Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

O empreendedorismo das mulheres é uma arma para o futuro do Sudão FOTO PEDRO MATOS / PAM

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA — Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO — Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mundial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

IÉMEN — Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

AFEGANISTÃO — Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A 5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020

Quem substitui Merkel? A Escócia pede independência? Trump, o que faz? (20 perguntas sobre o mundo em 2021)

Seleção de perguntas e respostas elaboradas pela secção Internacional do Expresso

A crise económica vai dar azo a demagogos e extremistas?

Em abril o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou ao Conselho de Segurança da ONU que a pandemia “poderia ameaçar a paz e a segurança no mundo”. Entrámos nesta década com uma crise económica que atingiu grande parte do mundo, saímos no meio de uma crise económica, social e sanitária como não se tinha vivido desde a II Guerra Mundial. As perspetivas não são animadoras, apesar de sinais de potencial crescimento das economias do sudoeste asiático. O extremismo de direita é real. Em outubro, dados do weforum.org alertam para um aumento de “320% no terrorismo de extrema-direita a nível global”. Este tipo de ações é considerada uma das maiores ameaças à segurança mundial, a par das alterações climáticas e dos ciberataques.

A vacina para a covid-19 vai chegar a todo o mundo?

Há organizações não-governamentais que muito têm batalhado para que a resposta a esta pergunta seja um claro “sim”, sem “mas”, e até foi criado um organismo internacional para garantir o acesso universal à vacina — o Covax. Mas o calendário de entrega dessas vacinas será muito diferente de país para país. O epidemiologista do Instituto Champalimaud Henrique Veiga-Fernandes já avisou que 53% das vacinas disponíveis estão nas mãos de 14% da população mundial, com alguns países a comprarem mais de cinco doses para cada cidadão.

Vão acabar as restrições à circulação entre países e continentes?

Enquanto a vacinação não for estendida a boa parte da população e surgirem novas mutações do coronavírus, vamos continuar a viver com restrições à circulação, como prova a suspensão de voos provenientes do Reino Unido decretada por muitos países europeus no último fim de semana. A Organização Mundial da Saúde tem feito alertas para uma provável terceira vaga nos primeiros meses de 2021. Governos de todo o mundo procuram equilíbrios entre retomar a circulação para garantir a sobrevivência de companhias aéreas, atividades turísticas e respetivos postos de trabalho, e evitar novas escaladas de contágio. O desafio é difícil e o verão pode ser um problema. Previsões a mais do que alguns meses são impossíveis. Há um ano nunca imaginaríamos estar a viver neste cenário.

Quem vai substituir Angela Merkel na liderança da Alemanha?

Dos 71 anos de existência da República Federal da Alemanha, o partido democrata-cristão da chanceler governou 50. Quando Merkel chegar ao fim do presente mandato soma 16 anos na liderança do Governo alemão, tantos quantos Helmut Kohl, cognominado “chanceler eterno”. Pressupõe-se que o próximo chefe de Governo saia da CDU/CSU, que continua a ser o mais votado, mas está longe de ter emergido uma figura capaz de galvanizar as hostes democratas-cristãs, que se reúnem em janeiro com o objetivo principal de eleger novo líder. Ninguém encabeça a corrida a três: Armin Laschet, ministro-presidente da Renânia do Norte-Vestefália, Friedrich Merz, afastado por Merkel há 20 anos, e Norbert Rottgen, líder do Comité de Negócios Estrangeiros do Parlamento federal. Um duro caminho até ao fumo branco.

Polónia e Hungria vão ser castigadas pelos desvios ao Estado de direito?

Poderão vir a ser, mas não já. Após ameaçarem vetar o orçamento europeu (2021-2027) e, com isso, comprometerem a chamada ‘bazuca’ financeira, os dois países do leste europeu aceitaram uma proposta da presidência alemã da UE que lhes garante um adiamento da possibilidade de virem a ser castigados. Caso vejam o acesso aos fundos comunitários em perigo por desvios aos princípios do Estado de direito, Polónia e Hungria poderão solicitar ao Tribunal de Justiça da UE que delibere sobre a legalidade das sanções. Até haver decisão judicial — o que poderá demorar mais de um ano —, continuarão a receber as verbas normalmente.

O fim da transição do ‘Brexit’ lançará o Reino Unido no caos?

O receio é legítimo. A dias do final o período de transição (as regras comunitárias mantiveram-se 11 meses após a saída da UE, a 31 de janeiro último) não há acordo sobre a relação futura entre o Reino Unido e os 27. Após sucessivos prazos e linhas vermelhas cruzadas, os últimos óbices são as pescas, já que as partes discordam do prazo e proporção em que os pescadores europeus perderão ter acesso às águas britânicas; e a concorrência, pois Bruxelas quer que Londres a acompanhe em todas as normas ambientais, laborais e sociais, para não obter vantagem indevida, e Boris Johnson vê nisso um atentado à soberania. A isto acresce nova estirpe do coronavírus, a ditar restrições às viagens entre os dois lados do Canal da Mancha.

A Escócia convoca novo referendo?

Os mais de 50% que as sondagens atribuem ao Partido Nacional Escocês (independentista) para as eleições regionais de 6 de maio obrigam a admitir essa hipótese. A primeira-ministra, Nicola Sturgeon, defende nova consulta popular de autodeterminação, mais de seis anos depois de os escoceses terem decidido (55%-45%) ficar no Reino Unido. O Governo britânico (cuja autorização é legalmente necessária) argumenta que em 2014 os independentistas prometeram que a resposta das urnas valia “por uma geração”, mas Sturgeon responde que o ‘Brexit’ justifica reabrir a questão, já que 62% dos escoceses votaram a favor de ficar na UE. As condições excecionais aprovadas para a Irlanda do Norte agravam o descontentamento escocês.

Os separatistas vão vencer as eleições na Catalunha?

Vão. Todos os estudos de opinião indicam que a 14 de fevereiro haverá maioria de deputados separatistas, que podem mesmo somar uma inédita maioria de votos. Tal dará asas aos que continuam a exigir um referendo de autodeterminação, impossível à luz da Constituição. O Governo central, de esquerda, tem-se mostrado dialogante com os independentistas, de cujos votos precisou para ser investido e viabilizar orçamentos. Mas há claras divisões entre as forças separatistas catalãs, quer políticas (vão da extrema-esquerda ao liberalismo conservador) quer táticas (o fugitivo Puigdemont defende uma colisão frontal com Madrid, ao passo que a Esquerda Republicana se mostra hoje mais pragmática e realista).

Biden vai fazer regressar os EUA aos acordos denunciados por Trump?

Se não a todos, pelo menos a alguns dos mais importantes, como o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, como Joe Biden já anunciou. Fazer regressar os EUA aos acordos internacionais denunciados por Donald Trump será a forma mais visível de o novo Presidente se distanciar do legado isolacionista do antecessor e reintegrar os EUA na dinâmica internacional do multilateralismo.

O que fará Donald Trump fora da Casa Branca?

Quieto não ficará. Não sabemos se o ainda Presidente assistirá à posse do seu sucessor, Joe Biden, ou se marcará o dia 20 de janeiro com um comício ou até lançando uma candidatura às presidenciais de 2024. Trump, que repete sem fundamento que as eleições foram manipuladas, quer fazer dessa suspeita e do poder que tem sobre o Partido Republicano (o seu resultado foi expressivo, apesar da derrota) a alavanca de um regresso. Manter-se-á no palco mediático por vontade própria, possivelmente na TV, decerto no Twitter; e também pode ter protagonismo como alvo de investigações e processos judiciais.

Jair Bolsonaro será alvo de destituição?

A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos e os números da pandemia são um mau sinal para o Presidente brasileiro, prestes a completar dois anos de mandato. O país é o terceiro no mundo com mais casos de covid-19: 7,2 milhões de contágios e mais de 185 mil mortos. Apesar disso, como disse ao Expresso o politólogo Octávio Amorim Neto, o “fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal subjacente aos apoios estatais. Se o mercado consolidar a expectativa de que a economia está numa rota insustentável, 2021 poderá testemunhar um círculo vicioso, em que o mau desempenho económico e o enfraquecimento político do Governo de Bolsonaro se retroalimentam aceleradamente”. A hipótese de o descalabro económico originar descontentamento que dê origem à destituição é possível, mas pouco provável.

O regime de Nicolás Maduro aguenta-se na Venezuela?

O controlo do coronavírus parece ser o único fator que corre bem ao que resta do regime chavista, segundo números oficiais: a Venezuela declarou menos de mil óbitos, apesar de ter quase 30 milhões de habitantes e de constantes alertas sobre carências no sistema de saúde. Maduro venceu as legislativas de dia 6 num sufrágio boicotado pela oposição, em que a abstenção ultrapassou os 65%. Treze dias depois, questionado pela CNN sobre a permanência dos valores do socialismo, respondeu: “Às vezes avançamos, outras recuamos. Talvez hoje tenhamos recuado no que diz respeito aos nossos valores socialistas. Reconheço isso.” A sua permanência no poder num país onde vivem muitos portugueses e lusodescendentes depende da capacidade de resposta da oposição e dos apoios internacionais que esta conseguir.

As tensões em Caxemira vão continuar?

Tudo indica que sim, se olharmos para as últimas notícias das duas potências nucleares que lutam pela posse da região — Índia e Paquistão. No dia 1 de novembro, tropas indianas mataram um dos principais comandantes das milícias paquistanesas em Caxemira. No dia 2, o primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, disse que ia dar estatuto de província a esta região disputada e, no fim desse mês, o Governo indiano entregou ao Conselho de Segurança da ONU uma pasta com o que considera serem provas de que milícias paquistanesas estavam a planear um grande ataque terrorista na região.

O sistema vigente em Hong Kong cai de vez?

Mesmo que não seja para já, será muito mais cedo do que os defensores do modelo democrático poderiam prever. Ao abrigo do acordo de devolução de 1997, assinado entre a China e o Reino Unido, faltam mais de 20 anos para o fim do regime “um país, dois sistemas”, mas os garrotes a várias das liberdades especiais de que a ex-colónia britânica gozava estão em contínua e acelerada erosão. A imposição da lei da segurança nacional por Pequim silenciou os protestos que se faziam ouvir desde março de 2019. Mais recentemente, o abandono em massa de todos os deputados da oposição no Parlamento de Hong Kong foi mais uma prova de que a luta está, se não perdida, gravemente ferida.

O equilíbrio no Mar da China vai mudar com o crescente domínio de Pequim?

Vai pelo menos contribuir para aumentar a tensão naquelas águas. O Mar do Sul da China é apetecível não só pelo controlo que permite do intenso fluxo comercial como pelas suas reservas naturais, em especial petróleo e gás. Vários países disputam a soberania sobre ilhas, recifes e outros pontos estratégicos, como Vietname, Malásia, Filipinas, Brunei, Indonésia e Taiwan, além da China. O que causa mais preocupação é a crescente presença de embarcações militares chinesas e norte-americanas (e forças aliadas), envolvidas em exercícios ao estilo de marcação cerrada em que a mais pequena distração pode originar uma verdadeira batalha naval.

O Irão vai voltar ao acordo nuclear com o ocidente?

Há esperança, agora que já não é Donald Trump a gerir a política externa da Casa Branca, mas as probabilidades são poucas. O Presidente eleito, Joe Biden, disse em campanha que quer reativar o acordo nuclear de 2015, que previa o fim das sanções económicas ao Irão em troca do fim do seu programa de enriquecimento de urânio. A República Islâmica já tem 12 vezes mais urânio do que o estipulado neste acordo (diz a Agência Internacional de Energia Atómica) e garante que vai exigir indemnizações pelos três anos de pesadas sanções que Trump repôs. Justificar politicamente uma compensação monetária de milhões ao maior rival dos Estados Unidos no Médio Oriente pode revelar-se impossível até para o Partido Democrata.

Benjamin Netanyahu perderá por fim o poder?

É possível, mas não garantido. Em 2021 Israel realizará novas eleições legislativas, as quartas em dois anos, e Netanyahu volta a ser opção. Os resultados obtidos pelo seu partido (Likud, de direita) nos últimos escrutínios têm-no obrigado a uma engenharia negocial, mas sempre tem conseguido manter o cargo de primeiro-ministro. A mais recente crise política penaliza-o mas, dizem as sondagens, prejudica muito mais as forças à esquerda que se lhe opõem. Netanyahu terá a vida dificultada pelo início do julgamento por corrupção, em fevereiro, mas já deu mostras de ser um mestre da política.

A guerra civil na Etiópia vai transbordar para a região?

Mês e meio após o início das hostilidades, diz-se da região do Tigray, no norte, que é a última fronteira para a definição do carácter do Governo etíope. Um conflito político e ideológico que crescia em lume brando transformou-se numa guerra civil sangrenta e ameaça desestabilizar a região já instável e vulnerável em que se insere. O primeiro-ministro Abiy Ahmed fez-se eleger em 2018 como paladino da paz, ganhou o Nobel em 2019 e, passado um ano, não hesitou em resolver a disputa avançando com as tropas federais sobre a capital do Tigray, cujo governo regional é chefiado pelo partido que mandou no país 30 anos e que Ahmed desalojou. Para trás ficaram três décadas de guerra com a Eritreia, que pode agora estalar de novo, e ficam, para já, centenas de milhares de deslocados internos e refugiados no vizinho Sudão.

Moçambique vai receber ajuda internacional para combater o terrorismo?

Depois de três anos de secretismo sobre a resposta (ou ausência dela) aos ataques terroristas que assolam a província de Cabo Delgado e já obrigaram meio milhão de pessoas a abandonar as suas casas, o Governo moçambicano apelou à ajuda internacional. O Presidente Filipe Nyusi foi inicialmente vago, mas desde 15 de dezembro o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, foi mandatado pela União Europeia para preparar a ajuda europeia a Moçambique. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, pediu ao ministro português que se desloque a Moçambique como seu enviado para abordar a a situação com as autoridades locais. A juntar aos mercenários esparsos que se sabe estarem a operar no terreno, não se percebe sequer se em articulação com o exército moçambicano, parece ser o primeiro passo para futuras ações concretas.

A Líbia vai finalmente ter governo?

É uma tarefa difícil, já que um governo nacional terá de conciliar interesses conflituantes por parte de atores nacionais, mas também internacionais, que participam na guerra em curso em apoio dos dois lados: Turquia e Qatar estão ao lado do Governo de Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas; Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos apoiam a ofensiva do general Khalifa Haftar, a partir do leste do país. Para complicar, há posições dúbias, como a da França, que oficialmente está ao lado de Trípoli e na prática apoia a rebelião.

Textos escritos por Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares, Margarida Mota, Pedro Cordeiro.

(IMAGEM PXHERE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Marrocos normaliza relação com Israel e recebe presente de Donald Trump

Ao mesmo tempo que saudava a oficialização da relação diplomática entre marroquinos e israelitas, o Presidente dos Estados Unidos anunciou que vai reconhecer a soberania de Marrocos sobre o território do Sara Ocidental

E vão quatro. Depois de Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Sudão, o reino de Marrocos tornou-se, esta quinta-feira, o quarto país árabe a aceitar a normalização da sua relação diplomática com Israel. Tudo isto em apenas quatro meses.

O anúncio foi feito na rede social Twitter pelo Presidente dos Estados Unidos, que mediou o processo. Na sua reta final em funções, a Administração Trump tem investido na aproximação entre Israel e o mundo árabe sunita, num quadro designado por Acordos de Abraão.

Donald Trump saudou “outro avanço histórico”. “Os nossos dois GRANDES amigos, Israel e o reino de Marrocos, concordaram em estabelecer relações diplomáticas plenas — um imenso avanço pela paz no Médio Oriente!”

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1337067073051238400

Este passo entre Rabat e Telavive é a consagração oficial de uma relação que já existia clandestinamente e que agora vai desenvolver-se sem constrangimentos. Segundo a imprensa israelita, a companhia aérea El Al está a equacionar pelo menos um voo diário entre os dois países e operadores turísticos estimam que 150 mil israelitas possam, em 2021, escolher Marrocos como destino de férias.

Para Israel, trata-se da confirmação de que é um país cada vez menos só entre os vizinhos árabes. Em comunicado, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, agradeceu ao rei de Marrocos a sua “decisão histórica” e prometeu uma “paz muito calorosa” entre os dois países.

Uma palavra aos palestinianos

Já o monarca de Marrocos, Mohammed VI, falou ao telefone com o Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas — que vê mais um “irmão” árabe afastar-se da solidariedade árabe em torno da causa palestiniana —, a quem reafirmou o compromisso de Marrocos em relação à solução de dois Estados para o conflito israelo-palestiniano.

Porém, para Marrocos, este acordo traz um bónus precioso oferecido por Washington: os Estados Unidos comprometem-se a reconhecer a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental. O território está ocupado desde 1975 por Marrocos (que o encara como as suas províncias do sul), mas as Nações Unidas prometeram ao povo sarauí um referendo de autodeterminação.

No Twitter, Trump defendeu que “a proposta de autonomia séria, credível e realista de Marrocos é a ÚNICA base para uma solução justa e duradoura” para o conflito do Sara Ocidental. E acrescentou: “Marrocos reconheceu os Estados Unidos em 1777. É portanto adequado que reconheçamos a soberania deles sobre o Sara Ocidental”.

https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1337067127455539201

Esta alteração da posição dos Estados Unidos já mereceu reação das autoridades da República Árabe Sarauí Democrática (RASD) — que é reconhecida por dezenas de países e membro de pleno direito da União Africa, em igualdade de condições com Marrocos.

Em comunicado, a RASD e a Frente Polisário (reconhecida pela comunidade internacional como legítima representante do povo sarauí) condenam a decisão de Trump “em fim de mandato” de reconhecer a Marrocos “aquilo que nunca foi seu, ou seja, a soberania sobre o Sara Ocidental”.

“A decisão do senhor Trump constitui uma flagrante violação da Carta das Nações Unidas e dos princípios que regem a legalidade internacional, governos e tribunais internacionais, ao mesmo tempo que constitui uma séria obstrução dos esforços da comunidade internacional na busca de uma solução justa e pacífica para o conflito entre a República Sarauí e o reino de Marrocos. Além disso, esta decisão acontece a poucos dias de Marrocos ter feito explodir o cessar-fogo com a agressão perpetrada a 13 de novembro.”

A aproximação entre Israel e o mundo árabe sunita tem sido prioridade da diplomacia norte-americana, e em especial, do conselheiro e genro de Trump, Jared Kushner. Visa não só criar erosão na parede árabe que isolava Israel na região, como sobretudo unir e fortalecer uma frente de oposição ao grande inimigo de todos na região — o Irão.

Egito foi pioneiro

Abdel Fattah al-Sisi, Presidente do Egito — outro dos pesos-pesados da geopolítica do Médio Oriente —, foi o primeiro dirigente árabe a reagir ao novo acordo. “Se esta etapa der frutos, criará mais estabilidade e cooperação na nossa região”, afirmou em comunicado.

O Egito foi o primeiro país árabe a estabelecer um tratado de paz com Israel, assinado em 1978, seguido pela Jordânia, em 1994. No total, são agora seis os membros da Liga Árabe (de um total de 22) com relações diplomáticas com o Estado judeu. Porém, uma coisa são acordos celebrados entre governos, outra a sua aceitação pelos povos árabes, no seio dos quais continua a prevalecer um forte sentimento anti-Israel.

Esta semana, a imprensa israelita deu conta de preparativos para uma visita oficial de Netanyahu ao Egito. A confirmar-se, será a primeira de um líder israelita desde 2010, ano em que Netanyahu se encontrou com o então Presidente egípcio, Hosni Mubarak, no Cairo. Poucas visitas para dois países que têm entre si um território problemático chamado Faixa de Gaza.

(IMAGEM Bandeiras de Israel e de Marrocos MOROCCO JEWISH TIMES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

As causas e as contradições políticas de Diego Armando Maradona

Além de um futebolista talentoso, Diego Armando Maradona foi uma personalidade política. Foi íntimo de líderes socialistas revolucionários, tomou partido por causas e tornou-se porta-voz dos mais desfavorecidos. “A trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, diz ao Expresso um antropólogo brasileiro, que ajuda a desvendar o carisma do futebolista

É consensual que Diego Maradona foi uma lenda do futebol mundial, mas o impacto da sua personalidade não se esgotou nos relvados. Fora dos estádios, o argentino abraçou causas políticas, tornou-se voz dos mais desfavorecidos e assumiu-se como ponta de lança da esquerda revolucionária latinoamericana.

