O Daesh desapareceu? Longe disso: nestes locais o terror continua

Primeiro quiseram construir um califado no norte da Síria e do Iraque, e marcaram para sempre aqueles povos com os seus métodos horrendos de perseguição e tortura. Uma coligação internacional ajudada pelos curdos quase eliminou a presença deste grupo terrorista islâmico, mas os que creem na sua doutrina espalharam-se pelo mundo. Hoje é em África e na Ásia que apostam a maioria dos seus recursos e ainda há milhares de combatentes em todo o mundo que juraram manter este reinado do terror. Na Europa, o perigo é quem se radicaliza cá. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Áustria, França, Moçambique, Afeganistão, Egito, República Democrática do Congo, Arábia Saudita…

Só nos últimos dois meses, todos estes países sofreram ataques terroristas reivindicados ou inspirados pelo autodenominado Estado Islâmico. O Daesh, como é conhecido pelo seu acrónimo árabe, perdeu o califado que proclamou em partes da Síria e do Iraque
e viu o seu líder suicidar-se quando se sentiu acossado por militares norte-americanos.
O movimento enfraqueceu, mas está longe de erradicado.

No final de 2020, vários grupos terroristas com implantação regional assumem-se como extensões do Daesh, em especial em África e na Ásia, onde as regiões controladas pelos jiadistas são designadas de “províncias” pela organização central.

É o caso da Província da África Ocidental, um braço do Daesh com uma ascensão fulgurante. Resultou de uma cisão no Boko Haram e está ativo nos quatro países que rodeiam o Lago Chade: Nigéria, Niger, Chade e Camarões. Estima-se que seja a célula africana do Daesh com mais combatentes nas suas fileiras.

Para leste, a Província da África Central é o braço mais recente do Daesh em todo o mundo. Atualmente é responsável por duas rebeliões: uma no leste da República Democrática do Congo, na região do Kivu, e outra no norte de Moçambique, na província de Cabo Delgado.

Neste país de língua oficial portuguesa, os jiadistas têm crescido em alcance e sofisticação. Demonstram toda a sua crueldade queimando aldeias inteiras, raptando e decapitando locais.

Ainda em África, a região do Sahel é território propício às movimentações do Daesh no Grande Sara. Esta célula resultou de uma cisão no seio de um grupo associado à rival Al-Qaeda e está ativa em três países.

Encontramos ainda a impressão digital do Daesh na Líbia, Tunísia, Argélia, Egito, Somália, Quénia, Tanzânia e Uganda.

E noutros continentes também, como a Ásia. Às portas do Médio Oriente, a Península do Sinai abriga um dos ramos mais antigos do Daesh, com origem num grupo jiadista fundado após a desagregação do poder no Egito e a seguir ao movimento da Primavera Árabe.

Mais para leste, no martirizado Afeganistão, um dos principais focos de violência é atualmente o ramo local do Daesh, o grupo Província do Khorasan, numa referência a uma região histórica da Antiga Pérsia. O Daesh é sunita, tal como os talibãs, mas ao contrário destes rejeita qualquer tipo de negociação com o Ocidente. É, por isso, ainda mais extremista do que os talibãs.

Seguindo ainda mais para oriente, encontramos outro país fustigado pelo Daesh: as Filipinas, consideradas pelos jiadistas a sua Província da Ásia Oriental. Um dos grupos locais que lhe jurou lealdade é o histórico Abu Sayyaf, que leva mais de 30 anos de rebelião contra o poder central naquele país de maioria católica.

Na Europa, a estratégia do Daesh não passa por estabelecer bases. Os ataques são levados a cabo por simpatizantes desta doutrina extremista, homens regressados da Síria ou do Iraque ou radicalizados nos próprios países onde vivem.

Episódio gravado por Ana França.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Com o vírus à solta, a nacionalidade já não chega para abrir fronteiras

O Japão tem o passaporte mais valioso do mundo. O português está entre os mais fortes. Mas, com a pandemia sem dar tréguas, um passaporte-vacina poderá tornar-se “o mais poderoso” de todos, explica ao Expresso um professor de Relações Internacionais da Universidade Portucalense, do Porto

A pandemia de covid-19 fechou fronteiras, pousou milhares de aviões em terra e transformou hábitos de viagem em planos sem data de concretização. Na União Europeia, em especial, países que dependem fortemente do turismo, como a Grécia, incentivam à adoção de um passaporte-vacina que facilite a mobilidade de quem foi imunizado e coloque entraves à circulação de quem rejeitou fazê-lo.

O debate ainda está numa fase embrionária, dificultado por muitas incógnitas, como saber se quem tomou a vacina contra o SARS-CoV-2 continua a poder transmitir o novo coronavírus. Mas parece ser já seguro que, no futuro, não bastará a nacionalidade para abrir portas quando se vai ao estrangeiro.

“A forma legal que tal ‘passaporte’ poderá vir a tomar ainda é muito pouco clara, mas é evidente que estará na linha do que acontece com países que exigem testes à partida ou à chegada a cidadãos oriundos de determinados países”, diz ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense, no Porto.

“Em alguns países já existe algo do género, impedindo, por exemplo, a entrada a quem tenha determinadas doenças [como VIH-sida] ou exigindo um teste.” Atualmente, pelo menos 48 países têm em vigor restrições de viagem relacionadas com o HIV: pelo menos 30 impõem proibições à entrada, permanência ou residência e 19 deportam estrangeiros portadores do vírus da sida.

“É provável que, com o passar dos meses, vários grupos de interesse e os próprios Estados tentem promover esses passaportes-vacina, para acelerar a mobilidade e fomentar o turismo. No caso da União Europeia, tal poderá surgir como exigência para entrar no espaço Schengen”, diz Ponte e Sousa. “Outro formato poderá ser um ‘passaporte de imunidade’, certificando quem já teve covid-19 e que, portanto, terá anticorpos.”

Asiáticos são os mais fortes

Com a pandemia sem dar tréguas, um passaporte-vacina poderá tornar-se “o passaporte mais poderoso” de todos, diz o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). Até ao surgimento do novo coronavírus, o poder dos passaportes assentava noutros critérios. “Quanto maior o número de países que permitem ao detentor do passaporte estar isento de visto para entrada ou pedir visto à chegada, mais forte é o passaporte.”

No início de janeiro, foi divulgado mais um Índice de Passaportes Henley, elaborado com base no número de destinos que os seus titulares podem visitar sem terem de pedir visto prévio. O passaporte do Japão — que não permite dupla nacionalidade — é aquele que garante maior número de viagens descomplicadas, do ponto de vista burocrático: 191 países e territórios escancaram as portas aos japoneses ou exigem-lhes apenas visto à chegada.

Neste ranking — que analisa 199 passaportes e não considera as restrições temporárias à circulação decretadas no contexto da pandemia —, Singapura surge em segundo lugar, com 190 destinos amigos, seguida ex aequo da Coreia do Sul e da Alemanha (com 189).

Top-10 dos passaportes mais fortes

  1. Japão (191 destinos)
  2. Singapura (190)
  3. Coreia do Sul, Alemanha (189)
  4. Itália, Finlândia, Espanha, Luxemburgo (188)
  5. Dinamarca, Áustria (187)
  6. Suécia, França, PORTUGAL, Países Baixos, Irlanda (186)
  7. Suíça, Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, Bélgica, Nova
    Zelândia (185)
  8. Grécia, Malta, República Checa, Austrália (184)
  9. Canadá (183)
  10. Hungria (181)

Para subidas neste ranking contribuem, por exemplo, acordos como o que celebraram Israel e os Emirados Árabes Unidos, a 15 de setembro de 2020. Os dois países normalizaram com ele a sua relação diplomática. Um dos aspetos acordados foi a isenção de visto aos cidadãos de um deles que visitem o outro.

Os Emirados são dos países que mais têm escalado o Índice Henley. Em 2006, quando o ranking foi publicado pela primeira vez, os seus cidadãos só estavam isentos de visto prévio em 35 destinos. Hoje viajam sem preocupações com papelada para 173.

Neste Índice, a seguir à Alemanha, surgem consecutivamente 12 outros membros da União Europeia. “Os passaportes dos Estados-membros da UE estão sistematicamente no topo da lista dos mais fortes. São países que favorecem liberdades individuais e, nomeadamente, a de circulação, que pretendem atrair investidores, empresários, turistas, etc.”, comenta o docente.

“É no interesse dos Estados levantar restrições através de acordos bilaterais, e por vezes até unilateralmente. As boas e amplas relações diplomáticas, a presença em organizações internacionais e outros acordos internacionais, em suma, ter uma imagem positiva para os demais Estados, ajudam a aumentar essa força.”

E Portugal?

No ranking Henley, Portugal integra o grupo dos sextos classificados com 186 destinos a confiar totalmente no passaporte português. Mas entre os países que exigem visto aos portugueses estão alguns dos maiores e mais poderosos do mundo, como China, Estados Unidos, Rússia, Índia, Canadá ou Austrália.

“Boa parte destes países tem regimes de entrada fortemente controlados. É o caso dos Estados Unidos, que exigem visto para quem viaja de quase todo o mundo (com regime especial para os países europeus, o Visa Waiver Program, que ainda assim exige pré-inscrição, embora não seja exatamente um visto prévio; o Canadá tem um regime idêntico)”, explica Ponte e Sousa.

“Esta limitação ao regime de entrada nesses países não se aplica exclusivamente a Portugal, mas à generalidade dos países europeus. O objetivo é evitar que regimes ‘relaxados’ permitam aos que entram prorrogar indefinidamente a sua estada ou ter acesso a funções e direitos que se entende deverem ser restringidos ou exigirem visto específico.”

O investigador do IPRI exemplifica com o Reino Unido, que permite “aos cidadãos de largas dezenas de países (UE incluída) estada até seis meses sem exigência de visto, mas impede o acesso ao mercado de trabalho ou a apoios, como transferências do Estado (ou seja, do ‘Estado-providência’)”.

Para o Reino Unido, a saída da UE (‘Brexit’) foi penalizadora para a qualidade do seu passaporte. No ranking deste ano, o documento britânico surge no grupo dos sétimos classificados, com 185 países a não exigirem visto — em 2015, liderava a lista a par com a Alemanha.

“É provável que o declínio do passaporte do Reino Unido continue, enquanto o ‘Brexit’ e o endurecimento do regime de entrada e da política de vistos continuarem a influenciar a mobilidade e, portanto, a força do passaporte”, comenta Ponte e Sousa. “A falta de reciprocidade por parte do Reino Unido poderá levar outros Estados a endurecer os seus regimes de entrada e enfraquecer ainda mais o passaporte britânico.”

Na cauda do Índice Henley está o Afeganistão, com apenas 26 países a confiarem no seu passaporte. Seguem-se-lhe o Iraque (28) e a Síria (29), onde ainda ecoam os sons da guerra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Indígenas são prioridade no plano de vacinação contra a covid-19, mas a maioria fica de fora

O Governo brasileiro incluiu os povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra a covid-19, mas excluiu os que vivem em zonas urbanas. “Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo”, alerta ao Expresso uma ativista brasileira da organização Survival International. A vacinação é apenas o último capítulo de um rol de atitudes negligentes de Jair Bolsonaro em relação aos índios brasileiros. Há quatro dias, dois chefes tribais denunciaram o Presidente junto do Tribunal de Haia por crimes contra a Humanidade

Margaret, Raia, Vanda. Estas três mulheres, a quem, sem as conhecermos, conseguimos com facilidade atribuir vidas contrastantes, foram notícia num passado recente por se terem tornado rostos de esperança da cura para a covid-19.

Margaret Keenan, britânica de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada em todo o mundo. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, foi a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia. Mais recentemente, Vanda Ortega tornou-se a primeira pessoa indígena a ser imunizada no Brasil.

Esta enfermeira de 33 anos, da tribo Witoto, vive no Parque das Tribos, bairro da cidade de Manaus (capital do estado do Amazonas), que enfrenta o colapso do sistema de saúde por conta da pandemia e onde, recentemente, morreram pacientes por falta de oxigénio.

O Parque das Tribos é casa para cerca de 2500 indígenas de mais de 30 etnias. Mas a sorte de Vanda não é extensível ao resto da sua comunidade, que não sabe ainda quando será imunizada. Os povos indígenas foram incluídos no grupo prioritário da primeira fase do plano nacional de vacinação, mas a maioria deles é exceção.

“Não há surpresa quanto à prioridade da vacinação para os indígenas. Em campanhas de vacinação anteriores, de prevenção de outras doenças, os indígenas foram também grupos prioritários. Isso ocorre porque são um grupo que possui uma imunidade mais baixa e são socialmente vulneráveis”, explica ao Expresso Priscilla Schwarzenholz, da organização Survival International Brasil.

Porém, “a prioridade foi dada apenas aos indígenas que vivem em aldeias, excluindo os que vivem nas cidades”, como os moradores do Parque das Tribos. Entre os beneficiários estão milhares de membros da tribo Warao, oriunda da zona do delta do rio Orinoco, na Venezuela, que vive refugiada no Brasil desde o colapso económico do país, em 2018.

A 14 de janeiro, ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que entre os grupos prioritários estão 410.348 “indígenas aldeados”. Isto corresponde a menos de metade da população indígena apurada no censo de 2010.

CENSO DE 2010

896.917
pessoas pertencem a povos indígenas

305
povos indígenas, pelo menos, existem no Brasil

A exclusão de parte significativa da população indígena é incompreensível à luz dos números da pandemia, que comprovam a vulnerabilidade das tribos. “Os dados de infeção e óbitos de indígenas pela covid-19 mostram que ambas as taxas superam a média nacional”, diz a ativista brasileira. “Estima-se que, atualmente, a mortalidade entre os indígenas seja 16% superior à da média da população brasileira.”

Até esta terça-feira, a APIB tinha contabilizados:

  • 936 indígenas mortos pela covid-19. O povo Xavante é o que regista mais óbitos
  • 46.834 casos de infeção entre indígenas
  • 161 tribos atingidas em todo o país

“Os indígenas da região amazónica são cinco vezes mais atingidos pela covid-19 do que o resto do Brasil”, particulariza Priscilla Schwarzenholz. “Isso é muito preocupante, pois significa que [a pandemia] está presente no território com o maior número de povos indígenas isolados do mundo. Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo.”

As tribos indígenas vivem exclusivamente do que a natureza lhes dá. Guardiãs das florestas, são botânicos e zoólogos de excelência. Desenvolvem os seus próprios medicamentos e métodos de cura a partir de plantas e animais, e são autossuficientes para tratar as doenças das florestas — mas não as doenças que decorrem do contacto com o exterior, como sarampo, gripe, malária, febre amarela ou tuberculose.

Para controlar estas maleitas, as vacinas têm sido fundamentais, como agora acontece em relação à covid-19. Mas como em qualquer sociedade desenvolvida, também entre os indígenas há resistência à toma da vacina, pois são vulneráveis à propagação de mentiras e boatos.

Na reserva guarani Te’yikue, no estado de Mato Grosso do Sul, acredita-se que a doença surge de feitiços e “espíritos maus” e que quem for vacinado virará vampiro. Mensagens de WhatsApp dizem que os índios são um grupo prioritário para funcionarem como cobaias e que a vacina provoca cancro e altera o ADN das pessoas.

“Há também denúncias feitas por indígenas de que missionários estão a promover discursos antivacina em aldeias pelo Brasil”, alerta a ativista da Survival International. Relatos de que os religiosos se referem à vacina como a “marca da besta” e ao que está na seringa como “chip líquido”.

Sexta-feira passada, a APIB lançou a campanha “Vacina, Parente!” para exigir ao Governo federal a imunização de toda a população indígena e combater a desinformação. “Parente” é a expressão usada nas tribos para denominar indígenas de todas as etnias e diferenciá-los dos não-índios.

Jair Bolsonaro, que já foi infetado, é um dos principais porta-vozes da atitude antivacinas no Brasil. O Presidente brasileiro já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para efeitos colaterais em termos dignos de um filme de ficção.

“Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

A forma como o Presidente desincentiva à toma da vacina é apenas a última das manifestações negligentes de Bolsonaro em relação aos povos indígenas. “Desde que Bolsonaro ganhou as eleições, o número de invasões e ataques a comunidades indígenas aumentou drasticamente”, refere Priscilla Schwarzenholz. “Isso é resultado do seu discurso racista e das políticas anti-indígenas”, que a ativista enumera:

  1. Promoção de um projeto de lei para abrir territórios indígenas à mineração em grande escala.
  2. Restrição das ações de órgãos governamentais essenciais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsáveis pela proteção e defesa das terras e vidas dos povos indígenas.
  3. Apoio à proposta do “Marco Temporal”, ação no Supremo Tribunal Federal que defende que os indígenas só possam reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 (data da assinatura da Constituição do Brasil). “Se for aprovado, centenas de territórios indígenas podem ser afetados e dezenas de povos isolados estariam em risco”, comenta a ativista.

“O Governo Bolsonaro também está incentivando à disseminação da covid-19 em territórios indígenas, deixando de protegê-los contra invasores e bloqueando planos de proteção para o combate do vírus nas aldeias”, acrescenta.

“Até ao momento, nenhum plano federal de combate ao coronavírus nas comunidades indígenas foi colocado em prática. Não se trata de omissão, mas de uma clara intencionalidade de não combater a epidemia, demonstrando nitidamente o plano genocida desse governo contra os povos indígenas do Brasil.”

Este histórico do Presidente brasileiro, que leva apenas dois anos no poder, levou dois “caciques” (chefes índios) a denunciar Bolsonaro, sexta-feira passada, diante do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a Humanidade.

Raoni Metuktire e Almir Suruí responsabilizam Bolsonaro pelo avanço do desmatamento e das queimadas na região da Amazónia, pela transferência forçada de comunidades, por ataques às populações indígenas (alguns dos quais resultam em mortes) e pelo desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A queixa pretende também que o TPI reconheça o crime de ecocídio — destruição do meio ambiente a um nível tal que comprometa a vida humana — em face das consequências ambientais da política de Bolsonaro.

Em entrevista à Agência Pública, o advogado que defende os caciques, o francês William Bourdon (que já defendeu Julian Assange, Edward Snowden e agora Rui Pinto), disse haver documentação exaustiva que prova que Bolsonaro “anunciou, premeditou e implementou uma política sistemática de destruição” total da Amazónia.

“É muito mais do que assédio, é muito mais do que uma política cínica de desprezo, é uma política de destruição, pela interação de muitos crimes. E é a interação de todos esses crimes que caracterizam os crimes contra a Humanidade.”

(FOTO Jovem indígena do povo Awá, o mais ameaçado do mundo SURVIVAL INTERNATIONAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Uma campanha global a várias velocidades

A vacinação no mundo é desigual. Se a maioria dos países não tem injeções, a UE já pensa num passaporte-vacina

Longe da linha da frente, como os profissionais de saúde, alguns heróis improváveis ajudarão a contar a história da pandemia. A 8 de dezembro, a britânica Margaret Keenan personificou, aos 90 anos, a esperança da cura ao tornar-se a primeira pessoa em todo o mundo a receber a vacina. Mais recentemente, com menos alarido, outra mulher protagonizou um momento simbólico. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, tornou-se a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia, exatamente no mesmo dia em que o rei foi imunizado.

A Jordânia, com 10 milhões de habitantes, é dos países mais expostos ao drama dos refugiados — só os sírios correspondem a mais de 10% da população. Todos estão incluídos no plano de vacinação, em pé de igualdade com qualquer jordano. “Mais uma vez, a Jordânia demonstrou liderança exemplar e solidariedade no acolhimento de refugiados”, elogiou o alto-comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi. “Apelo a todos os países que sigam o exemplo e incluam os refugiados nas campanhas a par dos seus nacionais.”

Muitos braços, poucas vacinas

O apelo não faz eco. As preocupações com os refugiados estão longe de ser prioritárias para a esmagadora maioria dos países que já vacinam. À euforia das primeiras injeções, começa agora a surgir apreensão perante a urgência em manter o ritmo da vacinação sem haver doses suficientes para tantos braços.

“Aquilo que nos limita de momento é o fornecimento. Estamos a usar todos os bocadinhos das vacinas que recebemos”, disse esta semana Mark Drakeford, o primeiro-ministro do País de Gales, que chegou ao ponto de defender a retenção de alguns milhares de doses para evitar que os vacinadores “fiquem parados sem fazer nada durante um mês”. As declarações não caíram bem, e o governante teve de se desdizer e garantir que “ninguém está a reter vacinas”. Mas o problema ficava exposto.

No País de Gales e na Escócia, a campanha vai mais lenta do que nas outras nações do Reino Unido: a Irlanda do Norte e a Inglaterra. Nesta última, a prioridade dada aos idosos está a enguiçar o processo. Na pressa de quererem estender a vacinação a outros grupos prioritários, há vacinas a serem desviadas de locais onde os mais idosos ainda nas as receberam. “Alguma coisa não está bem. Nalguns lugares, há pessoas com mais de 70 anos a serem contactadas para tomarem a vacina antes dos octogenários e nonagenários”, denunciou a deputada inglesa, Therese Coffey.

Até ao momento, já foram administradas cerca de 52 milhões de doses em pelo menos 61 países. Oito vacinas já foram aprovadas por reguladores nacionais: a da Pfizer/BioNTech é a que tem sido mais usada; em contraponto, a Covishield, de fabrico indiano, só está a ser usada na Índia, que arrancou a sua campanha há uma semana, priorizando 30 milhões de médicos, enfermeiros e outro pessoal da linha da frente.

70% dos europeus até ao verão

A vacina indiana é uma esperança para muitos países sem meios para concorrer no mercado das vacinas. A esmagadora maioria das doses produzidas foram adquiridas por países desenvolvidos, com a União Europeia à cabeça. “Já garantimos vacinas suficientes para toda a população da UE”, afirmou na terça-feira a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Agora precisamos de acelerar a entrega e a vacinação. O nosso objetivo é termos 70% da nossa população vacinada até ao verão. Isso pode ser um ponto de viragem na nossa luta contra este vírus.”

A UE é a entidade política que mais doses assegurou em todo o mundo: 21,9% do bolo total. Segue-se a Índia (20,7%) e os EUA (13,9%). Ou seja, mais de 50% das doses contratualizadas estão reservadas para apenas 29 países.

Recusar a vacina é um direito, mas quem o faz pode vir a enfrentar restrições em viagens internacionais

No conforto europeu, alguns países mostram-se ansiosos por virar a página. Fortemente penalizada pela paralisação do sector do turismo, a Grécia é dos membros que mais têm defendido a ideia de um passaporte-vacina, “que facilite a liberdade de circulação de pessoas que foram vacinadas à covid-19”, defendeu o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis.

A par das novas estirpes do vírus, a resistência de muitos europeus à injeção é fonte de preocupação em Bruxelas. Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão, defendeu esta semana que recusar a vacina é um direito e que as pessoas que fizerem essa opção não devem ser discriminadas, mas podem vir a enfrentar restrições em viagens internacionais. “Um certificado de vacinação eletrónico” é uma possibilidade, disse.

Quanto mais tempo passa, mais ficam expostas as várias velocidades a que decorre o processo de vacinação, inclusive entre os países mais desenvolvidos. Israel, que tem uma população da dimensão da portuguesa, é o país que maior percentagem da população já vacinou: 2,2 milhões de israelitas já tomaram a primeira dose e mais de 500 mil a segunda. Esta semana, as grávidas foram incluídas nos grupos prioritários.

Numa dinâmica oposta, a Austrália só deverá começar a vacinar em massa em meados de fevereiro. O país apostava numa vacina própria que não passou nos testes clínicos, obrigando as autoridades a refazer a estratégia. Neste momento, ainda não há vacinas aprovadas, embora já haja encomendas feitas à AstraZeneca/Oxford e à Pfizer/BioNTech. A pressão é aliviada pelas poucas infeções que se têm registado — apenas nove, ontem.

Ciência vence o negacionismo

Para muitos dos países que ainda não estão a vacinar, a confiança repousa em iniciativas internacionais. O mecanismo Covax, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, será crucial para África, onde presentemente apenas dois países estão a dar vacinas: as Seychelles, que têm vacinas doadas pelos Emirados Árabes Unidos, e a Guiné-Conacri, onde a vacina russa está a ser administrada numa base experimental. Já na América Latina, a esperança reside na vacina barata financiada pelo multimilionário mexicano Carlos Slim.

Os três gigantes latino-americanos — México, Argentina e Brasil — já estão a vacinar, tendo apostado em carteiras que incluem vacinas que fogem à procura europeia, em especial a Sputnik-V russa (nos casos do México e da Argentina) e a chinesa CoronaVac (Brasil).

Dos três Estados, o Brasil foi o último a começar a vacinação, na segunda-feira passada. No grupo prioritário definido pelo Ministério da Saúde estão os maiores de 60 anos, os maiores de 18 anos com deficiência a viver em instituições, profissionais de saúde da linha da frente e as populações indígenas.

A aprovação pelo regulador brasileiro da vacina chinesa e da AstraZeneca foi celebrada como uma vitória da ciência sobre o negacionismo. Um dos porta-vozes do movimento antivacinas é o Presidente Jair Bolsonaro que já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para a possibilidade de “efeitos colaterais”: “Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

(IMAGEM D.R.)

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

As 10 palavras que Joe Biden mais repetiu no discurso de tomada de posse

Num discurso que durou quase 22 minutos, o novo Presidente dos Estados Unidos da América falou ao coração dos norte-americanos repetindo, em particular, dez palavras. Com elas, procurou olhar para o passado dos Estados Unidos e projetar o futuro do país, do qual é agora o principal timoneiro

AMÉRICA

“Este é o dia da América.” Assim iniciou Joe Biden o seu discurso. Repetiria a palavra “América” mais 20 vezes, ora para se referir ao passado histórico dos Estados Unidos ora para galvanizar os norte-americanos em relação aos desafios futuros.

Perto do final, o Presidente invocou uma canção que lhe diz muito, segundo o próprio. “American Anthem”, composta no final dos anos 1990, fala do “sonho de uma nação onde a liberdade durará” e de como a dignidade é “aquilo que fortalece a alma de uma nação que nunca morre”.

Biden leu um excerto, como que se tivesse sido escrito em nome próprio: “O trabalho e as orações de séculos trouxeram-nos até este dia. / Qual será o nosso legado? Que dirão os nossos filhos? / Que o meu coração saiba, quando os meus dias acabarem / América, América, que dei o meu melhor por ti.”

NAÇÃO

Biden repetiu esta palavra 15 vezes. Falou da “nação” como sentimento de pertença comum a todos os americanos e apelou à união de todos para que sejam curadas as feridas expostas pelo ataque ao Capitólio e, no imediato, seja vencida a batalha contra a covid-19.

“Meus compatriotas, no trabalho que temos pela frente, vamos precisar uns dos outros. Precisamos de todas as nossas forças para perseverarmos através deste inverno sombrio. Estamos a entrar no que pode ser o período mais difícil e mortal do vírus. Devemos deixar a política de lado e finalmente enfrentar esta pandemia como uma nação. Uma nação.”

POVO

“O povo, a vontade do povo, foi escutada e a vontade do povo foi atendida”, disse Biden, acrescentando que ali se celebrava não a vitória de um candidato, mas da democracia.

Numa homenagem ao “povo” — palavra que proferiu 11 vezes —, o Presidente liderou uma oração em silêncio. “No meu primeiro ato enquanto Presidente, gostaria de pedir-vos que se juntem a mim num momento de oração silenciosa para recordar todos aqueles que perdemos neste último ano para a pandemia. Esses 400 mil americanos. Mães, pais, maridos, esposas, filhos, filhas, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Vamos honrá-los tornando-nos o povo e a nação que sabemos que podemos e devemos ser.”

DEMOCRACIA

Ao longo de todo o discurso, Biden partilhou a ideia de que a democracia norte-americana sobreviveu a ameaças. “Voltamos a aprender que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. Neste momento, meus amigos, a democracia prevaleceu”, disse o Presidente. “Este é o dia da democracia.”

Biden socorreu-se igualmente do conceito de “democracia”, que repetiu 11 vezes, para dirigir-se diretamente aos 74 milhões de norte-americanos que não votaram nele.

“Para todos aqueles que não nos apoiaram, deixem-me dizer o seguinte: ouçam-me à medida que avançamos. Avaliem-me a mim e ao meu coração. Se ainda discordarem, seja. Isso é democracia. Essa é a América. O direito de discordar, pacificamente, a barreira de proteção da nossa república, é talvez a maior força desta nação.”

HOJE

Sem nunca se referir expressamente ao seu antecessor, Joe Biden proferiu várias vezes a palavra “hoje” — nove no total — para assinalar um voltar de página na governação do país.

“Hoje, neste momento, neste lugar, vamos começar do zero, todos nós. Vamos começar a ouvir uns aos outros novamente. Escutar-nos uns aos outros, olharmos uns aos outros, mostrar respeito uns pelos outros. A política não necessita de ser um fogo furioso, que destrói tudo à sua passagem. Cada desacordo não precisa de ser razão para uma guerra total. E devemos rejeitar a cultura na qual os próprios fatos são manipulados e até fabricados.”

Biden reafirmou a importância do dia de “hoje” para realçar a tomada de posse da primeira mulher no cargo de vice-presidente, Kamala Harris. “Não me digam que as coisas não podem mudar.”

UNIDADE

Paralelamente aos elogios ao “povo” e à “democracia” norte-americanos, Joe Biden desdobrou-se em apelos à “unidade” entre todos. “Este é o nosso momento histórico de crise e desafio. E a unidade é o caminho a seguir”, disse o 46º Presidente. “Pois sem unidade não haverá paz — apenas amargura e fúria. Não haverá progresso — apenas uma indignação esgotante. Não haverá nação — apenas um estado de caos.”

Biden referiu a presença na cerimónia de antigos presidentes do Partido Democrata (Bill Clinton e Barack Obama,) e do Partido Republicano (George W. Bush). O democrata Jimmy Carter esteve ausente por razões de saúde mas Biden sublinhou que tinha falado com ele pelo telefone na véspera. O republicano Donald Trump saiu da Casa Branca sem reconhecer a vitória de Biden e não quis assistir à cerimónia. Não sucedia há 152 anos.

“Superar os desafios, restaurar a alma e garantir o futuro da América exige muito mais do que palavras. Requer o mais elusivo de todas as coisas numa democracia: Unidade. Unidade.” Citou esta palavra oito vezes.

HISTÓRIA

Biden falou oito vezes de “história” para invocar o passado e projetar o futuro. “História, fé e razão mostram o caminho, o caminho da unidade.”

E acrescentou: “Eu sei que falar de unidade pode soar para alguns como uma fantasia tola, hoje em dia. Eu sei que as forças que nos dividem são profundas e reais, mas também sei que não são novas. A nossa história tem sido feita de uma luta constante entre o ideal americano de que todos somos criados de forma igual e a dura e feia realidade de que o racismo, o nativismo, o medo e a demonização há muito nos separaram. A batalha é perene e a vitória nunca está garantida.”

DESAFIO

“Poucas pessoas na história da nossa nação enfrentaram mais desafios ou depararam-se com tempos mais desafiadores ou difíceis do que o tempo que agora vivemos. Um vírus que acontece uma vez por século assola silenciosamente o país. Ceifou tantas vidas num ano como as vidas que foram perdidas em toda a Segunda Guerra Mundial. Perderam-se milhões de empregos. Centenas de milhares de empresas fecharam. Somos movidos por um grito por justiça racial, que dura há quase 400 anos. O sonho da justiça para todos não mais será adiado.”

Biden falou sete vezes de “desafio”, particularizando a crise ambiental, o extremismo político, a supremacia branca e o terrorismo interno.

“Amigos, este é um tempo que nos põe à prova. Enfrentamos um ataque à nossa democracia e à verdade, um vírus rompante, desigualdade lancinante, racismo sistémico, uma crise climática, o papel da América no mundo. Qualquer um destes é suficiente para nos desafiar de formas profundas.”

GUERRA

Por sete vezes o novo Presidente proferiu a palavra “guerra”, para enumerar conflitos passados e enfatizar como perante a luta, o sacrifício e os desaires, os norte-americanos sempre prevaleceram — a guerra civil (1861-1865), a Grande Depressão (1929-1939), a II Guerra Mundial (1939-1945) e o 11 de Setembro (2001).

Recordou que o Capitólio, onde decorria aquela cerimónia, foi concluída durante a guerra civil e admitiu que em 2021, os Estados Unidos vivem outro tipo de guerra. “Temos de pôr fim a esta guerra incivil que põe vermelho [republicanos] contra azul [democratas], rural contra urbano, conservador contra liberal.”

GRANDE

Foi um dos adjetivos preferidos de Donald Trump e uma presença constante no seu limitado discurso. Joe Biden repetiu-o seis vezes para exaltar a “grande nação” americana, para dizer que “podemos fazer grandes coisas” e para incentivar a que todos contribuam para escrever “o próximo grande capítulo da história dos Estados Unidos da América”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui