10 armas ao serviço da ocupação israelita

Israel controla a Cisjordânia e a Faixa de Gaza desde a guerra de 1967

Erosão do território palestiniano em consequência da evolução da ocupação israelita PALESTINE PORTAL

Uma das decisões mais polémicas da Administração Trump foi o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e a transferência da embaixada de Telavive para a Cidade Santa. Com Joe Biden na Casa Branca, não há promessas de que a representação diplomática faça o caminho inverso. No entanto, a vice-presidente eleita, Kamala Harris, afirmou que os Estados Unidos irão reverter algumas medidas de Trump, nomeadamente a suspensão da assistência económica aos palestinianos.

A confirmar-se, Washington ficará aquém do ponto em que estava em relação à questão palestiniana quando surgiu Trump, ainda que no terreno a ocupação israelita se intensifique a cada dia que passa, indiferente mesmo à pandemia.

1. COLONATOS
Pelos Acordos de Oslo de 1993, os palestinianos aceitaram ficar com apenas 22% da Palestina histórica, mas hoje nem essa parcela controlam. Ilegais face ao direito internacional, os colonatos judaicos têm crescido de forma consistente, à custa do confisco de terras árabes. Há duas semanas, pela primeira vez em 15 anos, o Governo israelita autorizou a construção de 31 novas casas nos colonatos de Hebron, onde colonos e árabes vivem em regime de apartheid. Hoje, mais de 600 mil judeus vivem em pelo menos 250 colonatos (muitos deles ilegais) na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Esta semana, a ministra dos Transportes israelita, Miri Regev, desvendou um plano de expansão da rede de transportes públicos na Cisjordânia. Com conclusão prevista para 2045, é um indicador de como, para Israel, a ocupação é um projeto de longo prazo.

2. VIOLÊNCIA DOS COLONOS
Correspondem a 13% da população da Cisjordânia e vivem protegidos por militares israelitas, destacados com essa única missão. Esse privilégio contribui para um historial de agressividade dos colonos contra as populações árabes: invasão de propriedades, assédio e insultos, apedrejamento, vandalismo de zonas agrícolas, queima de árvores, roubo de safras. A 15 de outubro, a ONG israelita B’Tselem registou o testemunho de Khaled Masha’lah, de 69 anos, pai de seis, morador na região de Hebron, a quem os colonos cortaram 300 oliveiras. Segundo outra ONG israelita, Yesh Din, 91% das queixas contra colonos são arquivadas por “falta de provas” ou “agressor desconhecido”. Israel aplica aos colonos a lei civil e aos palestinianos a lei militar.

3. DEMOLIÇÕES
A 3 de novembro, estava o mundo sintonizado nas eleições americanas, 11 famílias beduínas que viviam da pastorícia viram bulldozers militares arrasarem as tendas onde dormiam e os abrigos dos animais, na comunidade de Khirbet Humsah, no vale do Jordão. Ficaram sem teto 74 pessoas, incluindo 41 crianças. A demolição de casas árabes por razões administrativas é prática frequente, sobretudo em Jerusalém Oriental, em nome da judaização da Cidade Santa. Em 2019 foram ali destruídas 169 habitações. No total dos territórios, no ano passado, foram arrasadas 623 casas, diz o Comité Israelita Contra as Demolições de Casas (ICAHD).

4. CHECKPOINTS
São a face diária da ocupação. Há postos de controlo permanentes, no interior da Cisjordânia e na fronteira com Israel, atravessados diariamente por milhares de trabalhadores palestinianos, às vezes compactados como gado. Outros são pontuais, colocados aleatoriamente nas estradas. Por vezes, à entrada de aldeias são erguidas barreiras físicas com blocos de cimento, barras de metal, montes de terra. Segundo a ONG de mulheres israelitas Machsom Watch, que vigia o tratamento dos soldados aos palestinianos nos checkpoints, os habitantes são obrigados a avançar as barreiras a pé (doentes e mulheres em trabalho de parto) para apanhar transporte do outro lado.

5. MURO
Ao não passar exatamente sobre a Linha Verde — a fronteira reconhecida internacionalmente —, o muro que separa Israel da Cisjordânia rouba muitas terras palestinianas. Segundo a ONU, 11 mil habitantes da Cisjordânia ficaram do lado israelita do muro e vivem em guetos. Ao longo dos cerca de 810 quilómetros da vedação, cerca de 70 “checkpoints agrícolas” permitem a passagem de agricultores palestinianos para… as suas próprias terras de cultivo.

6. IMPOSTOS
Por acordo com os palestinianos, é Israel quem cobra os impostos pagos nos territórios. Depois, o dinheiro é transferido em tranches para a Autoridade Palestiniana (AP, o governo interino instituído pelos Acordos de Oslo), mas nem sempre ao ritmo desejado pelos palestinianos. Em entrevista ao Expresso, em outubro, o embaixador palestiniano em Lisboa dizia que, nos últimos meses, a verba que recebia da AP só lhe permitia pagar metade das despesas de funcionamento da embaixada.

7. ÁGUA E LUZ
O contraste no acesso à água é especialmente visível na Cisjordânia. Colonatos com piscinas e relvados bem irrigados não distam longe de aldeias árabes, onde a água é bem medida para acudir às necessidades básicas. Já na Faixa de Gaza, não há dia sem umas horas às escuras. Segundo a B’Tselem, dos 600 megawatts necessários ao consumo diário chegam só 180 (120 fornecidos por Israel). Hoje, Gaza tem energia em ciclos de oito horas; no verão, chega a estar meio dia sem eletricidade.

8. DETENÇÕES
Kamal Abu Waar morreu esta semana de cancro na prisão israelita de Ramla. Tinha 46 anos e estava detido desde 2003. Era um dos 4500 palestinianos presos em Israel, 545 dos quais a cumprirem prisão perpétua, segundo a ONG palestiniana Addameer. Há 40 mulheres e 170 menores, alguns com 12 anos, levados de casa durante incursões militares noturnas. Cerca de 370 casos são detenções administrativas, sem acusação ou julgamento. Estima-se que 40% dos homens palestinianos já tenham sido detidos uma vez.

9. IMPUNIDADE
Dias após a morte de George Floyd, nos EUA, saiu às ruas da Palestina o movimento “Palestinian Lives Matter” para denunciar um caso de brutalidade policial. A 30 de maio, Iyad al-Hallaq, um palestiniano autista de 32 anos, foi morto a tiro pela polícia israelita, na Cidade Velha de Jerusalém, após não parar no checkpoint da Porta dos Leões. Este caso foi sujeito a investigação mas, segundo a ONG israelita Yesh Din, 80% das queixas relativas a suspeitas de ofensas contra palestinianos por parte de soldados são arquivadas.

10. DIVISÃO
Israel controla hoje os dois territórios palestinianos de forma diferente. A Cisjordânia com uma ocupação efetiva com colonos e militares. A Faixa de Gaza — um retângulo de 40 quilómetros por 6 a 12 de largura — através de um bloqueio por terra, mar e ar, desde 2007, imposto também pelo Egito. Disto decorre uma divisão política — a AP manda na Cisjordânia e o Hamas em Gaza — que só fragiliza os palestinianos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Samuel foi decapitado. Nadine foi degolada. Por que razão alguns terroristas atacam de forma bárbara?

Nalguns atentados terroristas o atacante age motivado não só pela vontade de matar como também de profanar o corpo. Há razões históricas e religiosas que explicam o recurso à decapitação ou à degola como forma de execução. Um estudioso da Ciência das Religiões diz ao Expresso que é mais provável que, nos dias de hoje, se trate de um fenómeno de imitação dos métodos do Daesh

Pintura de Matthias Stom (séc. XVII) alusiva à decapitação de São João Baptista, a mais importante do mundo ocidental. Exigida por Salomé, a cabeça do pregador foi entregue numa bandeja à neta de Herodes WIKIMEDIA COMMONS

Em outubro passado, dois atentados em solo francês assumiram contornos particularmente cruéis. No dia 16, na cidade de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena. Numa aula sobre liberdade de expressão, o docente havia mostrado caricaturas do profeta Maomé, desencadeando a ira do radical islâmico.

A 29 seguinte, um cidadão tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas no interior da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Nadine Devillers, uma mulher de 60 anos, foi degolada, mas a intenção do atacante era decapitá-la.

