A Turquia participa atualmente em vários conflitos nas imediações do seu território. Desígnio nacional por parte de um país que há 100 anos era um império? Ou sonhos de um Presidente que pensa e age como um sultão?
No imenso território que nos dias de hoje corresponde ao antigo Império Otomano, o país que herdou esse legado civilizacional está envolvido em múltiplas disputas nas imediações do seu território. Umas contendas acenderam-se mais recentemente, outras são antigas, como o problema de Chipre, que decorre da invasão turca em 1974 e da criação da República Turca de Chipre do Norte no terço norte da ilha.
Este domingo os cipriotas turcos realizaram a segunda volta das eleições presidenciais e o grande vencedor foi… Recep Tayyip Erdogan, o Presidente turco. Nos boletins de voto, Ersin Tatar, de 60 anos, foi o mais votado, com 52% dos votos — era o candidato apoiado por Ancara. Primeiro-ministro há menos de ano e meio, é um nacionalista defensor do atual status quo da ilha: dois Estados separados.
Tatar derrotou o atual Presidente, Mustafa Akinci, de 72 anos, que prometera trabalhar no sentido da reuni cação com a República de Chipre — a parte grega da ilha, membro da União Europeia — sob o teto de uma federação. A concretizar-se, seria o fim da tutela turca sobre Chipre do Norte.
Oficialmente, a Turquia reconhece a República Turca de Chipre do Norte como país independente. É, aliás, o único Estado a reconhecê-lo. Na prática, trata-a quase como uma província. A 6 de outubro, a reabertura da praia de Varosha — ‘terra de ninguém’ na linha verde que separa os dois Chipres — foi uma demonstração turca de ‘quero, posso e mando’, que mina a mais pequena perspetiva de negociações entre cipriotas turcos e cipriotas gregos.
A reabertura de Varosha acontece numa altura em que a Turquia mantém outra contenda com a Grécia nas águas do Mediterrâneo Oriental: os dois países — membros da NATO — disputam o acesso a reservas de gás e reivindicam áreas marítimas que se sobrepõem.
No mês passado, a Turquia apresentou o que designou por doutrina Pátria Azul (Mavi Vatan, em turco), que visa assegurar o controlo das áreas marítimas em redor das suas costas. Este imperativo tem originado momentos de grande tensão no Mediterrâneo Oriental e, frequentemente, as atividades de perfuração realizadas pelos turcos colocam em estado de alerta os militares gregos.
Foi o que aconteceu em julho passado, quando Ancara despachou o navio de exploração sísmica ‘Oruc Reis’ para uma área que a Turquia reclama ser sua, entre Chipre e a ilha grega de Creta, mas que cipriotas e gregos dizem sobrepor-se às suas Zonas Económicas Exclusivas. O ‘Oruc Reis’ foi escoltado por navios de guerra turcos.
A questão de Chipre e as tensões no Mediterrâneo Oriental são apenas dois de vários teatros onde a Turquia está ativa. Num ano atípico, em que a esmagadora maioria dos países está tomada pela batalha contra a covid-19, a Turquia mostra as garras e multiplica-se em intervenções fora de portas.
Há tropas turcas a operar na Síria, com quem a Turquia partilha mais de 800 quilómetros de fronteira. Têm um olho nas movimentações da minoria curda síria (que Ancara acusa de conluio com os curdos turcos, que aspiram à secessão) e o outro na contenção de eventuais novas vagas de refugiados a caminho do seu território. A nível político, a Turquia é, juntamente com Rússia e Irão, um dos promotores do Processo de Astana, a maratona de negociações que tenta pôr fim ao conflito sírio.
Ao lado do Qatar, contra a Arábia Saudita e Emirados
Há também militares turcos na Líbia, um dos palcos da rivalidade entre Turquia e Qatar por um lado (em apoio do Governo sedeado em Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas) e Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (ao lado do general Khalifa Haftar, que lidera uma ofensiva a partir do leste do país).
O interesse da Turquia pela Líbia redobrou a partir do momento em que foram descobertas novas jazidas de gás no Mediterrâneo Oriental. A 28 de novembro de 2019, o próprio Erdogan e o primeiro-ministro líbio, Fayez Sarraj, assinaram dois acordos que foram mal recebidos em capitais da região: um sobre segurança e cooperação militar e o outro relativo à delimitação da fronteira marítima.
“A política externa da Turquia baseia-se numa abordagem anti-status quo. A liderança turca acredita que o status quo atual em todas essas regiões é contrário aos interesses da Turquia”, afirma ao Expresso Emre Kursat Kaya, investigador do EDAM, think tank com sede em Istambul. “Mas isso não é novo. Erdogan partilha essa crença com a tradicional elite militar secular kemalista [apoiante do laicismo instaurado pelo fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk], que está de regresso desde 2016”, quando Erdogan foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado.
“Portanto, é importante olhar para as políticas de Ancara através de uma abordagem mais homogénea do que focar apenas o Presidente. O que mudou nos últimos anos é o facto de haver mais espaço na região, decorrente da ausência dos Estados Unidos e da relutância da União Europeia, e do aumento da capacidade económica, cultural e militar da Turquia.”
Ao lado do Azerbaijão em Nagorno-Karabakh
Mais recentemente, a Turquia tem ganho protagonismo na região do Cáucaso, onde um dos seus grandes aliados — Azerbaijão — disputa há décadas com a Arménia o controlo do enclave de Nagorno-Karabakh, de maioria arménia mas integrado em território azeri. Ancara tem sido acusada de contribuir para reacender o conflito, sobretudo após estatísticas revelarem que este ano já exportou seis vezes mais equipamento militar para o Azerbaijão, designadamente drones, lançadores e munições.
Em tempos, o ex-Presidente azeri Heydar Aliyev descreveu a relação entre o Azerbaijão e a Turquia como “uma nação, dois Estados”. Hoje, além dessa proximidade histórica e cultural, Ancara quer diversificar as suas fontes de fornecimento energético: este ano o Azerbaijão tornou-se o principal fornecedor de gás da Turquia.
Muito deste protagonismo turco decorre da retirada dos Estados Unidos de algumas regiões. “Não só a Turquia, mas outros atores regionais, como os Emirados Árabes Unidos e o Irão, beneficiaram claramente do não-envolvimento dos EUA”, diz Emre Kursat Kaya. “Há um vácuo de poder na região e, uma vez que nenhuma grande potência quer preenchê-lo, estamos a testemunhar uma luta pelo poder regional.”
Superar o fundador
Esta agenda combativa consagra a Turquia como potência regional atenta que aproveita cada foco que se acende para reclamar influência. O investigador do EDAM admite que o Presidente turco tenha objetivos pessoais a perseguir.
“Em primeiro lugar, há um aspeto político interno óbvio em qualquer envolvimento turco. Erdogan é conhecido por ser capaz de reconhecer o estado de espírito do público e de agir em conformidade. Nenhuma iniciativa de política externa turca dos últimos cinco anos foi feita ao arrepio da opinião pública”, diz. “Em segundo lugar, após quase duas décadas na liderança do país, a base eleitoral do Presidente compara-o a Atatürk, o fundador da República Turca. Há uma rivalidade indireta entre eles, e o Presidente Erdogan beneficiaria com a imagem de defensor dos interesses turcos no exterior.”
Erdogan ocupa a presidência da Turquia desde 2014 — antes, foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014. Cumpre o segundo mandato, que, ao abrigo da Constituição, será o último. Mas Erdogan é um líder com fama de sonhar — e agir — como um sultão, pelo que as próximas eleições presidenciais, marcadas para 2023, estão no seu horizonte.
“As eleições presidenciais agora estão vinculadas às eleições parlamentares. Portanto, teoricamente, Erdogan ou o Parlamento poderiam convocar eleições antecipadas a qualquer momento, o que obrigaria Erdogan a candidatar-se de novo”, explica ao Expresso Nicholas Danforth, especialista das relações entre a Turquia e os EUA no think tank German Marshall Fund.
“Erdogan já apresentou a sua teoria sobre porque deveria ter permissão para voltar a concorrer em 2023. Suspeito que um tribunal constitucional composto por juízes nomeados por ele estaria inclinado a endossar essa posição.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui