mais profundas da sua história e não tem recursos financeiros para continuar a usar essa variável universalista”, como é a libreta. “Mas será um processo gradual, não será uma decisão repentina, não creio que seja este ano, talvez em meados do próximo”.

Paralelamente ao défice crónico na balança de pagamentos, o país acumula dificuldades em virtude da pandemia de covid-19, que afastou os turistas da ilha caribenha, da diminuição das remessas enviadas pela diáspora e também das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados Unidos. A escassez de alimentos, produtos de higiene e medicamentos nas prateleiras dos espaços comerciais é a consequência mais visível desta crise.

Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis
Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

Instituída pela Lei 1015, de 12 de março de 1962, a caderneta de abastecimento foi criada por Fidel Castro para enfrentar a falta de alimentos que derivou do embargo económico decretado pelos Estados Unidos, principal parceiro comercial à época.

Ainda que o cabaz básico não fosse suficiente para alimentar uma família, era uma ajuda substancial para muita gente. “O cabaz básico, que se entregava mensalmente, garantia menos de 12 dias das necessidades alimentares da população. O resto tinha de ser adquirido a preços de mercado, ou mais altos do que os do cabaz, especialmente os produtos agrícolas”, explica o economista Everleny.

“Hoje a sociedade cubana não é a mesma: 33% do emprego está no sector privado ou cooperativo, ou seja, sem os salários fixos e baixos pagos pelo Estado. Outra parte importante recebe remessas do exterior e outro grupo importante mora no exterior, ou seja, a população não é tão homogénea como nos anos 80.”

Conclui Omar Everleny: “Acredito que parte da população, uns 25%, não esteja preparada nem consiga aguentar o cancelamento da libreta de abastecimiento. O Estado deve mostrar a capacidade necessária para criar mecanismos financeiros que compensem a população que tenha de adquirir os bens do velho cabaz subsidiado, aos preços que esses produtos atinjam”.

(Uma cubana de Santiago de Cuba mostra a sua ‘libreta’, a caderneta de racionamento que lhe permite comprar mantimentos a baixos preços, graças aos subsídios do Estado AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

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