Uma facada certeira teria sido suficiente para tirar a vida a qualquer das vítimas, mas estes agressores investiram de forma deliberada com a intenção de cortar-lhes a cabeça.

Várias razões explicam uma motivação dessa natureza, desde logo a propaganda que resulta de um ato tão bárbaro. “Quando o ISIS [o autodenominado ‘Estado Islâmico’, também conhecido pelo acrónimo Daesh] degolava pessoas, filmava a execução e punha as imagens a circular nas redes sociais, havia no gesto uma dimensão de propaganda. Degolar é uma imagem tão brutal que induz um medo terrível”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Ainda hoje, no Ocidente, nos nossos códigos penais, temos o crime de profanação de cadáver. Ou seja, uma coisa é matar alguém, que é um crime; outra coisa é, além de matar, profanar o cadáver, criar uma destruição no corpo que o torne irreconhecível.”

Demonstração de poder

Em várias civilizações milenares, há toda uma herança associada ao ato de decapitar como demonstração de poder. “Nas civilizações mais antigas do Médio Oriente, a decapitação surge como uma forma não propriamente usual, mas das mais brutais e das mais usadas em termos icónicos para se mostrar que se dominou alguém”, diz Paulo Mendes Pinto.

Na Paleta de Narmer, por exemplo, que é uma placa com inscrições e relevos representando a unificação do Antigo Egito, o monarca surge junto a uma fila de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão lado a lado e com as respetivas cabeças cortadas entre os pés. Também no império Assírio-Babilónico há copiosa iconografia que mostra o rei a contar os corpos de uma batalha: num monte há corpos, noutro cabeças.

Vazar o corpo do líquido da vida

Numa outra componente deste fenómeno, degolar surge como forma mais comum de sacrificar um animal, sangrando-o pelo pescoço. Num ser humano, passar uma lâmina no pescoço é garantia de morte eficaz, nenhum inimigo sobrevive. Matar com recurso à degola tem o intuito de “vazar o corpo do líquido da vida”, explica Mendes Pinto.

Há ainda uma dimensão espiritual no ato de decapitar. “Há muitas visões do fim do mundo, do fim dos tempos, em que se dará a ressurreição final de todos aqueles que foram vivos”, explica o professor. “Há muitos movimentos religiosos que acreditam que para esse juízo final poder ter lugar, o corpo tem de estar inteiro.”

Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição essencial para que no dia do Juízo Final possa haver um novo tempo. Logo, separar a cabeça do resto do corpo é uma forma de impedir que o defunto ganhe a Eternidade.

Uma forma de “morte digna”

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma técnica que atravessou a História, desde foram forjadas as primeiras espadas. Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Na Europa, tornou-se uma forma de “morte digna” para a nobreza — rápida e supostamente indolor —, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. O método generalizou-se com a Revolução Francesa e, com o passar do tempo, a guilhotina passou das praças públicas para o interior das prisões.

Para Mendes Pinto, o grau de consciência de todos estes aspetos por parte de quem, nos dias de hoje, realiza este tipo de ataques será reduzido. “Alguém, fundamentalista islâmico, viu as imagens há quatro, cinco anos de gente a ser degolada pelo ISIS e, quanto mais não seja, faz exatamente o mesmo por imitação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Alarme do terrorismo voltou a soar na Europa

Três atentados recentes fizeram subir o nível de alerta. A França quer mexer em Schengen

1 Porque se fala de novo de terrorismo?

Porque o Velho Continente voltou a ser alvo da violência jiadista. Na terça-feira, em Viena, quatro pessoas morreram e 15 ficaram feridas num ataque com arma branca realizado por um austríaco de 20 anos, de origem macedónia. O homem tinha cumprido pena de prisão após ser detido quando se preparava para ir para a Síria e juntar-se ao autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh). Este grupo terrorista reivindicou o ataque.

2 Este atentado foi caso único?

Não. A 16 de outubro, na cidade francesa de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, um professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena, por ter mostrado caricaturas do profeta Maomé numa aula sobre liberdade de expressão. E a 29 seguinte, também em França, um tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas, dentro da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Uma das vítimas, uma mulher de 60 anos, foi degolada (a intenção do terrorista era decapitá-la).

3 Como reagiu a Europa?

Esta semana, o Reino Unido elevou o nível de alerta para “grave”. Já antes a França decretara alerta máximo. “Sou favorável a uma revisão profunda de Schengen para repensar a sua organização e fortalecer a segurança da nossa fronteira comum com uma força fronteiriça adequada”, defendeu na quinta-feira o Presidente francês, durante uma visita a um ponto fronteiriço com Espanha. Emmanuel Macron anunciou a duplicação do número de agentes nas fronteiras francesas.

4 Macron questiona Schengen porquê?

Quer o agressor de Viena quer o de Nice circularam livremente pela área Schengen antes de atacarem. O tunisino Brahim Aouissaoui entrou na Europa pela ilha italiana de Lampedusa, onde chegou a 20 de setembro num barco de pesca, e viajou de comboio para França, onde chegou horas antes de matar em Nice. Já Fejzulai Kujtim, o jiadista de Viena, viajou até à vizinha Eslováquia, em julho, para tentar comprar munições.

5 Porquê matar por decapitação?

Por uma questão de propaganda. Decapitar é um ato bárbaro que revela poder e induz medo. O Daesh decapitava pessoas, filmava e punha a circular nas redes sociais. Mas também devido a uma dimensão espiritual. Muitos movimentos religiosos acreditam que, para o Juízo Final ter lugar — e o defunto ganhar a Eternidade —, o corpo tem de estar inteiro.

Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Sim, estamos todos a olhar para as eleições nos EUA, mas será que conhecemos realmente a Europa?

Por estes dias, estamos todos de olhos postos nas eleições nos Estados Unidos. Mas deste lado do Atlântico, com águas menos agitadas, nem sempre os Estados estão unidos em volta do mesmo propósito. União Europeia, Espaço Schengen, Zona Euro, Conselho da Europa, EFTA, Espaço Económico Europeu: são múltiplas as organizações em que se arrumam os países europeus. Nem sempre é fácil perceber o que é a Europa. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

À beira-mar plantado, na ponta ocidental da Europa, Portugal é o ponto de partida ideal para uma aventura à descoberta da Europa.
Mas a que nos referimos exatamente quando falamos de Europa?

No vasto espaço que vai do Atlântico aos Urais – a fronteira natural entre a Europa e a Ásia –, há múltiplas estruturas políticas e económicas que muitas vezes se sobrepõem. Nem sempre é fácil perceber o que é a Europa, e isto para nós que cá vivemos, imagine-se para os outros.

Comecemos pela União Europeia, o projeto de integração regional mais bem-sucedido em todo o mundo.
Nasceu em 1957 e alargou-se muito. Mas em 2020, pela primeira vez na sua história, um Estado-membro decidiu percorrer o caminho inverso e saiu da União Europeia.

A organização voltou a ter 27 membros, mas nem todos se relacionam com o espaço comunitário da mesma forma.

Há oito, por exemplo, que não fazem parte da Zona Euro. Não adotaram o Euro e continuam a usar as suas moedas nacionais.

Cinco não fazem parte do Espaço Schengen, que permite, por exemplo, que um português vá por terra até à Estónia sem ver o seu passaporte controlado.

Mas, ao mesmo tempo, há países que fazem parte da Zona Schengen e que não são membros da União. Estes quatro constituem outro bloco económico no seio do continente: a EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre.

Ora, com duas áreas económicas vizinhas e sem sinais de conflito entre os seus membros, a interação entre ambas aconteceu com muita naturalidade. E em 1994, nasceu o Espaço Económico Europeu, uma área de liberdade de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, de que fazem parte quer os países da União Europeia, quer os da EFTA, com uma exceção: a Suíça.

No Velho Continente, a organização local mais abrangente é o Conselho da Europa. É a instituição europeia mais antiga e a principal defensora dos direitos humanos na região. Atualmente é composta por 47 países.

Ora, 28 membros deste Conselho da Europa fazem também parte da NATO. A Aliança política e militar é, aliás, essencialmente europeia já que para além dos membros do Velho Continente conta com apenas a participação de mais dois países, do outro lado do Atlântico.

Se sobrepusermos a esta Europa extensa o mapa das Nações Unidas, constatamos que apenas um país europeu não faz parte da mais universal das organizações. É dos territórios mais pequenos do continente e dos que tem maior potencial de conflito: chama-se Kosovo. A sua independência é reconhecida por mais de 100 países, mas dentro da União Europeia nem todos lhe atribuem esse estatuto.

Quando falamos de Europa, é natural que falemos muito de União Europeia. Mas a Europa é muito mais que isso. Fique a pensar no assunto.

Episódio gravado por Martim Silva.

(IMAGEM Mapa do continente europeu, do Atlântico aos Urais ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

“Se Joe Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores”

A campanha eleitoral nos Estados Unidos chega ao fim esta segunda-feira com as sondagens a preverem a vitória de Joe Biden e os comícios de última hora a mostrarem um Donald Trump fresco e combativo. Ao Expresso, um consultor de comunicação analisa as campanhas democrata e republicana e identifica qual foi a novidade desta corrida em termos de comunicação política

Republicanos (à esquerda) e democratas IMAGEM

Donald Trump e Joe Biden cumprem esta segunda-feira o seu último dia de campanha. Chega ao fim uma corrida atípica, marcada pela pandemia que atingiu os Estados Unidos como nenhum outro país e também tensa, pela incerteza do resultado final e pelos receios em relação ao que se seguirá numa América profundamente dividida e radicalizada.

Se Joe Biden, nesta reta final, tem contado com o apoio do “irmão” Barack Obama — um dos Presidentes mais populares de sempre, com quem Biden fez dupla na Casa Branca entre 2009 e 2017 —, Donald Trump surge como um homem cada vez mais só. Com sondagens adversas, o 45º Presidente tem-se mostrado enérgico e combativo, mas em palco surge sem a companhia das grandes figuras do Partido Republicano, rodeado apenas pela família.

“Trump está como sempre foi. A organização de toda a sua equipa, de toda a gente que o rodeia, tem uma lógica um pouco mafiosa, não no sentido criminoso da palavra, mas no sentido da importância que a família assume. Se olharmos para estes quatro anos de mandato, quais são os elementos estáveis dentro do seu círculo de confiança? A família”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, mestre em Ciência Política e assessor de imprensa de Pedro Santana Lopes entre 2010 e 2017.

“No círculo de poder de um político, nomeadamente do Presidente dos EUA, há cargos que têm particular importância pela confiança de proximidade e pelo acesso que têm ao Presidente: o diretor de comunicação, o assessor de imprensa, o chefe de gabinete e assessores próximos. Estas pessoas são sempre muito próximas do líder político.”

Em relação ao diretor de comunicação, por exemplo, Trump vai no oitavo em quatro anos, enquanto Barack Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro. Ao nível do porta-voz da Casa Branca, já teve quatro, enquanto Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro.

“Trump é daqueles políticos que não fomentam a estabilidade de equipa. É um líder que, naturalmente, começa só e acaba só”, continua Alexandra Guerra, que é ainda autor do livro “A política e o homem pós-Humano” (Alêtheia, 2016) (atualmente é assessor de imprensa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa). “Isso é revelador da sua própria incapacidade em desenvolver relações de trabalho e criar relações de lealdade com os assessores mais próximos.”

Não por acaso, o 45º Presidente escolheu e privilegiou como canal preferencial de comunicação com o povo norte-americano o Twitter, onde tem mais de 87 milhões de seguidores. Ao disparar tweets “contorna todo aquele staff que existe para proteger o Presidente em tempos normais mas que ele nunca considerou”, aponta Alexandre Guerra.

Com Trump a atuar fora dos cânones da comunicação política tradicional, à semelhança do que já fizera na campanha de 2016, Alexandre Guerra considera que a grande novidade desta campanha aconteceu… fora das duas candidaturas.

“Em termos de comunicação política, não se retira muito de novo desta campanha”, diz. “Barack Obama trouxe sobretudo o contacto direto com os eleitores: os SMS, as redes sociais. Trump, em 2016, trouxe o seu estilo, que desafiava os cânones instituídos e os métodos e dinâmicas de trabalho entre aquilo que é uma equipa de comunicação política e o Presidente, por um lado, e entre o Presidente e os canais tradicionais de comunicação política, por outro”.

O que a corrida de 2020 traz de inédito é o facto de “haver republicanos, muitos deles antigos estrategos do Partido, que de uma forma muito afirmativa e assumida estão a fazer campanha pelo candidato democrata”, destaca. “O verdadeiro republicano conservador, que faz aquilo que acha que é melhor para a América, gosta de Ronald Reagan, não gosta de Donald Trump.”

Alexandre Guerra destaca duas iniciativas: o Lincoln Project (Projeto Lincoln) e o movimento Republican Voters Against Trump (Eleitores Republicanos Contra Trump). “Estes dois projetos são uma novidade. A comunicação é extremamente bem feita, por profissionais com experiência na área da comunicação política, muitos deles com anos de campanhas no campo republicano. Conseguiram criar uma dinâmica.”

O Projeto Lincoln inspira-se na figura do 16º Presidente, Abraham Lincoln, que liderou o país durante os anos mais sangrentos e desunidos da História dos EUA — os da guerra civil (1861-1865). Foi elaborado por autodenominados “americanos dedicados” que querem “proteger a democracia”: “Os fundadores do projeto Lincoln passaram mais de 200 anos a eleger republicanos. Mas agora desencadearam um movimento nacional com uma única missão: derrotar Donald Trump e o Trumpismo”, declaram no sítio na Internet do projeto.

Na mesma linha, os Eleitores Republicanos Contra Trump assumem-se como um movimento que representa “republicanos, ex-republicanos, conservadores e ex-eleitores de Trump que não podem apoiar Trump para Presidente neste outono”.

“Não há memória de isto ter acontecido anteriormente de forma tão sistematizada e organizada”, comenta Alexandre Guerra. “Há vários movimentos republicanos que se organizaram para salvar o Partido Republicano e salvar aquilo que são os valores da América – e ao fazerem-no acabaram por se colocar ao serviço do candidato democrata. É uma coisa totalmente inédita”, diz.

“Estes republicanos assumem claramente que não votam Trump. Vão fazer um voto patriótico em Joe Biden. Se Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores.”

Analisando a estratégia democrata, o consultor de comunicação não se mostra particularmente impressionado com a campanha de Joe Biden e Kamala Harris. “Não tem sido muito entusiasmante. Faltaram pesos-pesados à equipa de candidatura que pensassem política e comunicação política e delineassem uma campanha que, desde o início, atacasse forte Donald Trump. Faltou um James Carville (que trabalhou com Bill Clinton), um David Axelrod (que ajudou Barack Obama), um Karl Rove (que assistiu George W. Bush), um Alastair Campbell (que foi o estratego de Tony Blair, no Reino Unido)”, recorda.

Alexandre Guerra enumera mesmo alguns “erros de principiante” que acharia impossível de acontecer numa campanha presidencial norte-americana. “No primeiro debate, Biden chamou ‘palhaço’ ao Presidente dos EUA. Também a forma como ele foi vestido: ele é branco, tem cabelo branco e levou uma gravata branca e preta, o que lhe deu um ar abatido e envelhecido. E levou um lenço do lado esquerdo do fato, que é algo que muito eleitorado que ele tem de conquistar, mais rural e menos sofisticado, acha presunçoso e um tique de aristocrata.”

Porém, escaldados com a campanha de há quatro anos, que não impediu a vitória do inexperiente Trump contra a superpreparada Hillary Clinton, os democratas tentaram agora aprender com os erros. “Perceberam que tinham de lutar até ao fim, até ao último dia, independentemente das sondagens”, diz Alexandre Guerra.

“Esta preocupação foi expressa num memorando enviado [no mês passado] pela diretora de campanha, Jennifer O’Malley Dillon, a apoiantes e doadores do Partido Democrata, onde dizia claramente: ‘Não se fiem no que dizem as sondagens e os analistas. Este é um combate até ao fim. Não subestimem o adversário’. Foi um memo muito certeiro e revelador da preocupação que existe na campanha de Biden para que não se cometam os mesmos erros da campanha de Hillary, que ganhou o voto popular mas não ganhou nos sítios certos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui