Recomeçaram as conversações de paz. Qualquer que seja a conclusão, os talibãs estão talhados para ganhar

As conversações de paz entre o governo do Afeganistão e os talibãs recomeçam esta terça-feira. Mas apesar de um país fustigado por tantos anos de guerra, o interesse pela trégua não é consensual. Ao Expresso, o major-general Carlos Branco, um antigo porta-voz das forças da NATO no Afeganistão, explica como o futuro do país depende muito “da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas e que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs”

“Invadimos o Afeganistão para encontrar Bin Laden. Encontrámo-lo no Paquistão, e ainda continuamos no Afeganistão. Precisamos de um GPS melhor.” A piada tem uns anos e foi dita pelo comediante norte-americano Andy Borowitz, que assina atualmente uma coluna satírica na publicação “The New Yorker”. Na altura, as tropas dos Estados Unidos levavam mais de dez anos no Afeganistão — hoje por lá continuam, a caminho dos 20.

Foi contra o regime dos talibãs — que dava guarida a Osama bin Laden e à sua Al-Qaeda — que os Estados Unidos retaliaram depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e Nova Iorque. Hoje o conflito não tem o caráter de uma guerra aberta, mas o quotidiano dos afegãos continua a ser fustigado por muita violência.

Numa das últimas chacinas, a 3 de novembro passado, o alvo foi a Universidade de Cabul, a maior do país. Durante seis horas, três homens armados entraram no campus e foram detonando explosivos e disparando contra quem surgia pela frente.

O ataque — que foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (rival dos talibãs, ainda que ambos sunitas) — fez 22 mortos e mais de 40 feridos. A maioria das vítimas eram alunos, jovens que investiam o seu tempo na educação, acreditando no futuro de um país que, por vezes, parece não ter futuro possível.

Futuro auspicioso é possível, mas…

“Se por futuro entendermos a instauração de uma democracia liberal, então seguramente que não teremos futuro no Afeganistão. Isso está longe de acontecer. Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz do comandante da força da NATO no Afeganistão, entre 2007 e 2008.

“É possível um futuro auspicioso para o Afeganistão, mas diferente daquele que as potências gostariam que fosse”, continua. “Tudo dependerá do modo como decorrerem as conversações intra-afegãs e da capacidade de reconciliação nacional. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

Será também importante perceber “como será reformulada a Constituição, até que ponto incorporará a sharia [lei islâmica], qual será o regime político e como será feita a partilha de poder”, acrescenta Carlos Branco. “A resposta a estas questões determinará o futuro do Afeganistão.”

Esta terça-feira, em Doha, a capital do Qatar, foram retomadas as conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs, um processo iniciado em setembro passado. Para as autoridades de Cabul, a prioridade do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo.

“Existe potencial para um cessar-fogo, embora não seja fácil que ocorra. Um cessar-fogo não significa paz, é uma trégua apenas. O Governo afegão está interessado porque encontra-se numa situação militar difícil“, continua o militar, autor do livro “Do fim da Guerra Fria a Trump e à covid-19 — As promessas traídas da ordem liberal“ (Edições Colibri, 2020).

“Para Cabul, o cessar-fogo é importante para recuperar do esforço de guerra a que tem estado sujeito. As forças governamentais encontram-se muito desgastadas.” Inversamente, “os talibãs estão renitentes num cessar-fogo, porque sentem que lhes é desvantajoso”.

Combatentes vão à terra e não regressam

“Os talibãs fazem uma abordagem diferente ao cessar-fogo. Se o cessar-fogo não trouxer a paz, o que não acontecerá tão depressa, terá um impacto tremendo na sua capacidade militar: os seus combatentes voltam para as suas aldeias e será difícil voltar a convocá-los e manter uma capacidade militar capaz de pressionar o Governo.”

Para os “estudantes”, antes do cessar-fogo há que estabelecer um roteiro político que leve a um novo Governo. Com esse objetivo em mira, têm usado ataques contra forças de segurança e civis como demonstrações de poder e formas de alavancar influência na hora de negociar um governo sustentado na lei islâmica.

As conversações de paz que se reiniciam esta terça-feira têm na sua origem um acordo de paz alcançado a 29 de fevereiro de 2020 entre a Administração Trump e os talibãs.

As exigências de norte-americanos e talibãs são claras: os primeiros querem dos “estudantes” a garantia de que não manterão relações com a Al-Qaeda nem permitirão que o país se torne um porto seguro de organizações terroristas, como aconteceu em 2001. Já os talibãs exigem a retirada de todas as tropas estrangeiras do seu país.

“Há um calendário de retirada dos militares americanos que está condicionado pelo comportamento dos talibãs, e que se cumprirá na medida em que os talibãs cumprirem o acordado”, comenta Carlos Branco, que recorda que, nesta altura, o efetivo de membros de empresas de segurança americanas supera o dos militares.

À espera de Joe Biden

O Governo de Cabul não foi tido nem achado no acordo de paz entre os EUA e os talibãs, e essa poderá ser uma das razões pelas quais as conversações de Doha se têm arrastado sem progressos significativos. “Apenas se conseguiu acordar os termos em que as negociações irão decorrer”, comenta Carlos Branco.

“O Governo afegão não se conforma com o facto de ter sido excluído das conversações levadas a cabo pela Administração Trump com os talibãs. Faz resistência passiva, na esperança de que a nova Administração possa fazer algo diferente e reverta algumas das decisões já acordadas. O Partido Democrata já fez saber que não concorda com o atual ‘Estado da Arte’.”

O desinteresse das autoridades de Cabul pelo diálogo é tal que “dá-se a situação irónica de ser Zalmay Khalilzad, o representante especial dos EUA para a reconciliação afegã, nomeado por Mike Pompeo [secretário de Estado dos EUA], quem tenta desesperadamente manter vivo o processo negocial, exercendo pressão constante sobre o Governo para o manter envolvido nas negociações”.

“O Governo afegão não está entusiasmado nem interessado em prosseguir com as negociações porque sabe que qualquer que seja o resultado de um processo de reconciliação nacional, ele será sempre feito às suas custas. Se os talibãs passarem a integrar o Governo do país, este será dominado pelos talibãs, o que é inaceitável.”

Muitas vezes se ouve dizer que não há uma solução militar para o conflito afegão, e que o país tem mais a ganhar com uma resolução obtida à mesa das negociações do que no campo de batalha. Mas quase 20 anos depois de terem sido arredados do poder em Cabul, os talibãs parecem talhados a continuar a ganhar.

(ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui