Além de um futebolista talentoso, Diego Armando Maradona foi uma personalidade política. Foi íntimo de líderes socialistas revolucionários, tomou partido por causas e tornou-se porta-voz dos mais desfavorecidos. “A trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, diz ao Expresso um antropólogo brasileiro, que ajuda a desvendar o carisma do futebolista
É consensual que Diego Maradona foi uma lenda do futebol mundial, mas o impacto da sua personalidade não se esgotou nos relvados. Fora dos estádios, o argentino abraçou causas políticas, tornou-se voz dos mais desfavorecidos e assumiu-se como ponta de lança da esquerda revolucionária latinoamericana.
Tornou-se próximo de líderes como o cubano Fidel Castro, os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro e o boliviano Evo Morales, e adotou o seu discurso anti-imperialista. “Todas essas figuras expressam de modo coerente a atitude de ‘rebeldia contra os poderosos’ que sempre marcou a trajetória de Maradona”, comenta ao Expresso o antropólogo brasileiro Édison Gastaldo, que tem vários livros publicados na área do futebol.
“As tatuagens que fez representando Che Guevara [no braço direito] e Fidel Castro [‘o mais sábio de todos’, segundo Maradona, na sua perna esquerda, também a mais sábia] ajudam a compor esta representação mediática, vinculando-o ao atrevimento de, representando um pequeno país, desafiar as grandes potências em nome de suas crenças”, prossegue o especialista.
Com Fidel, Maradona tinha uma relação especial. Considerava-o “um segundo pai”. Ambos morreriam num 25 de novembro, separados por quatro anos. Para trás ficaram quase 30 anos de amizade improvável entre um político culto e um futebolista exagerado.

Diego e Fidel conheceram-se em 1987, um ano após o futebolista liderar a Argentina na conquista do Mundial do México. A amizade criou raízes e, em 2000, três anos depois de Maradona ter arrumado as chuteiras, Fidel acolheu-o em Cuba para que se reabilitasse da dependência do álcool e da cocaína.
O argentino viveu quatro anos em Havana e, quando regressou a Buenos Aires, em 2005, experimentou a televisão, apresentando o programa semanal “La Noche del 10”, o seu número nos relvados. Fidel Castro foi um dos seus convidados.
A convivência com o ditador cubano determinou a aproximação de Maradona a outros líderes revolucionários e reforçou o seu sentimento anti-americano, que o argentino expressou de múltiplas formas. A 19 de agosto de 2007, foi convidado de Hugo Chávez no programa televisivo semanal “Aló Presidente”. “Acredito em Chávez, sou chavista. Tudo o que Fidel faz, tudo o que Chávez faz por mim é o melhor [que alguém pode fazer]”, disse. “Odeio tudo o que vem dos Estados Unidos. Odeio com todas as minhas forças.”

A profunda admiração do argentino por dirigentes socialistas e revolucionários tem raízes nas suas origens humildes. Diego Armando Maradona nasceu a 30 de outubro de 1960 e cresceu num barraco sem eletricidade nem água canalizada, no bairro Villa Fiorito, nos subúrbios de Buenos Aires. Era o quinto de oito lhos (e o primeiro rapaz) de Don Diego, operário, e Doña Tota, empregada doméstica. A dez dias de completar 16 anos, estreou-se na Primera División, pela equipa dos Argentinos Juniors, deixando definitivamente a escola para trás.
“Como jogador profissional desde a infância, Maradona teve poucas oportunidades de escolarização formal ou de formação política tradicional. A sua ‘escola’ foi a ‘escola da vida’”, a rma Édison Gastaldo. “Como diz o antropólogo argentino Eduardo Archetti [no livro ‘Masculinidades. Fútbol, tango y polo en la Argentina’ (2003)], a trajetória de Maradona representa a encarnação de um mito popular da cultura argentina, ‘a saga do pibe de ouro’”, uma das suas muitas alcunhas.
O truque da gambeta
“Pibe é gíria argentina para ‘garoto, ‘menino’, mas não um qualquer. O pibe é um menino pobre, que mora na periferia, anda descalço nas ruas e joga futebol num potrero [campo de terra], com uma bola feita de trapos cobertos por um pé de meia. No chão enlameado do potrero, o pibe não acredita em jogo coletivo. No jogo dos meninos, quem tem a posse da pelota é imediatamente acossado por todos os lados. Para livrar-se dos adversários, o pibe usa a gambeta, o drible, o jogo de corpo, a picardia”, continua o professor do Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
“Esta associação que Maradona construiu desde a infância com o mito do pibe gambetero (e que sempre reforçou em atitudes e declarações públicas) explica, em boa medida, as muitas inconsistências e contradições no seu posicionamento político”, conclui Gastaldo. “Um pibe age por impulso, diz o que lhe vem à cabeça, não se importa com as consequências. Coerência, se a há, é que o pibe sempre disse o que estava a pensar.”

Uma das contradições políticas do astro argentino prende-se com a forma como sempre abraçou a causa palestiniana e, ao mesmo tempo, ignorou a pretensão do povo sarauí à autodeterminação. “Apoio a Palestina sem qualquer receio”, disse Maradona, que chegou a descrever-se como “fã número um do povo palestiniano”.
Em 2018, esse apoio ficou registado em vídeo, durante um breve encontro com o Presidente da Autoridade Palestiniana, em Moscovo: “Sou palestiniano de coração”, disse Maradona, ao abraçar Mahmud Abbas.
Solidário com a Palestina ocupada, Maradona trocou de campo quando, em 2015, foi convidado por Marrocos para participar num Jogo pela Paz, realizado em El Aiune, capital do Sara Ocupado. Foi durante uma visita do rei marroquino Mohammed VI ao território, antiga colónia espanhola anexada em 1975.
“O comportamento político de Maradona era errático e volúvel, a sua coerência era mais afetiva do que programática”, justifica o académico brasileiro. “Ao longo de décadas de vida pública, passou de apoiante do [ex-Presidente argentino] Carlos Menem e do seu projeto neoliberal a amigo íntimo de Fidel Castro e Hugo Chávez.”
Desobedecer para ajudar quem precisa
Maradona sempre demonstrou empatia pelos necessitados e disponibilidade para colaborar com iniciativas solidárias. A 17 de março de 2008, desafiou uma ordem da FIFA e disputou um amigável, em La Paz, contra uma equipa capitaneada pelo Presidente da Bolívia, Evo Morales. O jogo visava angariar alimentos para vítimas de inundações provocadas pelo fenómeno climático La Niña.
A FIFA proibia jogos mais de 2750 metros acima do nível do mar e a capital boliviana fica a mais de 3500. “Demonstramos à FIFA que se pode correr em La Paz”, sentenciou Maradona.
Noutra partida reveladora do seu espírito irrequieto, citada no livro do antropólogo argentino Pablo Alabarces “Fútbol y patria. El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina” (2002), realizada a 15 de abril de 1992, Maradona disponibilizou-se a participar num jogo de homenagem a um futebolista falecido, que visava arrecadar fundos para a viúva.
O craque argentino estava suspenso dos relvados por 15 meses, apanhado nas malhas do doping. Por essa razão a FIFA ameaçava punir outros jogadores que participassem na iniciativa. O jogo foi avante com uma boa dose de criatividade e rebeldia: as equipas compuseram-se de 12 jogadores, a partida durou 82 minutos e os lançamentos laterais eram feitos com o pé. Não havia, pois, condições para a FIFA considerar a iniciativa um jogo oficial. “Gambetearam a proibição da FIFA”, comenta Édison Gastaldo.
Recém-chegado a Nápoles — onde jogou entre 1984 e 1992 —, Maradona ignorou as indicações do seu novo clube e acedeu a jogar num lamaçal para angariar fundos destinados a pagar a cirurgia de uma criança.

“No imaginário popular da Argentina, em Nápoles e em muitos outros lugares, el pibe de oro mostra-se como Robin dos Bosques ou Peter Pan, heróis jovens e rebeldes, que usam inteligência e malícia para enfrentar a força bruta dos poderosos”, explica o antropólogo brasileiro.
“Acredito que houve um ‘encaixe’ da figura pública de Maradona com um poderoso complexo cultural pré-existente. Isso fez com que muito do que ele disse ou fez fosse ‘lido’ ou ‘interpretado’ à luz desse complexo. Por isso, muitos torcedores na Argentina invariavelmente ‘compreendiam’ e ‘desculpavam’ as inúmeras recaídas de Maradona ou as suas punições por indisciplina. Afinal, os pibes são assim: intensos e inconsequentes. Mas, ao mesmo tempo, leais aos seus amigos e familiares. Pode-se acusar um pibe de muitas coisas, mas não de ingratidão.”
Porta-voz dos desfavorecidos
Quando, já retirado dos relvados, Maradona lançou a sua autobiogra a, intitulou-a “Yo soy el Diego de la gente” (2000). Autoproclamado campeão dos pobres, foi genuinamente uma voz dos desfavorecidos. Pode-se quase traçar um paralelo com Eva Perón, a primeira-dama (1946-52) de origens humildes que se proclamava defensora dos descamisados. Separadas por mais de meio século, as suas mortes geraram filas de fiéis à porta da Casa Rosada, residência oficial do Presidente argentino.
“Um ponto de relativa coerência na sua imagem pública consiste em apresentar-se como porta-voz dos desvalidos, daqueles que na Argentina são pejorativamente chamados ‘cabecitas negras’. Muitas vezes, Maradona fez uso dos fartos microfones e câmaras que o procuravam para falar em nome ‘de la gente’, do povo comum. Esse ‘tomar partido’ em público pelos pobres é uma opção bastante coerente com o mito que Maradona construiu para si.”

Ao longo da sua carreira, houve um jogo em particular que ajudou a consolidar o mito do “pibe de ouro”: o famoso Argentina-Inglaterra, nos quartos de final do Mundial do México, disputado a 22 de junho de 1986. Em quatro minutos, Maradona marcou dois dos golos mais famosos na história do futebol — a “Mão de Deus” e o “Golo do Século” — num desafio encarado como vingança dos argentinos sobre os ingleses.
Quatro anos antes, os dois países confrontaram-se durante dois meses numa guerra sangrenta pela posse do arquipélago das Malvinas (Falklands para os ingleses). Morreram mais de 600 argentinos e 250 britânicos e, no fim, as ilhas permaneceram sob a Coroa inglesa.
A 17 de agosto de 2015, durante uma visita a Tunes, para lmar um anúncio publicitário, Maradona pediu desculpa ao árbitro do jogo, o tunisino Ali bin Nasser, pela irregularidade do golo marcado com a mão. Porém, nunca pediu desculpa aos ingleses. Ainda em abril deste ano reivindicou a soberania argentina sobre as Malvinas, homenageando os veteranos numa publicação no Instagram: “A honra e a glória é tudo para vocês, rapazes. Ainda temos orgulho. As Malvinas são argentinas”.

“Todos sabiam que aquele jogo era a chance de ‘desforra’ dos argentinos pela humilhante derrota militar nas Malvinas. Uma ‘desforra’ simbólica, mas uma humilhação verdadeira”, diz Édison Gastaldo.
Segundo o antropólogo Pablo Alabarces, Maradona declarou que, na ocasião, estavam todos instruídos para dizer que era apenas um jogo de futebol e que a partida nada tinha que ver com a guerra. No balneário, o sentimento que existia era de procura da vingança dos soldados argentinos (outros pibes como eles…) abatidos numa guerra estúpida.
No documentário “Maradona by Kusturica” (2008), o futebolista não se furtou a descrever o seu golo batoteiro: “Foi como roubar a carteira a um inglês”. Já no segundo, em que atravessou endiabrado mais de metade do campo até meter a bola na baliza, parecia estar a fintar meio exército britânico.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui
(FOTO PRINCIPAL Socialista, terceiro-mundista e sobretudo fidelista, Maradona foi, além de um futebolista talentoso, uma personalidade política MARCELO ENDELLI / GETTY IMAGES)