ONU assinala Dia Mundial da Sanita, um “luxo” inacessível a 4200 milhões de pessoas

As sanitas salvam vidas e previnem a proliferação de doenças mortais, mas mais de metade da população mundial não tem uma em casa. A diretora da delegação da Fundação Aga Khan na Índia explica ao Expresso as implicações sociais da falta de lavabos seguros, em especial para as mulheres

Em qualquer casa portuguesa damos naturalmente por adquirido a existência de, pelo menos, uma sanita para uso de quem ali vive. Tal não é, porém, a realidade para mais de metade da população mundial, que (sobre)vive sem acesso às mínimas condições de higiene e saneamento.

A pensar nestes muitos milhões para quem uma sanita é um bem de luxo, e sobretudo no impacto desta situação ao nível da saúde e da segurança globais, a Organização das Nações Unidas instituiu o Dia Mundial da Sanita, que se assinala esta quinta-feira.

“Este é um dia dedicado a enfrentar o desafio global do saneamento. Celebra-se para dar ênfase à enorme crise sanitária que o mundo está ainda a combater: 4200 milhões de pessoas vivem ainda sem saneamento — o que corresponde a mais de metade da população global — e 673 milhões ainda praticam a defecação a céu aberto”, explica ao Expresso Tinni Sawhney, diretora-executiva da Fundação Aga Khan (Índia).

Fatima Ibrahim, de 10 anos, dirige-se para as casas de banho instaladas na sua escola, no campo de refugiados Tabareybarey, no Níger UNICEF / PHELPS

Com mais de 1300 milhões de habitantes — e a caminho de ultrapassar a China como país mais populoso à face da Terra —, a Índia é dos países onde o impacto decorrente de condições sanitárias de cientes é maior.

Essa vulnerabilidade reflete-se desde logo ao nível da segurança individual nomeadamente das mulheres. Muitos crimes sexuais, nomeadamente violações, acontecem no momento em que as indianas saem de casa para fazerem as necessidades em locais afastados, seja à beira da estrada ou junto a linhas de comboio, seja atrás de arbustos ou montes de lixo.

Risco psicológico e sexual

O problema está à vista de todos e tem sido amplamente analisado. “Vários estudos indicam que a falta de saneamento aumenta as vulnerabilidades de mulheres e meninas de várias formas. Para além da humilhação de terem de se aliviar ao ar livre, há também o medo de serem assediadas e violentadas, e sofrem de stresse psicossocial decorrente de tudo isto”, diz a dirigente do ramo indiano da Fundação Aga Khan.

Eriam Sheikh, de 7 anos, regressa de uma ida à casa de banho, montada sobre estacas, na cidade indiana de Bombaim UNICEF / MANPREET ROMANA

“A situação tem sido particularmente grave em comunidades informais urbanas, onde compartilhar os lavabos públicos com os homens coloca as mulheres em grande risco de sofrerem atos de violência e agressão sexual”, continua Tinni Sawhney.

A falta de casas de banho nas escolas, por exemplo, torna-se fator de absentismo, com consequências nefastas para o percurso educativo das raparigas. Mesmo nos casos em que existe algum tipo de instalação sanitária, muitas alunas são levadas a faltar às aulas durante o período menstrual.

“É inegável que melhorar o saneamento tornaria as vidas de mulheres e meninas mais seguras e saudáveis. Elas são afetadas de forma desproporcional pela falta de acesso a água potável, saneamento e higiene”, a rma Tinni Sawhney. Providenciar estas condições básicas “pode significar que todas as meninas possam continuar na escola quando atingirem a puberdade e que todas as mulheres que acedam a lavabos seguros e protegidos quem libertas do medo de serem agredidas e de perderem a dignidade.”

Uma jovem regressa de uma casa de banho improvisada no mato, na Guiné-Bissau UNICEF / GIACOMO PIROZZI

Trabalho de mais de um século

A presença da Fundação Aga Khan na Índia remonta ao início do século XX quando, em 1905, em Mundra (estado de Gujarate), foi fundada a primeira escola da organização. Nas últimas décadas, a Fundação — que tem delegações em 30 países, entre os quais Portugal — tem desenvolvido trabalho especializado nas áreas do acesso à água potável, saneamento e promoção de hábitos higiénicos.

“Nos últimos cinco anos, a Fundação Aga Khan (Índia) tem apoiado o maior programa de saneamento do mundo — a Missão Índia Limpa — convergindo com os esforços do Governo indiano para eliminar a defecação a céu aberto em todo o país”, diz Tinni Sawhney.

“A Fundação juntamente com as suas agências Programa Aga Khan de Apoio Rural e Agência Aga Khan para o Habitat têm sido fundamentais para facilitar o acesso ao saneamento a mais de 150 mil famílias em cinco estados da Índia. Isto foi possível através de uma combinação de abordagens, como a mudança de comportamentos, a melhoria da capacidade de funcionários do governo e o fortalecimento de instituições comunitárias que foram incentivadas a assumir a responsabilidade pelo processo de mudança.”

Wiseman e Job limpam uma casa de banho comunitária, em Mukuru kwa Ruben, arredores de Nairobi (Quénia)UNICEF / MODOLA

Apesar da pandemia de covid-19, que afeta a Índia em força — é atualmente o segundo país com mais casos (atrás dos EUA) e o terceiro em número de mortos (a seguir a EUA e Brasil) —, a Fundação Aga Khan (Índia) não deixou de assinalar o Dia da Sanita deste ano com um programa de eventos.

“As atividades incluem a colocação de postos de lavagem das mãos e a distribuição de sabonetes em centros de primeira infância, escolas e entre as comunidades, não só para prevenir a propagação de covid-19 e outras doenças infecciosas [como a cólera e a febre tifoide], mas também para garantir a e ciente utilização de água.”

Com este programa, a Fundação Aga Khan espera envolver mais de 50 mil pessoas de comunidades vulneráveis, dos estados de Bihar, Gujarat, Madhya Pradesh, Maharashtra, Telangana e Uttar Pradesh. A longo prazo, está a contribuir para que se cumpra o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 6 — de um conjunto de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015 — que promete saneamento para todos até 2030.

(Nas Ilhas Fiji, este menino está sentado sobre uma sanita abandonada UNICEF / SOKHIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

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