Tornou-se próximo de líderes como o cubano Fidel Castro, os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro e o boliviano Evo Morales, e adotou o seu discurso anti-imperialista. “Todas essas figuras expressam de modo coerente a atitude de ‘rebeldia contra os poderosos’ que sempre marcou a trajetória de Maradona”, comenta ao Expresso o antropólogo brasileiro Édison Gastaldo, que tem vários livros publicados na área do futebol.

“As tatuagens que fez representando Che Guevara [no braço direito] e Fidel Castro [‘o mais sábio de todos’, segundo Maradona, na sua perna esquerda, também a mais sábia] ajudam a compor esta representação mediática, vinculando-o ao atrevimento de, representando um pequeno país, desafiar as grandes potências em nome de suas crenças”, prossegue o especialista.

Com Fidel, Maradona tinha uma relação especial. Considerava-o “um segundo pai”. Ambos morreriam num 25 de novembro, separados por quatro anos. Para trás ficaram quase 30 anos de amizade improvável entre um político culto e um futebolista exagerado.

Maradona mostra a Fidel Castro a tatuagem do cubano na sua perna, durante um encontro a 29 de outubro de 2001, no Palácio da Revolução, em Havana REUTERS

Diego e Fidel conheceram-se em 1987, um ano após o futebolista liderar a Argentina na conquista do Mundial do México. A amizade criou raízes e, em 2000, três anos depois de Maradona ter arrumado as chuteiras, Fidel acolheu-o em Cuba para que se reabilitasse da dependência do álcool e da cocaína.

O argentino viveu quatro anos em Havana e, quando regressou a Buenos Aires, em 2005, experimentou a televisão, apresentando o programa semanal “La Noche del 10”, o seu número nos relvados. Fidel Castro foi um dos seus convidados.

A convivência com o ditador cubano determinou a aproximação de Maradona a outros líderes revolucionários e reforçou o seu sentimento anti-americano, que o argentino expressou de múltiplas formas. A 19 de agosto de 2007, foi convidado de Hugo Chávez no programa televisivo semanal “Aló Presidente”. “Acredito em Chávez, sou chavista. Tudo o que Fidel faz, tudo o que Chávez faz por mim é o melhor [que alguém pode fazer]”, disse. “Odeio tudo o que vem dos Estados Unidos. Odeio com todas as minhas forças.”

A 4 de novembro de 2005, Maradona surge na companhia de Hugo Chávez, com uma t-shirt onde chama “criminoso de guerra” a George W. Bush. Participavam ambos num protesto no estádio Mar del Plata, contra a realização da Cimeira das Américas, na mesma cidade argentina AFP / GETTY IMAGES

A profunda admiração do argentino por dirigentes socialistas e revolucionários tem raízes nas suas origens humildes. Diego Armando Maradona nasceu a 30 de outubro de 1960 e cresceu num barraco sem eletricidade nem água canalizada, no bairro Villa Fiorito, nos subúrbios de Buenos Aires. Era o quinto de oito lhos (e o primeiro rapaz) de Don Diego, operário, e Doña Tota, empregada doméstica. A dez dias de completar 16 anos, estreou-se na Primera División, pela equipa dos Argentinos Juniors, deixando definitivamente a escola para trás.

“Como jogador profissional desde a infância, Maradona teve poucas oportunidades de escolarização formal ou de formação política tradicional. A sua ‘escola’ foi a ‘escola da vida’”, a rma Édison Gastaldo. “Como diz o antropólogo argentino Eduardo Archetti [no livro ‘Masculinidades. Fútbol, tango y polo en la Argentina’ (2003)], a trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, uma das suas muitas alcunhas.

O truque da gambeta

“Pibe é gíria argentina para ‘garoto, ‘menino’, mas não um qualquer. O pibe é um menino pobre, que mora na periferia, anda descalço nas ruas e joga futebol num potrero [campo de terra], com uma bola feita de trapos cobertos por um pé de meia. No chão enlameado do potrero, o pibe não acredita em jogo coletivo. No jogo dos meninos, quem tem a posse da pelota é imediatamente acossado por todos os lados. Para livrar-se dos adversários, o pibe usa a gambeta, o drible, o jogo de corpo, a picardia”, continua o professor do Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

“Esta associação que Maradona construiu desde a infância com o mito do pibe gambetero (e que sempre reforçou em atitudes e declarações públicas) explica, em boa medida, as muitas inconsistências e contradições no seu posicionamento político”, conclui Gastaldo. “Um pibe age por impulso, diz o que lhe vem à cabeça, não se importa com as consequências. Coerência, se a há, é que o pibe sempre disse o que estava a pensar.”

“La casa de D10S”, onde Diego Maradona cresceu, em Villa Fiorito, um bairro de lata nos arredores de Buenos Aires TOMAS CUESTA / GETTY IMAGES

Uma das contradições políticas do astro argentino prende-se com a forma como sempre abraçou a causa palestiniana e, ao mesmo tempo, ignorou a pretensão do povo sarauí à autodeterminação. “Apoio a Palestina sem qualquer receio”, disse Maradona, que chegou a descrever-se como “fã número um do povo palestiniano”.

Em 2018, esse apoio ficou registado em vídeo, durante um breve encontro com o Presidente da Autoridade Palestiniana, em Moscovo: “Sou palestiniano de coração”, disse Maradona, ao abraçar Mahmud Abbas.

Solidário com a Palestina ocupada, Maradona trocou de campo quando, em 2015, foi convidado por Marrocos para participar num Jogo pela Paz, realizado em El Aiune, capital do Sara Ocupado. Foi durante uma visita do rei marroquino Mohammed VI ao território, antiga colónia espanhola anexada em 1975.

“O comportamento político de Maradona era errático e volúvel, a sua coerência era mais afetiva do que programática”, justifica o académico brasileiro. “Ao longo de décadas de vida pública, passou de apoiante do [ex-Presidente argentino] Carlos Menem e do seu projeto neoliberal a amigo íntimo de Fidel Castro e Hugo Chávez.”

Desobedecer para ajudar quem precisa

Maradona sempre demonstrou empatia pelos necessitados e disponibilidade para colaborar com iniciativas solidárias. A 17 de março de 2008, desafiou uma ordem da FIFA e disputou um amigável, em La Paz, contra uma equipa capitaneada pelo Presidente da Bolívia, Evo Morales. O jogo visava angariar alimentos para vítimas de inundações provocadas pelo fenómeno climático La Niña.

A FIFA proibia jogos mais de 2750 metros acima do nível do mar e a capital boliviana fica a mais de 3500. “Demonstramos à FIFA que se pode correr em La Paz”, sentenciou Maradona.

Noutra partida reveladora do seu espírito irrequieto, citada no livro do antropólogo argentino Pablo Alabarces “Fútbol y patria. El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina” (2002), realizada a 15 de abril de 1992, Maradona disponibilizou-se a participar num jogo de homenagem a um futebolista falecido, que visava arrecadar fundos para a viúva.

O craque argentino estava suspenso dos relvados por 15 meses, apanhado nas malhas do doping. Por essa razão a FIFA ameaçava punir outros jogadores que participassem na iniciativa. O jogo foi avante com uma boa dose de criatividade e rebeldia: as equipas compuseram-se de 12 jogadores, a partida durou 82 minutos e os lançamentos laterais eram feitos com o pé. Não havia, pois, condições para a FIFA considerar a iniciativa um jogo oficial. “Gambetearam a proibição da FIFA”, comenta Édison Gastaldo.

Recém-chegado a Nápoles — onde jogou entre 1984 e 1992 —, Maradona ignorou as indicações do seu novo clube e acedeu a jogar num lamaçal para angariar fundos destinados a pagar a cirurgia de uma criança.

No pavilhão do Sportivo Pereyra de Barracas, em Buenos Aires, onde crianças jogam futebol de salão, Lionel Messi (à esquerda) e Diego Maradona recriam uma versão futebolística da obra de Miguel Ângelo “A Criação de Adão” JUAN MABROMATA / AFP / GETTY IMAGES

“No imaginário popular da Argentina, em Nápoles e em muitos outros lugares, el pibe de oro mostra-se como Robin dos Bosques ou Peter Pan, heróis jovens e rebeldes, que usam inteligência e malícia para enfrentar a força bruta dos poderosos”, explica o antropólogo brasileiro.

“Acredito que houve um ‘encaixe’ da figura pública de Maradona com um poderoso complexo cultural pré-existente. Isso fez com que muito do que ele disse ou fez fosse ‘lido’ ou ‘interpretado’ à luz desse complexo. Por isso, muitos torcedores na Argentina invariavelmente ‘compreendiam’ e ‘desculpavam’ as inúmeras recaídas de Maradona ou as suas punições por indisciplina. Afinal, os pibes são assim: intensos e inconsequentes. Mas, ao mesmo tempo, leais aos seus amigos e familiares. Pode-se acusar um pibe de muitas coisas, mas não de ingratidão.”

Porta-voz dos desfavorecidos

Quando, já retirado dos relvados, Maradona lançou a sua autobiogra a, intitulou-a “Yo soy el Diego de la gente” (2000). Autoproclamado campeão dos pobres, foi genuinamente uma voz dos desfavorecidos. Pode-se quase traçar um paralelo com Eva Perón, a primeira-dama (1946-52) de origens humildes que se proclamava defensora dos descamisados. Separadas por mais de meio século, as suas mortes geraram filas de fiéis à porta da Casa Rosada, residência oficial do Presidente argentino.

“Um ponto de relativa coerência na sua imagem pública consiste em apresentar-se como porta-voz dos desvalidos, daqueles que na Argentina são pejorativamente chamados ‘cabecitas negras’. Muitas vezes, Maradona fez uso dos fartos microfones e câmaras que o procuravam para falar em nome ‘de la gente’, do povo comum. Esse ‘tomar partido’ em público pelos pobres é uma opção bastante coerente com o mito que Maradona construiu para si.”

A 1 de setembro de 2014, Maradona foi recebido no Vaticano pelo conterrâneo Jorge Mario Bergoglio, ex-arcebispo de Buenos Aires. No mesmo dia, participou num “Jogo Interreligioso pela Paz”, organizado pelo Papa Francisco PIER MARCO TACCA / GETTY IMAGES

Ao longo da sua carreira, houve um jogo em particular que ajudou a consolidar o mito do “pibe de ouro”: o famoso Argentina-Inglaterra, nos quartos de final do Mundial do México, disputado a 22 de junho de 1986. Em quatro minutos, Maradona marcou dois dos golos mais famosos na história do futebol — a “Mão de Deus” e o “Golo do Século” — num desafio encarado como vingança dos argentinos sobre os ingleses.

Quatro anos antes, os dois países confrontaram-se durante dois meses numa guerra sangrenta pela posse do arquipélago das Malvinas (Falklands para os ingleses). Morreram mais de 600 argentinos e 250 britânicos e, no fim, as ilhas permaneceram sob a Coroa inglesa.

A 17 de agosto de 2015, durante uma visita a Tunes, para lmar um anúncio publicitário, Maradona pediu desculpa ao árbitro do jogo, o tunisino Ali bin Nasser, pela irregularidade do golo marcado com a mão. Porém, nunca pediu desculpa aos ingleses. Ainda em abril deste ano reivindicou a soberania argentina sobre as Malvinas, homenageando os veteranos numa publicação no Instagram: “A honra e a glória é tudo para vocês, rapazes. Ainda temos orgulho. As Malvinas são argentinas”.

O aperto de mão antes do início do jogo, entre Maradona e Peter Shilton, o guarda-redes inglês a quem o argentino iria marcar dois golos, no Mundial de 1986 DAVID CANNON / GETTY IMAGES

“Todos sabiam que aquele jogo era a chance de ‘desforra’ dos argentinos pela humilhante derrota militar nas Malvinas. Uma ‘desforra’ simbólica, mas uma humilhação verdadeira”, diz Édison Gastaldo.

Segundo o antropólogo Pablo Alabarces, Maradona declarou que, na ocasião, estavam todos instruídos para dizer que era apenas um jogo de futebol e que a partida nada tinha que ver com a guerra. No balneário, o sentimento que existia era de procura da vingança dos soldados argentinos (outros pibes como eles…) abatidos numa guerra estúpida.

No documentário “Maradona by Kusturica” (2008), o futebolista não se furtou a descrever o seu golo batoteiro: “Foi como roubar a carteira a um inglês”. Já no segundo, em que atravessou endiabrado mais de metade do campo até meter a bola na baliza, parecia estar a fintar meio exército britânico.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

(FOTO PRINCIPAL Socialista, terceiro-mundista e sobretudo fidelista, Maradona foi, além de um futebolista talentoso, uma personalidade política MARCELO ENDELLI / GETTY IMAGES)