Uma campanha global a várias velocidades

A vacinação no mundo é desigual. Se a maioria dos países não tem injeções, a UE já pensa num passaporte-vacina

Longe da linha da frente, como os profissionais de saúde, alguns heróis improváveis ajudarão a contar a história da pandemia. A 8 de dezembro, a britânica Margaret Keenan personificou, aos 90 anos, a esperança da cura ao tornar-se a primeira pessoa em todo o mundo a receber a vacina. Mais recentemente, com menos alarido, outra mulher protagonizou um momento simbólico. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, tornou-se a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia, exatamente no mesmo dia em que o rei foi imunizado.

A Jordânia, com 10 milhões de habitantes, é dos países mais expostos ao drama dos refugiados — só os sírios correspondem a mais de 10% da população. Todos estão incluídos no plano de vacinação, em pé de igualdade com qualquer jordano. “Mais uma vez, a Jordânia demonstrou liderança exemplar e solidariedade no acolhimento de refugiados”, elogiou o alto-comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi. “Apelo a todos os países que sigam o exemplo e incluam os refugiados nas campanhas a par dos seus nacionais.”

Muitos braços, poucas vacinas

O apelo não faz eco. As preocupações com os refugiados estão longe de ser prioritárias para a esmagadora maioria dos países que já vacinam. À euforia das primeiras injeções, começa agora a surgir apreensão perante a urgência em manter o ritmo da vacinação sem haver doses suficientes para tantos braços.

“Aquilo que nos limita de momento é o fornecimento. Estamos a usar todos os bocadinhos das vacinas que recebemos”, disse esta semana Mark Drakeford, o primeiro-ministro do País de Gales, que chegou ao ponto de defender a retenção de alguns milhares de doses para evitar que os vacinadores “fiquem parados sem fazer nada durante um mês”. As declarações não caíram bem, e o governante teve de se desdizer e garantir que “ninguém está a reter vacinas”. Mas o problema ficava exposto.

No País de Gales e na Escócia, a campanha vai mais lenta do que nas outras nações do Reino Unido: a Irlanda do Norte e a Inglaterra. Nesta última, a prioridade dada aos idosos está a enguiçar o processo. Na pressa de quererem estender a vacinação a outros grupos prioritários, há vacinas a serem desviadas de locais onde os mais idosos ainda nas as receberam. “Alguma coisa não está bem. Nalguns lugares, há pessoas com mais de 70 anos a serem contactadas para tomarem a vacina antes dos octogenários e nonagenários”, denunciou a deputada inglesa, Therese Coffey.

Até ao momento, já foram administradas cerca de 52 milhões de doses em pelo menos 61 países. Oito vacinas já foram aprovadas por reguladores nacionais: a da Pfizer/BioNTech é a que tem sido mais usada; em contraponto, a Covishield, de fabrico indiano, só está a ser usada na Índia, que arrancou a sua campanha há uma semana, priorizando 30 milhões de médicos, enfermeiros e outro pessoal da linha da frente.

70% dos europeus até ao verão

A vacina indiana é uma esperança para muitos países sem meios para concorrer no mercado das vacinas. A esmagadora maioria das doses produzidas foram adquiridas por países desenvolvidos, com a União Europeia à cabeça. “Já garantimos vacinas suficientes para toda a população da UE”, afirmou na terça-feira a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Agora precisamos de acelerar a entrega e a vacinação. O nosso objetivo é termos 70% da nossa população vacinada até ao verão. Isso pode ser um ponto de viragem na nossa luta contra este vírus.”

A UE é a entidade política que mais doses assegurou em todo o mundo: 21,9% do bolo total. Segue-se a Índia (20,7%) e os EUA (13,9%). Ou seja, mais de 50% das doses contratualizadas estão reservadas para apenas 29 países.

Recusar a vacina é um direito, mas quem o faz pode vir a enfrentar restrições em viagens internacionais

No conforto europeu, alguns países mostram-se ansiosos por virar a página. Fortemente penalizada pela paralisação do sector do turismo, a Grécia é dos membros que mais têm defendido a ideia de um passaporte-vacina, “que facilite a liberdade de circulação de pessoas que foram vacinadas à covid-19”, defendeu o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis.

A par das novas estirpes do vírus, a resistência de muitos europeus à injeção é fonte de preocupação em Bruxelas. Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão, defendeu esta semana que recusar a vacina é um direito e que as pessoas que fizerem essa opção não devem ser discriminadas, mas podem vir a enfrentar restrições em viagens internacionais. “Um certificado de vacinação eletrónico” é uma possibilidade, disse.

Quanto mais tempo passa, mais ficam expostas as várias velocidades a que decorre o processo de vacinação, inclusive entre os países mais desenvolvidos. Israel, que tem uma população da dimensão da portuguesa, é o país que maior percentagem da população já vacinou: 2,2 milhões de israelitas já tomaram a primeira dose e mais de 500 mil a segunda. Esta semana, as grávidas foram incluídas nos grupos prioritários.

Numa dinâmica oposta, a Austrália só deverá começar a vacinar em massa em meados de fevereiro. O país apostava numa vacina própria que não passou nos testes clínicos, obrigando as autoridades a refazer a estratégia. Neste momento, ainda não há vacinas aprovadas, embora já haja encomendas feitas à AstraZeneca/Oxford e à Pfizer/BioNTech. A pressão é aliviada pelas poucas infeções que se têm registado — apenas nove, ontem.

Ciência vence o negacionismo

Para muitos dos países que ainda não estão a vacinar, a confiança repousa em iniciativas internacionais. O mecanismo Covax, apoiado pela Organização Mundial da Saúde, será crucial para África, onde presentemente apenas dois países estão a dar vacinas: as Seychelles, que têm vacinas doadas pelos Emirados Árabes Unidos, e a Guiné-Conacri, onde a vacina russa está a ser administrada numa base experimental. Já na América Latina, a esperança reside na vacina barata financiada pelo multimilionário mexicano Carlos Slim.

Os três gigantes latino-americanos — México, Argentina e Brasil — já estão a vacinar, tendo apostado em carteiras que incluem vacinas que fogem à procura europeia, em especial a Sputnik-V russa (nos casos do México e da Argentina) e a chinesa CoronaVac (Brasil).

Dos três Estados, o Brasil foi o último a começar a vacinação, na segunda-feira passada. No grupo prioritário definido pelo Ministério da Saúde estão os maiores de 60 anos, os maiores de 18 anos com deficiência a viver em instituições, profissionais de saúde da linha da frente e as populações indígenas.

A aprovação pelo regulador brasileiro da vacina chinesa e da AstraZeneca foi celebrada como uma vitória da ciência sobre o negacionismo. Um dos porta-vozes do movimento antivacinas é o Presidente Jair Bolsonaro que já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para a possibilidade de “efeitos colaterais”: “Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

(IMAGEM D.R.)

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

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