Quatro anos de Donald Trump em 40 imagens

No seu primeiro ano na Casa Branca, Donald Trump subiu à tribuna das Nações Unidas para falar de guerra. No segundo, deu um impulso ao muro na fronteira com o México. No ano seguinte, foi alvo de um processo de impugnação no Congresso, o primeiro. E no último ano, obcecado com a reeleição, negligenciou o combate a uma pandemia mortífera. Uma presidência única em 40 imagens

O 45º Presidente dos Estados Unidos, que cessa funções esta quarta-feira, fica para a História como um líder único a vários níveis. Instável, impreparado e egocêntrico, foi o candidato derrotado que mais votos teve numas eleições presidenciais e foi também o único Presidente a ser impugnado duas vezes. Após quatro anos de uma presidência turbulenta, deixa um país mais dividido do que nunca.

1º ANO Ameaça de guerra na casa da paz

Há precisamente quatro anos, a 20 de janeiro de 2017, Donald Trump sucedeu a Barack Obama na presidência dos EUA. Nesse dia, a cordialidade que foi possível testemunhar no contacto entre os Obama e os Trump não deixaria antever a “guerra” que o republicano declararia ao legado do seu antecessor: criticou-o de forma rude, reverteu uma série de decisões importantes, retirando o país de compromissos internacionais (como o Acordo de Paris ou o acordo sobre o programa nuclear do Irão), e empenhou-se até à última em destruir o sistema de saúde que ficou conhecido como Obamacare.

Aos quatro meses de presidência, Trump realizou a sua primeira visita oficial ao estrangeiro. O tour por seis territórios levou-o prioritariamente à Arábia Saudita, num claro sinal de preferência pelo gigante sunita no braço de ferro com o rival Irão, que Trump haveria de castigar com sucessivas sanções.

Durante o primeiro ano na Casa Branca, Trump privou com os pesos-pesados da geopolítica mundial. Realizou uma visita de Estado à China e, na cimeira do G7, em Hamburgo, reuniu-se à margem do evento com o homólogo russo, Vladimir Putin.

Ao longo do mandato, Trump manteria com a Rússia uma trégua que levantou suspeitas — não reagindo a relatos de interferência de hackers russos em instituições americanas, a notícias de que Moscovo pagava aos talibãs para matar soldados americanos no Afeganistão ou não condenando o Kremlin no caso Navalny.

Inversamente, com a China, a relação pegaria fogo: numa primeira fase sob a forma de uma guerra comercial e depois responsabilizando a China pela pandemia que tomou o mundo de assalto.

Num registo nunca antes visto num Presidente dos EUA, a 19 de setembro de 2017, Trump aproveitou o púlpito da Assembleia-Geral das Nações Unidas para quase declarar guerra à Coreia do Norte, que vinha criando tensão com sucessivos testes nucleares.

“Os EUA têm muita força e paciência, mas se forem forçados a defenderem-se ou aos seus aliados, não teremos escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte. ‘Rocket Man’ [Kim Jong-un] está numa missão suicida para consigo mesmo e para o seu regime”, disse Trump. Menos de um ano depois, esta relação daria uma reviravolta.

20.01.2017 — Os Obama e os Trump, no dia da tomada de posse do republicano. A aparente harmonia duraria pouco JIM WATSON / AFP / GETTY IMAGES
28.01.2017 — Ao telefone com o homólogo russo, Vladimir Putin, Trump está acompanhado pelos seus assessores mais próximos, entre eles o supremacista Steve Bannon DREW ANGERER / GETTY IMAGES
21.05.2017 — Em Riade, na inauguração de um centro de combate à ideologia extremista. Acompanha-o Melania, o rei saudita, Salman al-Saud, e o Presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi BANDAR ALGALOUD / GETTY IMAGES
22.05.2017 — Donald, Melania e Ivanka Trump recebidos em audiência, no Vaticano, pelo Papa Francisco GETTY IMAGES
22.05.2011 — De visita ao Muro das Lamentações, o lugar mais sagrado para os judeus, em Jerusalém, a cidade disputada que Trump reconheceria como capital de Israel RONEN ZVULUN / AFP / GETTY IMAGES
07.07.2017 — Aos segredos com o homólogo da Rússia, Vladimir Putin, num encontro à margem da cimeira do G20, em Hamburgo SAUL LOEB / AFP / GETTY IMAGES
21.08.2017 — Na varanda da Casa Branca, em Washington, Trump tenta vislumbrar o eclipse solar… sem óculos de observação MARK WILSON / GETTY IMAGES
19.09.2017 — De saída do púlpito da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, após proferir um discurso violentíssimo, ameaçando de guerra a Coreia do Norte DREW ANGERER / GETTY IMAGES
03.10.2017 — Trump atira um pacote de papel higiénico. Seria divertido não fosse num centro de distribuição de bens de primeira necessidade para vítimas de um furacão, em San Juan, Porto Rico JONATHAN ERNST / REUTERS
09.11.2017 — Na companhia de Xi Jinping, durante uma cerimónia de boas-vindas, em Pequim. EUA e China viviam um braço de ferro comercial que evoluiria para uma verdadeira guerra THOMAS PETER / GETTY IMAGES

2º ANO O apoio ao ‘Brexit’ e a visita de Marcelo

Foi só no seu segundo ano na Casa Branca que Trump visitou pela primeira vez o Reino Unido, o principal aliado dos EUA do outro lado do Atlântico. O processo de saída dos britânicos da União Europeia (‘Brexit’) já estava em curso e Trump nunca se conteve em tomar parte, incentivando Londres a cortar o cordão umbilical com Bruxelas.

Ainda antes da deslocação ao Reino Unido, Trump recebeu na Casa Branca Marcelo Rebelo de Sousa. O chefe de Estado português recordou-lhe que Portugal esteve entre as primeiras nações a reconhecer a independência dos EUA e que os fundadores assinalaram esse momento com vinho da Madeira.

Trump demonstrou curiosidade por Cristiano Ronaldo e perguntou a Marcelo se o futebolista não teria hipótese de lhe ganhar numas eleições. “Tenho de lhe dizer que Portugal não é como os Estados Unidos”, respondeu o chefe de Estado português.

No segundo ano de Trump na presidência, uma das suas principais promessas eleitorais levou um impulso — a construção de “um muro grande e lindo” na fronteira com o México. O projeto foi iniciado nos tempos da Administração Clinton, mas Trump defendeu-o como se fosse seu.

Na semana passada, a uma semana de deixar em definitivo a Casa Branca, foi um troço deste muro, na região de Alamo, no estado do Texas, que Trump visitou para mostrar obra feita.

13.03.2018 — Trump discursa junto a um protótipo de muro, durante uma visita a San Diego, Califórnia, junto à fronteira com o México KEVIN LAMARQUE / REUTERS
08.05.2018 — O anúncio faz manchetes em todo o mundo: Trump retira os EUA do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano e repõe sanções contra o regime de Teerão CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES
09.06.2018 — Na cimeira do G7, em Charlevoix (Canadá), Trump parece ser aquele que todos querem ouvir JESCO DENZEL / GETTY IMAGES
12.06.2018 — Trump concretiza aquilo que nenhum antecessor conseguira e protagoniza, com Kim Jong-un, a primeira cimeira entre um Presidente dos EUA e um líder da Coreia do Norte, em Singapura ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
27.06.2018 — Trump recebe Marcelo Rebelo de Sousa, na Sala Oval da Casa Branca, em Washington ALEX EDELMAN / GETTY IMAGES
13.07.2018 — Boa disposição entre a primeira-ministra britânica Theresa May e Donald Trump, durante a primeira visita oficial do norte-americano ao Reino Unido BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES
15.07.2018 — Amante do golfe, Trump é proprietário de vários campos, nos EUA e no estrangeiro, como o da imagem, em Turnberry, Escócia LEON NEAL / GETTY IMAGES
11.10.2018 — Um batalhão de jornalistas cobre a visita do ‘rapper’ Kanye West à Casa Branca. À época, o artista apoiava Trump, em 2020 disputou as presidenciais com o republicano RON SACHS / GETTY IMAGES
05.12.2018 — Junto a três antigos Presidentes (Barack Obama, Bill Clinton e Jimmy Carter), no funeral de George H. Bush, na Catedral Nacional de Washington CHRIS KLEPONIS / GETTY IMAGES
14.01.2019 — Sob o olhar de Lincoln, Trump apresenta uma mesa com ‘fast food’, a sua comida favorita, para banquetear a equipa dos Clemson Tigers, campeã de futebol americano CHRIS KLEPONIS / GETTY IMAGES

3º ANO A pressa e a fé na reeleição

Em 2019 o tradicional discurso sobre o Estado da União, com o qual o Presidente dos EUA toma o pulso ao país, foi para os norte-americanos uma montra da desunião que se vivia entre destacados responsáveis políticos. Quando Trump acabou de falar, a líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, aplaudiu o Presidente de forma sarcástica, numa imagem que correu mundo.

No ano seguinte, na mesma cerimónia, Pelosi rasgaria uma cópia do discurso do Presidente, após Trump ignorar a sua mão estendida para o cumprimentar. Pelosi iniciara o processo de destituição do Presidente, com base em suspeitas de que Trump pedira ajuda à Ucrânia para interferir na eleição presidencial de 2020 de forma a favorecer a sua reeleição. Trump não lhe perdoou.

Neste terceiro ano de mandato, Trump teve o seu ‘momento Bin Laden’ a 26 de outubro de 2019, ao acompanhar desde a situation room da Casa Branca uma operação militar, a milhares de quilómetros de distância, que haveria de neutralizar Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Daesh (autodenominado “Estado Islâmico”), na Síria.

Dezoito anos após o 11 de Setembro, o terrorismo internacional estava mais complexo, com o Daesh a juntar-se à Al-Qaeda na criação do caos. Obama eliminara Bin Laden, Trump provava estar à altura do seu antecessor.

A 18 de junho de 2019, a mais de um ano das presidenciais onde iria tentar a reeleição, Trump lança-se oficialmente na corrida com um comício em Orlando, na Florida, repetindo o slogan de 2016 — “Make America Great Again” (Tornar a América Grande de Novo).

05.02.2019 — Nancy Pelosi, a líder democrata da Câmara dos Representantes, aplaude Trump de forma sarcástica, no Congresso DOUG MILLS / GETTY IMAGES
12.02.2019 — John Bolton, conselheiro de Trump para a Segurança Nacional, escuta-o numa intervenção na Casa Branca. Os dois entrariam em rutura e Bolton tornar-se-ia um detrator do Presidente CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES
02.03.2019 — Trump abraça a ‘Stars and Stripes’, durante um encontro de conservadores, em National Harbor, Maryland TASOS KATOPODIS / GETTY IMAGES
22.04.2019 — Acompanhado por um Coelho da Páscoa, Trump dá as boas-vindas aos participantes no Easter Egg Roll, uma tradição na Casa Branca que data de 1878 WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES
05.06.2019 — Divertidos, Donald Trump e a rainha Isabel II assistem às comemorações do Dia D, em Portsmouth, Inglaterra DAN KITWOOD / GETTY IMAGES
18.06.2019 — Quase ano e meio antes das eleições presidenciais, Trump lança a campanha pela sua reeleição, com um grande comício em Orlando, Florida MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES
19.07.2019 — Na Casa Branca, em declarações à imprensa, de quem chegou a dizer ser “inimigo do povo”. Para Trump, órgãos como a CNN e “The New York Times” são “fake news media” JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES
26.10.2019 — Na ‘situation room’ da Casa Branca, o Presidente acompanha a operação militar na Síria de captura de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do “Estado Islâmico” SHEALAH CRAIGHEAD / GETTY IMAGES
28.11.2019 — Na base de Bagram, no Afeganistão, em visita às tropas norte-americanas em missão naquele país OLIVIER DOULIERY / AFP / GETTY IMAGES
03.01.2020 — Momento de oração no evento “Evangélicos por Trump”, num centro religioso em Miami, na Florida JIM WATSON / AFP / GETTY IMAGES

4º ANO Da absolvição à segunda impugnação

Após cinco meses de inquéritos e investigações, o processo de impugnação de Trump chegou ao fim no Congresso com a absolvição do Presidente pelo Senado. O governante mostrou-se vitorioso, mas menos de um ano depois, na reta final do seu mandato, tornou-se o primeiro Presidente dos EUA a ser alvo de um processo de destituição por duas vezes.

Ao recusar reconhecer a sua derrota eleitoral e ao ver goradas as tentativas de vencer as eleições nos tribunais, precipita o seu mandato para o descontrolo. A uma semana de sair de cena, promoveu um comício em Washington, onde apela a uma marcha até ao Capitólio onde, naquele dia, ia ser confirmada a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. O apelo resultou no assalto ao Capitólio, por parte de apoiantes seus. Morreram cinco pessoas.

Toda a turbulência política aconteceu no meio de uma pandemia mortífera, cujo combate Trump negligenciou e que já matou mais de 400 mil cidadãos no seu país. Ainda assim, mais de 74 milhões de norte-americanos confiaram nele o seu voto nas presidenciais de 3 de novembro, alimentando-lhe o sonho do regresso em 2024.

06.02.2020 — “Absolvido”, titula “The Washington Post”, na edição em que noticia o fim do primeiro processo de impugnação a Trump DREW ANGERER / GETTY IMAGES
25.02.2020 — De visita à Índia, Donald Trump lança pétalas de rosa junto ao memorial de Mahatma Gandhi, em Nova Deli MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES
19.03.2020 — Nas notas para um ‘briefing’ sobre a pandemia, na Casa Branca, Trump risca a palavra “coronavírus” e substitui-a por “vírus chinês” JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES
20.03.2020 — A preocupação de Anthony Fauci, o principal epidemiologista da Casa Branca, durante um ‘briefing’ de Trump sobre a covid-19, tantas vezes desfasado da realidade JABIN BOTSFORD / GETTY IMAGES
01.06.2020 — Trump segura uma Bíblia, à entrada da Igreja de S. João, perto da Casa Branca, após ordenar a repressão dos protestos desencadeados pela morte do afroamericano George Floyd, asfixiado por um polícia BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / Getty Images
03.07.2020 — No Monte Rushmore, no Dakota do Sul, onde estão esculpidos os rostos de quatro antigos Presidentes. Assessores de Trump sondaram a governadora acerca do processo necessário para adicionar novos rostos ao monumento… SAUL LOEB / AFP / GETTY IMAGES
15.09.2020 — Os protagonistas dos Acordos de Abraão, mediados pela Administração Trump, pelos quais Emirados Árabes Unidos e Bahrain normalizaram a relação diplomática com Israel ALEX WONG / AFP / GETTY IMAGES
05.10.2020 — Regressado do hospital onde esteve internado após acusar positivo ao novo coronavírus, Trump assoma-se à varanda da Casa Branca e retira a máscara em sinal de desafio WIN MCNAMEE / GETTY IMAGES
08.01.2021 — Uma foto tirada a um telemóvel, na sala de imprensa da Casa Branca, mostra a conta de Trump suspensa no Twitter, o seu meio de comunicação preferido JOSHUA ROBERTS / REUTERS
13.01.2021 — “Impugnado”, escreve em manchete o jornal “The New York Times”, junto a uma foto onde se vê militares a proteger o Capitólio. Donald Trump abandona o poder após um só mandato e dois processos de impugnação ROBERT NICKELSBERG / GETTY IMAGES

(FOTO PRINCIPAL Trump discursa num comício em Jacksonville, na Florida, a 24 de setembro de 2020. Cego com a reeleição, negligenciou o combate à pandemia TOM BRENNER / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Um ano depois dos grandes incêndios, a Austrália renasce das cinzas

Mais de 15 mil fogos florestais, num ano anormalmente quente e seco, estão na origem de um dos piores desastres naturais que a Austrália já viveu. Passado um ano, o país tem em mãos a tarefa da regeneração de milhões de hectares de terra queimada. “A natureza precisa de nós, agora mais do que nunca”, diz ao Expresso um responsável do World Wildlife Fund-Austrália. A partir de Portugal há pessoas a apoiar a recuperação de coalas apanhados pelo fogo

Poster enviado pela empresa baixa62

Se para qualquer pessoa em qualquer parte do mundo o ano de 2020 foi tragicamente inesquecível, para muitos australianos foi-o duplamente. Ainda o novo coronavírus não tinha surpreendido fora da China e partes do país eram engolidas por gigantescos incêndios florestais.

A época dos fogos é, por natureza, impactante num país que é o sexto maior do mundo em superfície e o sétimo em termos de área florestal. Mas entre junho de 2019 e fevereiro de 2020, a estação dos fogos assumiu proporções inéditas — mais prolongada, extensa e grave.

15.000
incêndios deflagraram por todo o país

33
pessoas morreram nos fogos

19
milhões de hectares de matas e florestas foram reduzidos a cinza

Só no estado de Nova Gales do Sul, arderam 6.897.000 hectares — o território de Portugal mede 8,7 milhões de hectares.

“Estes incêndios florestais foram dos piores desastres naturais que a Austrália já viveu”, diz ao Expresso Darren Grover, coordenador de Paisagens Terrestres e Marinhas Saudáveis da organização ambientalista World Wildlife Fund — Austrália.

“Estima-se que 3000 milhões de animais tenham sido mortos ou deslocados e até 7000 milhões de árvores tenham sido destruídas ou danificadas. Embora a natureza já tenha começado a regenerar-se, muitas florestas levarão décadas a recuperar. Algumas podem até nunca voltar ao seu estado anterior.”

Um ano depois, a Austrália está a braços com a tarefa da reconstrução de mais de 3100 casas queimadas e da recuperação de milhões de hectares de área ardida. “Os incêndios florestais causaram uma perda impressionante para a natureza, que requer uma ação em larga escala, e o reconhecimento de que não podemos continuar com o business as usual”, defende Darren Grover.

Em outubro, a WWF-Austrália lançou um programa para cinco anos, orçado em 300 milhões de dólares (247 milhões de euros). “É um plano de ação arrojado para ajudar a resolver os problemas criados pelos incêndios e para garantir que o ambiente, as pessoas e a vida selvagem prosperem. O ‘Regenerar a Austrália’ será o maior e o mais inovador programa de recuperação da vida selvagem e de regeneração da paisagem, na história da Austrália. O programa ajudará a repovoar, reabilitar e restaurar a vida selvagem e habitats, impulsionar a agricultura sustentável e preparar o futuro da Austrália contra desastres climáticos.”

Uma batalha em quatro frentes

O programa ‘Regenerar a Austrália’ assenta em quatro eixos:

Plantar 2000 milhões de árvores, para estancar as perdas ao nível da biodiversidade e, ao mesmo tempo, proteger e restaurar os habitats nativos.

Apostar nas energias renováveis, para que se reduza o consumo de carbono no país e para que a Austrália se torne uma potência exportadora de energias renováveis.

Recorrer à inovação, mobilizando mentes que possam contribuir com soluções brilhantes para a regeneração do país.

Proteger os coalas. A meta deste eixo é a duplicação do número de coalas na costa leste até 2050.

Uma das imagens de marca da Austrália, os coalas foram uma das espécies mais atingidas pelos fogos. “O tamanho da população de coalas na Austrália é desconhecido. Eles são animais bastante tímidos e esquivos, o que torna difícil determinar o seu número com precisão”, explica Darren Grover.

“Antes dos incêndios florestais, prevíamos que os coalas no leste da Austrália se iriam extinguir até 2050, devido ao corte excessivo de árvores para o desenvolvimento agrícola e urbano. Agora a situação piorou.”

Um estudo encomendado pela WWF-Austrália apurou que mais de 60 mil coalas foram afetados pelos incêndios, incluindo mais de 41 mil na Ilha dos Cangurus, a sul do território continental, mais de 11 mil no estado de Victoria, quase 8000 em Nova Gales do Sul e quase 900 em Queensland.

Carros e cães são ameaças

“Infelizmente, os sortudos que sobreviveram aos incêndios ainda enfrentam ameaças de destruição de habitat e das mudanças climáticas”, alerta o responsável da WWF-Austrália.

“A destruição dos habitats para o desenvolvimento agrícola e urbano significa, para os coalas, passarem mais tempo no solo em busca de novo abrigo. Isso torna-os mais vulneráveis a serem atropelados por carros e atacados por cães, aumentando os seus níveis de stresse, o que pode levar a doenças como a clamídia.”

A WWF-Austrália dedica aos coalas uma atenção particular. Através do programa “Adote um coala”, é possível ajudar à recuperação de espécimes feridos: uma mensalidade de 15 dólares (€12) ajuda ao fornecimento de curativos e remédios e de 30 dólares (€24) contribui para a plantação de um corredor de árvores para proteger habitats ameaçados.

4
pessoas apoiam, a partir de Portugal, o programa “Adote um Coala”

A diminuição da população de coalas é um drama que tem vindo a avolumar-se por circunstâncias paralelas aos incêndios sazonais. “As alterações climáticas reduziram os níveis de nutrientes nas folhas dos eucaliptos, a principal fonte de alimento dos coalas. Também há fortes evidências do impacto das secas e das temperaturas extremamente altas sobre os coalas”, diz Darren Grover.

“No rescaldo dos incêndios florestais, é mais importante do que nunca proteger as colónias de coalas sobreviventes e as florestas que não arderam, especialmente contra a extração de madeira e a sua destruição.”

Na Austrália esta enorme catástrofe natural levou a discussão para o campo das alterações climáticas. Os fogos começaram no ano mais quente e mais seco de que há registo. E as previsões apontam para um aumento em 25% do risco de fogos extremos em 2050 e em mais 20% em 2100.

A WWF-Austrália está no terreno, mas subitamente todo o trabalho de campo ficou fortemente condicionado pelos confinamentos a que a pandemia de covid-19 obriga. “A WWF-Austrália vai testar drones dispersores de sementes para plantar árvores e criar novos corredores de habitat para coalas”, refere Darren Grover.

“Estamos também a defender leis ambientais mais fortes, que sejam devidamente aplicadas e financiadas para proteger as nossas florestas e bosques. Responder aos impactos dos incêndios florestais durante uma pandemia global tem sido um desafio, mas o nosso trabalho não pára. A natureza precisa de nós, agora mais do que nunca.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Ben Ali caiu há 10 anos e o que se seguiu foi um caso de sucesso. Ou terá sido uma desilusão?

Há exatamente dez anos, o Presidente tunisino fugia do país, acossado por 28 dias de protestos populares. O investigador Álvaro de Vasconcelos, que acompanhou de perto o processo de transição democrática que se seguiu, celebra a existência de um país democrático no mundo árabe. Mas alerta também para os perigos populistas que brotam na cena política tunisina

“Tunísia: contágio democrático?” DAMIEN GLEZ / TOONPOOL

Dez anos após a Primavera Árabe, movimento de contestação popular que tomou as ruas de vários países árabes, a Tunísia é apontada como o único caso de sucesso, no sentido em que foi o único país que conseguiu pôr em marcha um processo de transição de um regime autocrático para uma democracia. Esta é, pelo menos, a avaliação que se faz fora de portas, porque dentro do país a sensação é outra.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, diz ao Expresso a politóloga Khadija Mohsen-Finan, que acaba de lançar o livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Democratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos, a democracia tornou-se um obstáculo à mudança e não é essencial, dadas as suas dificuldades diárias.”

Aquela que foi designada de “revolução de jasmim” trouxe liberdades várias — o multipartidarismo, uma nova Constituição (em 2014), direitos para as mulheres, liberdade de imprensa —, mas não trouxe mais emprego nem uma melhor qualidade de vida. O país tornou-se mais desigual, o desemprego é maior do que antes da revolução, afetando em especial os jovens, a corrupção aumenta de forma desenfreada e há grandes disparidades regionais. É flagrante o contraste entre a riqueza da costa e a pobreza do interior.

“As zonas do interior do país, fronteiriças à Argélia, são extremamente pobres. Continua a haver revoltas constantes, como as que levaram à revolução. A situação é grave, mas ao mesmo tempo este é um momento que deve ser festejado  há um país democrático no mundo árabe”, comenta ao Expresso Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, dedicado à discussão dos temas da democracia e das transições democráticas.

Faz esta quinta-feira dez anos que o ditador Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país para um exílio dourado na Arábia Saudita, encurralado por 28 dias de manifestações populares. A contestação fora desencadeada pelo ato desesperado de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante que se imolou pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca de frutas e legumes.

Ao derrubarem o muro do medo, os tunisinos incentivaram outros povos à revolta contra poderes autocráticos, em especial no Egito, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain — num movimento a que se convencionou chamar “Primavera Árabe”. Em quatro deles, os ditadores tombaram, mas só na Tunísia a democracia floresceu.

“A Tunísia é o que nos resta em termos de consolidação democrática das revoluções de 2011. É um regime constitucional, com uma Constituição extremamente avançada e um país onde existe uma sociedade civil muito ativa e onde a liberdade de expressão está garantida por lei”, enumera Vasconcelos. “Se compararmos com os regimes autocráticos da região, é um progresso extraordinário.”

Quatro fatores cruciais

País pequeno, com uma população homogénea (de quase 12 milhões) — sem o sectarismo da Síria ou o tribalismo da Líbia —, a Tunísia reuniu um conjunto de condições que possibilitaram que a transição democrática fosse desbravando terreno.

1. A MODERAÇÃO DOS ISLAMITAS. Após a revolução, o partido islamita Ennahda — fundado e liderado por Rached Ghannouchi, crítico de Ben Ali regressado do exílio em Londres após a queda do ditador — foi o vencedor das primeiras eleições democráticas livres, para a Assembleia Constituinte (2011). Ainda assim, aceitou repartir o poder com duas outras forças políticas numa tróica.

“O Ennahda optou por um processo democrático, por fazer pontes para os outros partidos, o que não aconteceu, por exemplo, no Egito, onde a Irmandade Muçulmana não fez pontes com os liberais.” Para realçar esse compromisso, em 2016, o Ennahda anunciou o abandono da sua agenda religiosa. Hoje, é o partido mais representado no Parlamento, presidido pelo seu líder, Ghannouchi. O Ennahda tem 52 deputados, num total de 217.

“Saímos do islão político para entrar na democracia muçulmana”
Rached Ghannouchi
fundador e líder do partido islamita Ennahda

A integração do Ennahda na cena política tunisina decorre muito da aprendizagem que os tunisinos fizeram do caso português. Ao longo da transição democrática, a experiência pós-revolucionária portuguesa foi um caso de estudo na Tunísia.

“Houve muitos seminários sobre a transição portuguesa, eu próprio organizei vários quando era diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia [2007-2012] e levei variadíssimos políticos portugueses, o Presidente Jorge Sampaio esteve muito presente”, recorda Álvaro de Vasconcelos.

“Discutiam muito que atitude tomar em relação aos partidos que alguns consideravam fora do sistema. A experiência portuguesa de integração de todas as forças políticas era muito referida, bem como o princípio de que a participação no processo democrático tornava os partidos mais respeitadores da Constituição, menos antissistema.”

2. O DINAMISMO DA SOCIEDADE CIVIL. O protagonismo da sociedade civil em todo o processo foi coroado com a atribuição do prémio Nobel da Paz 2015 ao Quarteto para o Diálogo Nacional, composto por quatro organizações da sociedade civil: uma central sindical, a Confederação da Indústria, a Liga dos Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados.

“A sociedade civil é muito forte, teve um papel motor na revolução e impôs os acordos aos partidos”, diz Vasconcelos, autor do livro “As Vozes da Diferença — A Vaga Democrática Árabe” (2012). “Teve um papel extremamente ativo para impedir que acontecesse na Tunísia aquilo que aconteceu no Egito — a criação de uma frente islamita tal que levasse ao poder uma coligação autoritária.”

3. A NÃO-INTERFERÊNCIA DOS MILITARES. Desde a primeira hora “os militares tunisinos recusaram-se totalmente a apoiar Ben Ali. Foram eles que lhe disseram para se ir embora. E nunca mais intervieram na vida política. Na Tunísia, eu falava com muitos sectores e nunca ninguém me disse: ‘Os militares pensam isto ou aquilo’, como se ouvia constantemente no Egito. Isso é um garante de que eventualmente os militares não apoiarão um golpe”.

4. A POUCA IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA. Contrariamente ao que aconteceu no Egito — peso-pesado da geopolítica do Médio Oriente —, o processo de transição tunisino decorreu sem interferências externas. Mas essa discrição teve um senão: “Fez com que, por exemplo, a Administração Obama, que começou por apoiar as transições democráticas nos países árabes, nunca desse muita atenção à Tunísia”, diz o investigador.

“E a União Europeia também parece mais preocupada com as questões da imigração, da luta contra o terrorismo, do que na consolidação da democracia na Tunísia, apesar de ter sido bastante importante ao não tomar partido contra os islamitas.”

Estes quatro fatores foram cruciais para tornar a revolução possível e concretizar um virar de página no país. Dez anos depois, todavia, o sistema político — descredibilizado por pelo menos dez grandes mudanças a nível governamental — enfrenta novos desafios, como o do populismo, entre islamitas e anti-islamitas, que se manifesta de múltiplas formas.

  • Desde 23 de outubro de 2019, a Tunísia tem um Presidente — Kais Saied — sem partido político. “Foi eleito como um homem só e gostaria de concentrar poderes a partir de um apelo ao povo”, comenta Álvaro de Vasconcelos.
  • Paralelamente, existe um partido salafita, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos e pela Arábia Saudita, que contesta o islamismo democrático do Ennahda. “Faz uma campanha identitária e extremamente violenta contra os direitos das mulheres, contra a laicidade, contra a França e contra o Ennahda.”
  • Restam antigos membros do regime, que reclamam o legado de Habib Bourghiba (Presidente entre 1957 e 1987) mas estão associados a Ben Ali (falecido em 2019). Estes saudosistas de tempos passados alimentam a tentação por um Presidente forte.

“Neste momento, as sondagens na Tunísia são lideradas pelo Partido Destoriano Livre, que defende o regresso ao presidencialismo e a concentração do poder numa figura, que depois pode, por referendos diversos, ir acabando com a democracia”, analisa Vasconcelos.

“O problema agora não são os golpes militares, é aquilo a que podemos chamar golpes constitucionais. É pela via eleitoral que os iliberais chegam ao poder e é a partir do poder que vão desconstruindo o regime democrático. Esse é que é o risco na Tunísia.”

Descrentes nas instituições políticas, frustrados pelas dificuldades económicas e fatigados por dez anos de uma esperança que tarda em concretizar-se, os tunisinos revelam, porém, grande resiliência. Mesmo em tempos de pandemia, os protestos não param, como o revelam as fotos que acompanham este texto, todas referentes a manifestações realizadas no mês passado.

Uma guerra ali ao lado

Há porém um fator mais difícil de contrariar nas ruas: a guerra na vizinha Líbia, que divide a classe política tunisina. O Presidente do país apoia o general Haftar e a sua rebelião a partir do leste da Líbia (apoiada por Arábia Saudita, Egito e Emirados, que são ferozmente anti-islamismo democrático, pela ameaça que constitui ao poder nos seus países). Já o Ennahda coloca-se ao lado do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia, Qatar e comunidade internacional (ainda que não pela França, que apoia o general rebelde).

“O contexto da guerra líbia é também um fator de divisão profunda e perigosa na Tunísia”, conclui Vasconcelos. “Costumo dizer que a fronteira da Líbia com a Tunísia devia ser a nossa fronteira da União Europeia.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

 

A fórmula para combater a pandemia do país com a mais alta taxa de vacinação contra a covid-19

Em menos de três semanas, Israel tornou-se o país com a mais alta taxa de vacinação contra a covid-19 per capita, em todo o mundo. Até esta quinta-feira, o Estado judeu já tinha inoculado mais de 15% da sua população. Mas a esperança na erradicação do novo coronavírus não radica apenas na vacina. Às zero horas desta sexta-feira, entraram em vigor novas medidas restritivas

Se o combate à pandemia de covid-19 é frequentemente comparado a uma longa maratona, em Israel ele parece mais transformado numa corrida de velocidade. Menos de três semanas após o arranque da vacinação no país — com uma injeção mediática no braço direito do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, a 19 de dezembro —, o Estado judeu já inoculou cerca de 1,5 milhões de pessoas (mais de 16% de uma população de 9,3 milhões).

Em todo o mundo, Israel é o país com a mais alta taxa de vacinação per capita. Segundo o contador da agência Bloomberg, só Estados Unidos e China administraram mais vacinas do que Israel, ambos incomparavelmente países mais populosos.

A confiança na vacina não leva as autoridades israelitas a baixarem a guarda. Desde 27 de dezembro, está em vigor o terceiro confinamento desde o início da pandemia. “Pode dizer-se que é o terceiro, mas desde a meia-noite desta quinta-feira é mais o confinamento três ponto um… Esta semana, o Governo aprovou medidas ainda mais restritivas para as próximas duas semanas”, diz ao Expresso, a partir de Telavive, Itay Mor, o presidente da Associação Judaica Over the Rainbow Portugal.

Algumas das restrições são:

  • O encerramento do comércio não essencial.
  • As escolas fecham e regressa o ensino à distância.
  • No mercado laboral, o teletrabalho volta a ser a regra.
  • Os encontros sociais ficam limitados a cinco pessoas dentro
    de casa e a dez no exterior.
  • Apenas serão permitidas deslocações até um quilómetro da
    residência.

Este “último esforço”, como pediu Netanyahu, decorre de uma dramática subida do número de contágios diários que, esta semana, chegou a superar os 8000 casos. Este registo coloca Israel — com um excelente desempenho no campo da vacinação — simultaneamente no ranking dos países que têm mais contágios por milhão de habitantes.

Itay Mor espera receber a vacina dentro de duas semanas, a tempo de viajar para Portugal, onde passa grande parte do seu tempo. “Se não a tomar, quando voltar a Israel terei de ficar duas semanas em quarentena, o que não é prático para trabalhar.”

Como todos os israelitas, Itay está inscrito num dos quatro ‘fundos de saúde’ em torno dos quais se organiza o sistema de saúde do país — uma inscrição obrigatória por lei, que se mantém mediante um pagamento mensal.

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‘fundos de saúde’ providenciam cuidados de saúde aos israelitas, mediante a supervisão das autoridades oficiais. São eles Clalit, Maccabi, Meuhedet e Leumit.

Por estes dias, são estas entidades que recebem as vacinas e realizam a inoculação, seguindo os critérios estabelecidos e que, no caso concreto da pandemia, determinam que a prioridade vá para os mais velhos e para as pessoas vulneráveis.

Dada a gigantesca dimensão da tarefa, foram também abertos centros de vacinação em espaços públicos onde qualquer cidadão se pode dirigir e pedir para ser vacinado. Na Praça Rabin, em Telavive, onde há semanas havia protestos antigovernamentais, existem hoje tendas montadas para este fim.

Apesar de algumas notícias darem conta de um abrandamento do ritmo de vacinação em virtude da escassez de vacinas, o processo flui graças a um trabalho prévio importante, assente em três pilares:

  1. Encomendar cedo. Para evitar perdas de tempo com burocracias, Israel confiou no amigo americano e “decidiu aceitar a aprovação das vacinas feita pelas autoridades de saúde dos Estados Unidos”, explica Itay Mor. “Essa metodologia foi eficaz, pois permitiu que as negociações com as farmacêuticas fossem realizadas muito cedo.”
  2. Pagar mais caro. Israel abriu os cordões à bolsa e desembolsou, no caso da vacina da Pfizer-BioNTech, 30 dólares por duas doses, o dobro pago pela União Europeia. “Foi uma decisão inteligente pagar mais dinheiro e obter as vacinas mais cedo, porque cada dia de confinamento sai mais caro à economia do que pagar as vacinas ao triplo do preço”, diz o israelita.
  3. Digitalizar a distribuição. Um exemplo da capacidade inovadora foi a opção por acomodar as vacinas da Pfizer, que requerem condições de conservação exigentes, em pequenas caixas de ultracongelação (aprovadas pela Pfizer), permitindo a distribuição da vacina em quantidades mais pequenas e facilitando o seu transporte para locais remotos. Outra técnica passou por rentabilizar a quantidade de vacina em cada frasco por mais doses.

Esta quinta-feira, chegaram a Israel as primeiras 100 mil doses de uma encomenda de seis milhões adquiridas à Moderna. Até agora, as vacinas usadas têm sido apenas as da Pfizer-BioNTech, a quem Israel comprou oito milhões de doses.

Para os laboratórios farmacêuticos, Israel é a montra ideal para demonstrar ao resto do mundo a eficácia das vacinas produzidas: é um país pequeno, tem um sistema de saúde universal, informação centralizada sobre os pacientes e conhecimento tecnológico que garante uma rede de distribuição digitalizada.

E os palestinianos?

Este desempenho israelita é, porém, ensombrado por críticas à forma como os palestinianos dos territórios são ignorados no plano de vacinação de Israel, quando há vacinas a serem transportadas para a Cisjordânia para imunizar os colonos judeus.

Abrangidos pela vacinação estão os cerca de 20% de israelitas árabes (cidadãos de pleno direito, como a maioria de judeus) e também os palestinianos de Jerusalém Oriental.

De fora ficam os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e também, para já, os palestinianos detidos em prisões israelitas. O Ministério da Segurança Pública ordenou a vacinação dos guardas prisionais e fez depender a inoculação dos presos “do progresso da vacinação para o público em geral”.

Pelos Acordos de Oslo (1993) — o último tratado de paz celebrado entre israelitas e palestinianos —, é a Autoridade Palestiniana (AP) que tem a competência de providenciar os serviços de saúde ao povo palestiniano. Até ao momento, não só a AP não solicitou ajuda a Israel como é público que está a negociar a compra da vacina russa.

Contactada pelo Expresso, a Aliança Global para as Vacinas (Gavi), presidida desde o dia 1 por Durão Barroso, confirmou que Cisjordânia e Faixa de Gaza estão na lista de territórios elegíveis para beneficiarem do mecanismo Covax, que prevê o fornecimento de vacinas aos países mais desfavorecidos.

Dever moral

Ainda que, legalmente, Israel não esteja obrigado a providenciar vacinas aos palestinianos, coloca-se a questão da responsabilidade moral e humanitária em relação às populações que tem sob seu controlo: as da Cisjordânia, no âmbito de uma ocupação militar, e as da Faixa de Gaza, em virtude do bloqueio ao território. Não raras vezes, Israel tem acolhido e tratado palestinianos nos seus hospitais.

“Israel tem o poder de obstruir a entrada e / ou administração das vacinas em Gaza e nas áreas atrás ou isoladas pelo Muro [da Cisjordânia], explica ao Expresso a analista política palestiniana Nour Odeh.

Ou seja, tudo o que é destinado aos territórios palestinianos entra por fronteiras controladas por Israel (excetuando os túneis clandestinos de Gaza, escavados sob a fronteira com o Egito), que aprova ou rejeita esse trânsito. Não estando a vacina russa aprovada pelas autoridades israelitas, tecnicamente há potencial para Israel objetar à sua entrada no país.

(IMAGEM Bandeira de Israel estampada numa máscara cirúrgica THE JEWISH FEDERATIONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui