Covax, a boia de salvação dos países pobres

Mecanismo global de aquisição e distribuição de vacinas é esperança dos que não conseguem aceder ao mercado

Uma crise global exige respostas globais. Porém, no caso específico da pandemia do novo coronavírus, que contagia sem olhar a etnias, credos ou estatuto social, a solução ameaça não chegar a todos ao mesmo tempo. A corrida à vacina — na qual 7800 milhões de pessoas em todo o mundo depositam a esperança do regresso à normalidade — trava-se a duas velocidades.

Num grupo, países ricos fazem-se valer do seu poder negocial e açambarcam doses em quantidade suficiente para imunizar muito mais do que as respetivas populações. Noutro, sem capacidade para competir nesse mercado, os mais pobres ficam dependentes de quem os ajude. “Este problema foi identificado logo no início da pandemia, quando se iniciou a corrida às vacinas. Por essa razão, foi criado o Covax”, diz ao Expresso o cirurgião Nelson Olim, consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS).

O Covax é uma plataforma inovadora, financiada por países, por filantropos e pelo sector privado, lançada a 4 de junho, na Cimeira Global das Vacinas, com um duplo fim: investir no desenvolvimento de um portefólio diversificado de vacinas e garantir o acesso equitativo aos países participantes nesse consórcio.

“Além de promover a investigação, o desenvolvimento e a produção de vacinas para a covid-19, o Covax também negoceia os seus preços”, salienta o médico. “Todos os países participantes, independentemente do seu nível económico, terão acesso às vacinas assim que estas forem desenvolvidas e aprovadas. Pretende-se exatamente prevenir o açambarcamento da produção pelos países mais ricos.”

Nove doses por pessoa

Até ao final de 2021, o Covax espera distribuir dois mil milhões de doses de vacinas para a covid-19, assegurando dessa forma a vacinação dos 20% mais vulneráveis da população de cada país, incluindo daqueles sem capacidade para financiar o mecanismo. “O Covax é, provavelmente, a única garantia de que os países mais pobres terão acesso à vacinação em massa”, diz Nelson Olim.

Segundo um projeto da Universidade Duke, da Carolina do Norte (EUA), que supervisiona as compras de vacinas para a covid-19 em todo o mundo, até ao momento já foram adquiridas mais de 7300 milhões de doses, tendo mais de metade (3850 milhões) sido assegurada pelos países mais ricos — que, segundo o Banco Mundial, correspondem a 16% da população do planeta. O Canadá surge como caso extremo, com uma média de mais de nove doses per capita.

Este volume de encomendas não só esgota a capacidade de produção dos laboratórios que estão mais perto de garantir uma distribuição em massa, como mina a perspetiva de vacinação dos países mais pobres, que correm o risco de só a iniciarem após muitos outros a terem terminado.

Coordenado pela OMS, pela Coligação para a Inovação na Preparação para Epidemias (CEPI), de Oslo, e pela Aliança Global para as Vacinas (Gavi) — iniciativa da Fundação Bill & Melinda Gates e que, a partir de janeiro, será dirigida por Durão Barroso —, o Covax surgiu para encurtar distâncias.

“Esta plataforma pode vir a ser um embrião de um sistema universal” de distribuição de vacinas, defende Nelson Olim. “Nunca será possível garantir igual acesso, uma vez que os países mais desenvolvidos poderão sempre comprar em paralelo. Mas aquilo que se garante é acesso àqueles que não têm capacidade de comprar.”

Um bem público global

Neste esforço conjunto, a União Europeia é atualmente o maior doador. “A Equipa Europa — que inclui a Comissão Europeia, o Banco Europeu de Investimento e os Estados-membros [os 27 da UE, a Noruega e a Islândia] — já anunciou contribuições de mais de €870 milhões para o Covax”, disse ao Expresso Stefan De Keersmaecker, porta-voz da Comissão Europeia para as questões da saúde. Ao mesmo tempo, “os Estados-membros têm a possibilidade de doar a outros países parte das vacinas compradas” por Bruxelas e que serão distribuídas pelos 27 Estados-membros.

A UE já contratualizou 1965 milhões de doses junto de seis laboratórios, muito mais do que o necessário para vacinar (em duas doses) os seus 450 milhões de habitantes. “A UE está a demonstrar que leva a sério os seus compromissos de não deixar ninguém para trás e de fazer da vacina para a covid-19 um bem público global”, acrescenta o porta-voz da Comissão. “A UE continuará a ser um aliado na busca de melhores sistemas de saúde e cobertura universal da saúde.”

Estados Unidos e Rússia de fora

“Para os países em vias de desenvolvimento, o Covax é uma boia de salvação, sem a qual tão cedo não teriam acesso a estas novas vacinas”, realça o médico português. “Infelizmente, vivemos num mundo onde as economias mais frágeis já dependem em muito da ajuda internacional para quase tudo. Não é por acaso que o Programa Alimentar Mundial recebeu o prémio Nobel da Paz em 2020. E, neste caso, falamos de um programa que promove a ajuda para a mais primária das necessidades, a alimentação. Imagine-se tudo o resto: educação, saúde, saneamento…”

Contactada pelo Expresso, a Gavi informou que 189 países já aderiram ao Covax — Estados Unidos e Rússia estão de fora. E também que 92 países, sem meios para pagar as vacinas de que necessitam, são elegíveis para beneficiarem do mecanismo.

Um deles é Madagáscar, que anunciou há duas semanas não estar interessado em receber vacinas para a covid-19. As autoridades da ilha continuarão a confiar no CovidOrganics, uma bebida milagrosa produzida localmente, à base de artemísia, planta com propriedades antimaláricas, que muitos no país, a começar pelo Presidente, acreditam ser eficaz na prevenção e cura da doença. Apesar de não ter sido aprovado pela OMS, o preparado tem sido exportado para vários países africanos.

“Duvido que haja muitos países a negar o acesso à vacina”, afirma Nelson Olim, que tem experiência de emergência médica em contexto humanitário em territórios como Honduras, Nigéria, Congo, Somália, Sudão do Sul, Faixa de Gaza, Iémen, Irão e Afeganistão. “No entanto, a resistência psicológica à vacinação pelos mais variados motivos tornou-se um problema global. A principal razão pela qual ainda não se conseguiram erradicar doenças para as quais existe vacina, como, por exemplo, a poliomielite, é exatamente a propagação de crenças, sejam elas religiosas, culturais ou sociais.”

Recentemente, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, considerou o Covax “a maneira mais rápida para acabar com a pandemia. Trabalhar em conjunto através do Covax não é caridade. É do interesse de cada país controlar a pandemia e acelerar a recuperação económica global. Não é só a coisa certa a fazer, é também a coisa inteligente a fazer.”

OS NÚMEROS DA CORRIDA

9800
milhões de doses foram já compradas ou reservadas em todo o mundo. Os Estados Unidos garantiram 2600 milhões, a União Europeia quase 2000 milhões e a Índia 1600 milhões

700
milhões de doses foram asseguradas pelo mecanismo Covax, o quarto maior contratante. O objetivo é distribuir 2000 milhões até ao final de 2021

4800
milhões de doses é a capacidade de produção estimada das três farmacêuticas que estão mais perto de garantir uma distribuição em massa em 2021. A AstraZeneca/Oxford garante 3000 milhões, a Pfizer/BioNTech 1300 milhões e a Moderna 500 milhões

274
vacinas estão em desenvolvimento em todo o mundo, informou o Infarmed na última reunião de peritos e políticos: 59 estão em testes clínicos, 11 estão na última fase de desenvolvimento e 6 estão em avaliação na União Europeia

(IMAGEM PIXABAY)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de dezembro de 2020

Internet: um luxo ou um direito humano?

A esta pergunta respondeu a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, durante a sua intervenção na Web Summit. Michelle Bachelet abordou o impacto da tecnologia nos direitos humanos e enunciou princípios para lidar com o binómio liberdade de expressão ou discurso de ódio, na Internet

Mais de 70 anos depois, será que a Declaração Universal dos Direitos Humanos — redigida a seguir à II Guerra Mundial — deveria atualizar-se e adaptar-se à era digital? “Hoje, a Internet ainda é um luxo, mas não tenho dúvida de que é um direito humano”, disse Michelle Bachelet, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, numa intervenção na Web Summit. “Por essa razão, está incluído na Agenda do Desenvolvimento Sustentável para 2030 que todas as pessoas devem ter direito ao acesso à Internet.”

O “acesso universal e a preços acessíveis à Internet” consta do nono dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aprovados pela Assembleia Geral da ONU, que visam resolver necessidades tanto nos países desenvolvidos como nos territórios em desenvolvimento, sem deixar ninguém para trás.

“Vimos o que aconteceu durante o encerramento das escolas”, durante os confinamentos decretados no âmbito do combate à covid-19. “Todas as crianças que não tinham acesso à Internet não conseguiram prosseguir com a sua educação”, recorda a ex-Presidente do Chile (2006-10 e 2014-18).

“Não é fácil qualificar o discurso”

Bachelet afirmou que as questões da Internet são hoje objeto de estudo e trabalho no seio da organização que dirige. “Não é preciso atualizar os tratados dos direitos humanos. Eles são feitos para nos anteciparmos aos desafios. Hoje, o desafio é: como aplicar as leis existentes a este novo espaço digital e como compensar a proteção dos direitos humanos que são violados de novas maneiras, através da utilização de novas tecnologias.”

Uma das principais preocupações prende-se com o choque entre o exercício da liberdade de expressão e o discurso de ódio na Internet. Para a alta comissária, no cargo desde 2018, “é arriscado” traçar uma linha entre estas duas dimensões. “Como podemos ter a certeza de que algo que foi dito ou escrito é discurso de ódio ou liberdade de expressão? Não é fácil qualificar o discurso.”

A chilena defende uma análise caso a caso e propõe a aplicação de seis critérios: o contexto em que determinada coisa foi dita ou escrita, quem a proferiu, com que intenção, qual o conteúdo, a extensão do discurso e a probabilidade de provocar danos.

Da mesma forma, qualquer intenção de impor limites ao discurso deve obedecer a princípios, que enumera: legalidade, legitimidade, necessidade e proporcionalidade.

Vigiar a doença ou a população?

Em contexto de pandemia, Bachelet abordou o impacto sobre o direito à privacidade de novas ferramentas tecnológicas de vigilância em massa e de inteligência artificial para reconhecimento facial. “Enquanto algumas medidas são proporcionais e necessárias para conter a disseminação da covid-19, outras correm o risco de minar os direitos digitais”, disse. “Muitos países usaram a covid-19 como desculpa para limitar direitos, as vozes dos críticos e o descontentamento das pessoas.”

Falou ainda da questão dos aplicativos de rastreamento de proximidade, adotados em vários países, como a Stay Away Covid no caso português. “A Organização Mundial da Saúde é cautelosa quanto ao emprego destas tecnologias, porque podem cruzar a linha pouco clara entre a vigilância da doença e a vigilância da população.”

A alta comissária avançou com propostas para que as medidas se tornem mais aceitáveis: que se assegure que as restrições sejam eficazes e produzam o efeito desejado, que se recolha apenas informação realmente necessária para o fim pretendido e que seja apagada assim que o objetivo for atingido, que se recorra o mais possível ao anonimato, que se limite o acesso à informação recolhida, não havendo partilha entre agências governamentais e que, passada a crise, se elimine as práticas invasivas de recolha de dados.

Na era digital, Bachelet não tem dúvidas de que os direitos individuais offline devem também ser protegidos online. E conclui: “Os direitos humanos são uma bússola para nos guiar nas incertezas e nos novos desafios”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui