Rapidez e robustez: as duas armas com que o Vietname ‘encaixotou’ o vírus

Encostado à China, o Vietname é um caso de sucesso no combate à covid-19. Do governo autocrático à experiência acumulada em contextos de epidemias, a estratégia vietnamita passa essencialmente por antecipar-se aos problemas e atuar com rapidez

O Vietname, com quase 100 milhões de habitantes, tem dos registos mais eficazes no combate à pandemia de covid-19. Com uma fronteira de cerca de 1300 quilómetros com a China — onde tudo começou —, o país conseguiu contornar os piores cenários verificados em países mais desenvolvidos e com mais meios.

Este país do Sueste Asiático comunicou o seu primeiro caso positivo no longínquo 23 de janeiro de 2020 — uma vietnamita de 35 anos que passou dois meses em Wuhan, numa viagem de negócios —, e as duas primeiras mortes a 30 de julho seguinte. Até esta sexta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, contabilizava apenas 2426 casos de infeção e 35 mortes por covid-19.

O facto de o Vietname ter um Governo autocrático pode levantar suspeitas sobre a credibilidade dos números. O infeciologista Guy Thwaites, diretor da Unidade de Pesquisa Clínica da Universidade de Oxford, em Ho Chi Minh (antiga Saigão), garante ao Expresso: “Os números estão corretos. O Governo não está a esconder nada”.

O Vietname é um país jovem, com uma média de idades a rondar os 30 anos, e tem uma taxa de obesidade (fator de risco para a covid-19) extremamente baixa. Mas o que verdadeiramente fez a diferença em relação a países com mais e melhores meios foi, sobretudo, a resposta rápida e robusta com que conseguiu “encaixotar” o vírus.

Da experiência acumulada na gestão de epidemias passadas até uma estratégia de testagem direcionada, há dez pilares do modelo vietnamita que — combinados — têm protegido o país de um cenário de caos.

1. SISTEMA DE SAÚDE DESENVOLVIDO

O Muro de Berlim ainda não caíra, mas no Vietname, governado pelo Partido Comunista, já havia a noção de que algo teria de mudar. Em 1986 um conjunto de reformas económicas que ficaram conhecidas como “Doi Moi” visaram a transformação de uma economia planificada centralizada para uma economia de mercado de orientação socialista. O sector da saúde foi dos que beneficiaram de forte investimento. Entre 2000 e 2016 os gastos com a saúde pública aumentaram em média 9% por ano, per capita. A capacidade do sistema de saúde vietnamita possibilita que, atualmente, todos os casos positivos de covid-19 sejam hospitalizados, independentemente dos sintomas do paciente, sem que os hospitais entrem em rutura.

2. EXPERIÊNCIA ACUMULADA

O Vietname tem experiência de combate a epidemias — a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, em 2003-3004), a gripe das aves (2004-2005) e o Zika (2016) — que agora se revelou preciosa para atacar o SARS-CoV-2. Em 2003, o país tornou-se mesmo o primeiro a ser retirado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da lista de territórios afetados pela SARS. Decorrente de todas estas emergências, o Vietname está hoje dotado de um centro nacional de operações de emergência de saúde pública, equipado com epidemiologistas, e um sistema nacional de vigilância de saúde pública. Tudo contribui para que as autoridades atuem com conhecimento de causa e a população reconheça e obedeça.

3. DADOS CENTRALIZADOS

Há cerca de dez anos, o Vietname transferiu para a Internet o seu robusto sistema de recolha e cruzamento de dados de entidades de saúde pública, agilizando a reação aos problemas. Desde 2016, os hospitais são obrigados a reportar determinadas doenças a uma base central num período de 24 horas. Isto permite ao Ministério da Saúde acompanhar uma crise epidemiológica em tempo real.

4. VIGILÂNCIA DE PROXIMIDADE

O Vietname tem um programa de vigilância comunitária que capacita professores, farmacêuticos, líderes religiosos, responsáveis comunitários e até curandeiros para relatarem situações suspeitas. Os alertas são dados, por exemplo, perante aglomerados de pessoas com sintomas semelhantes que possam indiciar a emergência de um surto.

5. TESTES DIRECIONADOS

Se o Vietname tem uma testagem à covid-19 per capita relativamente baixa, lidera destacadíssimo a lista dos países que mais testam por caso positivo. Em vez de realizar testes em função dos sintomas da população, o Vietname optou por testar com base na exposição ao risco, priorizando as pessoas identificadas no rastreamento de contactos dos casos positivos e acorrendo com rapidez a edifícios ou bairros onde se registavam surtos.

Esta estratégia passou por um amplo rastreamento em redor de cada caso positivo (F0) envolvendo quem contactou com a pessoa infetada nos 14 dias anteriores (F1). Se F1 testasse positivo era hospitalizado, se testasse negativo ficava 14 dias de quarentena num centro administrado pelo Governo. Contactos próximos de um paciente F1 (F2) ficavam em isolamento em casa durante duas semanas. E assim sucessivamente até ao grau F5.

6. CONFINAMENTOS RIGOROSOS

Cerca de um mês antes de a OMS classificar a epidemia de covid-19 como “pandemia” (o que aconteceu a 11 de março de 2020) e apelar à adoção de “ações urgentes e agressivas” para inverter o rumo da situação, já as autoridades vietnamitas confinavam localidades. Em meados de fevereiro, Son Loi foi isolada durante quase um mês quando se descobriu que seis dos seus cerca de 10 mil habitantes estavam entre os 16 casos de covid-19 detetados no país.

Outro tipo de confinamento rigoroso aconteceu em abril seguinte, quando a localidade de Dong Van (7600 habitantes) ficou confinada 24 horas enquanto aguardava pelo resultado de testes à covid-19 feitos a moradores suspeitos.

Na fase inicial da pandemia, as autoridades vietnamitas lidaram com o problema com rédea muito curta, mais ainda quando foram detetados casos importados. As medidas passaram não só pelo isolamento de pessoas que tinham contactado com pessoas infetadas, ou que viviam na mesma rua, ou que tinham viajado no mesmo avião. Muitos passageiros oriundos de países fortemente afetados pela pandemia ficaram duas semanas de quarentena nos centros do Governo. E os voos internacionais foram desviados dos aeroportos onde partiam e chegavam voos domésticos.

7. TECNOLOGIA INTRUSIVA

A resposta vietnamita à covid não dispensou a tecnologia. Com a doença no país há menos de dois meses, o Ministério da Saúde lançou a aplicação móvel (app) NCOVI, que ajuda a montar sistemas de vigilância de bairro: nela os cidadãos podem não só notificar diariamente o seu estado de saúde como fornecer informação sobre casos suspeitos nas suas áreas de residência. Esta app inclui um mapa dos casos detetados que permite que os utilizadores observem o movimento em tempo real de pessoas colocadas em quarentena. Sem valorizar as questões da privacidade, para muitos vietnamitas, os fins justificam os meios.

Pouco depois, a 15 de abril de 2020, foi lançada outra app, a Bluezone, que funciona através de bluetooth e notifica os utilizadores de uma possível exposição ao vírus a dois metros de distância. A Bluezone foi descarregada mais vezes do que apps populares como o Messenger e o TikTok.

8. COMUNICAÇÃO CLARA

O primeiro aviso do Ministério da Saúde à população sobre os perigos da doença foi feito a 9 de janeiro de 2020, quando ainda não tinha sido ainda detetado qualquer caso de covid-19 fora da China. Desde então o Governo de Hanói não mais parou de comunicar com o público, em espaços públicos, enviando sms, aproveitando as redes sociais (só o Facebook tem 64 milhões de utilizadores no Vietname) ou adaptando a letra de um popular tema musical vietnamita, agora intitulado “Ghen Co Vy” (Coronavírus Ciumento).

A comunicação frequente — sob o lema “Lutar contra a epidemia é como lutar contra o inimigo” — contribuiu para criar um espírito de comunidade em que cada cidadão se sente motivado a cumprir a sua parte, seja usando a máscara ou tolerando confinamentos.

“Cada cidadão é um soldado, cada casa, aldeia, área residencial é uma fortaleza na luta contra a pandemia.”

Nguyen Xuan Phuc
primeiro-ministro do Vietname
9. RAPIDEZ NA ATUAÇÃO

O Vietname não esperou pela confirmação do primeiro caso positivo dentro de portas para aplicar confinamentos e limitar a mobilidade de quem lá vive. As escolas foram encerradas quando apenas havia notícias de uma “grave pneumonia” na China. Por vezes, as autoridades associaram à rapidez decisões drásticas. Quando, a 25 de julho de 2020, foi detetado o primeiro caso de transmissão local no país, na estância turística de Da Nang, o local foi rapidamente evacuado, o que obrigou à transferência de 80 mil pessoas, a maioria turistas locais. Foi nesta cidade, a 31 de julho, que se registou a primeira vítima mortal no país.

10. GOVERNO AUTORITÁRIO

O regime de partido único e, consequentemente a ausência de oposição política, torna possível uma cadeia de comando única desde o Presidente Nguyen Phu Trong — simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista — e a autoridade local na mais pequena aldeia do país. Num contexto de emergência pública, é a situação ideal para passar mensagens, mobilizar recursos, aplicar estratégias e punir, se for caso disso. Desde 14 de abril de 2020 que publicar, nas redes sociais, informação falsa ou distorcida, mentiras e calúnias passou a ser punido com multas. Para um país como o Vietname, que sente estar a travar mais uma guerra biológica, tudo vale para a vencer.

(ILUSTRAÇÃO PHARMACEUTICAL TECHNOLOGY)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Golpes na democracia

O retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi faz temer a transformação do país numa autocracia

os meandros das relações internacionais, a referência à “maior democracia do mundo” não carece de explicação, já que se tornou sinónimo de Índia. Mas se “maior” é adjetivo incontestável para o caso, dada a dimensão do país onde vive quase um quinto da população mundial (1300 milhões) e onde cada ato eleitoral dura vários dias, já o carácter democrático do seu sistema de governo é cada vez mais questionável.

A perceção de uma certa degradação acentua-se perante casos como o que envolveu Disha Ravi, ativista de 22 anos detida, faz amanhã duas semanas, após ter divulgado um “kit para protestos” publicado na rede social Twitter pela ambientalista sueca Greta Thunberg. O documento alertava para a luta dos agricultores indianos, há meses em pé de guerra com o Governo devido a três novas leis que os farão perder rendimentos em detrimento das grandes empresas. Ravi sugeria formas de luta.

A vaidade ferida do governo

Neta de agricultores, a ativista conheceu desde o berço as dificuldades de quem vive da terra, agravadas ano após ano pelas alterações climáticas que danificavam as colheitas com secas ou chuvas abundantes. Levada pela polícia da casa onde vive com a mãe, em Bangalore, Ravi — que trabalhava num restaurante vegan e esteve na origem da versão indiana das Sextas-Feiras pelo Futuro iniciadas por Thunberg — foi acusada de sedição.

Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias, as autoridades optam por punir os críticos

Terça-feira passada, um tribunal de Nova Deli libertou-a após considerar haver “provas escassas e incompletas” de sedição nas suas ações. O juiz criticou também a atuação das autoridades, por serem ágeis a deter quem discorda das políticas governamentais. “Mesmo os nossos pais fundadores concederam o devido respeito à divergência de opinião, reconhecendo a liberdade de expressão como direito fundamental inviolável”, disse o magistrado Dharmender Rana. “O direito à dissidência está firmemente consagrado no artigo 19 da Constituição da Índia.” O juiz acrescentou que “a sedição não pode ser invocada para servir a vaidade ferida do governo”.

Dissidentes como terroristas

“A repressão da dissidência pacífica é extremamente preocupante”, comenta ao Expresso Meenakshi Ganguly, diretora para a Ásia do Sul da Human Rights Watch. “As autoridades indianas estão a fazer acusações contra críticos ao abrigo de leis draconianas de contraterrorismo ou antissedição.”

Casos como o de Ravi expõem ameaças quotidianas às liberdades civis, como a criminalização da dissidência e da liberdade de expressão, que têm levado a Índia a perder posições nas classificações internacionais que avaliam a qualidade da democracia no mundo. Divulgado há três semanas, o último Índice da Democracia elaborado pela The Economist Intelligence Unit coloca a Índia no 53º lugar. Em 2014, quando Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, o país estava na 27ª posição.

“As normas democráticas estão sob pressão desde 2015”, diz o relatório, que justifica a queda consistente com “um retrocesso democrático sob a liderança de Narendra Modi”, apologista do nacionalismo hindu. “A crescente influência da religião sob o Governo de Modi, cujas políticas fomentaram o sentimento antimuçulmano e os conflitos religiosos, prejudicou o tecido político do país.”

Minoria de quase 200 milhões

Uma medida que incendiou as sensibilidades e gerou confrontos violentos foi a aprovação de uma emenda à Lei da Cidadania, a 10 de dezembro de 2019, que facilita a obtenção da cidadania indiana a pessoas oriundas de um conjunto de países e que professem determinadas religiões, mas não a muçulmana. Na Índia, os muçulmanos são uma minoria de quase 200 milhões, visados pela nova lei e pela atitude discriminatória e o discurso de ódio que ela normalizou. Em fevereiro de 2020, confrontos entre hindus e muçulmanos em Nova Deli provocaram 53 mortos.

“É a agenda política do partido nacionalista hindu [Bharatiya Janata], no poder, que muitas vezes demoniza as minorias religiosas”, denuncia Meenakshi Ganguly. “Quando são criticadas por terem políticas discriminatórias ou por causa de ataques violentos realizados por apoiantes do Governo, infelizmente, as autoridades optam por punir os críticos. Vemos um padrão de preconceito na atuação contra o discurso dos críticos do Governo, acusando-os de serem antipatriotas ou de causarem inimizade entre as comunidades, enquanto os apoiantes do Governo que incitam abertamente ao ódio e à violência são protegidos.”

Há duas semanas o jornal norte-americano “The Washington Post” recuperou um caso com três anos que mancha a credibilidade da Índia enquanto Estado de direito. Era 1 de janeiro de 2018 e na aldeia de Bhima Koregaon, no ocidente da Índia, comemorava-se o 200º aniversário da batalha com o mesmo nome, que os dalits (“intocáveis”, a casta mais baixa da sociedade indiana) sentem como vitória sobre um adversário de casta superior. A celebração originou atos violentos entre hindus e dalits e levou à detenção de ativistas defensores dos mais desprivilegiados, acusados de conspirar para derrubar o Governo de Modi.

Segundo a investigação do jornal americano, os ativistas — alguns dos quais estão presos há mais de dois anos sem julgamento, ao abrigo de legislação antiterrorista — foram incriminados por informação colocada no portátil de um deles durante um ciberataque. A descoberta foi feita por uma empresa digital forense dos Estados Unidos, que analisou uma cópia do computador a pedido do advogado do ativista. Solicitado pelo jornal, as conclusões foram depois revistas por três peritos em malware, que as validaram.

Casos como este tornam as conclusões de outro barómetro internacional da democracia pouco surpreendentes. Segundo o Instituto Variedades de Democracia (V-Dem), da Suécia, a Índia integra o top 10 das democracias que mais depressa se estão a transformar em autocracias.

OPINIÃO

Três revoluções em curso

Ademocracia indiana está em contínuo desenvolvimento com múltiplos desafios, como todas as outras, incluindo a portuguesa e a americana. Mas ao contrário das democracias ocidentais, a indiana é bem mais jovem. Em termos formais, comemora 75 anos em 2022, marcando o fim do colonialismo britânico em 1947. Na prática, a democracia indiana é um processo revolucionário em curso, marcado por três ruturas desde os anos 90: uma revolução demográfica, com a maior população jovem do mundo e uma média de idades de 27 anos, naturalmente ambiciosa e impaciente; uma revolução económica, com a abertura do mercado e aceleração das reformas a reduzirem drasticamente a pobreza; e uma revolução social e política, com a ascensão de castas e classes tradicionalmente marginalizadas por via das quotas e outras garantias constitucionais. No seu conjunto, esta transição puxa para dois sentidos opostos: uma Índia menos anglófona e elitista com a expansão da participação democrática, por via da mobilização hindu, nacionalista e identitária, o que coloca crescente pressão sobre instituições, minorias e liberdades. O paradoxo é que a Índia está mais jovem e democrática do que nunca, mas também menos liberal e cosmopolita.

Constantino Xavier, investigador no Centro para o Progresso Social e Económico, de Nova Deli

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

A quem já telefonou Joe Biden… e a quem não

Nas primeiras conversas com líderes estrangeiros, o novo Presidente dos Estados Unidos privilegiou os dois países vizinhos, três aliados europeus e alguns pesos-pesados da geopolítica mundial

Nos últimos 30 anos, os Presidentes dos Estados Unidos da América recém-chegados à Casa Branca usaram os seus primeiros telefonemas internacionais para promover a boa vizinhança. Donald Trump ligou para o Canadá e para o México, no dia seguinte a tomar posse. O antecessor, Barack Obama, privilegiou o Canadá e, antes dele, George W. Bush o México. Só Bill Clinton colocou a geopolítica à frente de tudo e ligou, prioritariamente, para Rússia e Israel.

Joe Biden, que tomou posse faz amanhã um mês, tinha telefonado, até ontem, a 11 líderes estrangeiros. “Parece preocupado em restabelecer as grandes linhas que dominaram a política externa dos EUA nas últimas décadas, e que Trump rompeu abruptamente”, comenta ao Expresso o americanófilo José Gomes André. “Nomeadamente, reconstruir conexões com aliados permanentes (como os grandes países europeus) e construir um arco diplomático alicerçado em democracias sólidas e confiáveis para enfrentar os grandes desafios geopolíticos.”

22-01 CANADÁ 
Desilusão a norte

A conversa com o primeiro-ministro Justin Trudeau durou cerca de 30 minutos, o suficiente para acordarem áreas de cooperação e identificarem obstáculos no caminho. Trudeau expressou a sua “desilusão” em relação à decisão de Biden de cancelar a construção do polémico oleoduto Keystone XL, que levaria petróleo de Alberta até ao Texas ao ritmo de 830 mil barris por dia. Biden fê-lo no seu primeiro dia em funções, ao mesmo tempo que decretava o regresso dos EUA ao Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas.

22-01 MÉXICO 
Provocação a sul

Andrés Manuel López Obrador foi, juntamente com o homólogo brasileiro Jair Bolsonaro, dos mais resistentes a felicitarem Joe Biden pela vitória eleitoral. O norte-americano desvalorizou e colocou o México entre os contactos prioritários. Biden prometeu cooperação, nomeadamente ao nível dos fluxos migratórios irregulares, e ignorou as controvérsias recentes. Em janeiro, López Obrador ofereceu asilo político a Julian Assange, numa atitude provocatória para com os EUA, que lutam na justiça pela extradição do fundador da WikiLeaks, detido no Reino Unido.

23-01 REINO UNIDO 
Uma relação especial

Ao contrário do seu antecessor, Biden nunca foi adepto da saída do Reino Unido da União Europeia (‘Brexit’), mas a opção britânica por esse desígnio não parece beliscar a relação privilegiada entre os dois lados do Atlântico. A seguir aos vizinhos, o novo Presidente telefonou ao primeiro-ministro Boris Johnson, com quem conta para revitalizar os laços transatlânticos. Segundo informações da Casa Branca, os dois discutiram a coordenação de prioridades em matéria de política externa, nomeadamente a Rússia, a China e o Irão.

24-01 FRANÇA 
Alinhar estratégias

Na retórica de Washington, França é “o mais antigo aliado” dos EUA, sentimento que Biden enfatizou na sua conversa com o homólogo Emmanuel Macron. Segundo o palácio do Eliseu, os governantes constataram “uma grande convergência de pontos de vista” e “vontade de atuar em conjunto no sentido da paz e estabilidade no Médio Oriente, em particular no dossiê iraniano e na situação no Líbano”. Já o comunicado da Casa Branca realçou a necessidade de alinhar estratégias na região africana do Sahel, onde a França lidera uma operação internacional de combate ao extremismo islâmico.

25-01 ALEMANHA 
Procurar consenso

Um dos símbolos da tensão transatlântica sentida na era Trump foi a decisão de os EUA fazerem regressar 9 mil soldados estacionados em solo alemão. Biden congelou a medida, e Berlim suspirou de alívio. “Há uma oportunidade muito mais ampla para um consenso político com o Presidente Biden”, reagiu a chancelerina Angela Merkel, após conversar com aquele. Segundo a Casa Branca, ambos afirmaram a necessidade de acertar agulhas relativamente a cenários como o Afeganistão, a Ucrânia e os Balcãs. Ficou claro também o desejo de Biden de revitalizar a relação com a União Europeia, que Trump desprezou, acusando os europeus de “fazerem batota” à custa da economia dos EUA.

26-01 RÚSSIA 
Um rol de queixas

No mesmo dia em que conversou com o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, para reafirmar o seu compromisso com o multilateralismo, designadamente ao nível da segurança, Joe Biden falou com o líder do país contra o qual a Aliança Atlântica foi criada. No relato da Casa Branca, Biden “não se conteve” ao telefone com Vladimir Putin: reafirmou o apoio à soberania da Ucrânia, abordou o ataque cibernético SolarWinds, as denúncias de recompensas russas a ataques aos militares dos EUA no Afeganistão, a interferência nas eleições de 2020 e o envenenamento de Alexei Navalny. A conversa não terá indisposto totalmente o Presidente russo, já que poucos dias depois EUA e Rússia prolongaram o Tratado New START (relativo à redução dos arsenais nucleares) mais cinco anos.

27-01 JAPÃO 
Hoje e sempre, a segurança

EUA e Japão têm uma relação marcada pelo desfecho da II Guerra Mundial e, na conversa que manteve com o primeiro-ministro, Yoshihide Suga, Biden reafirmou o compromisso inabalável de Washington com a defesa do aliado nipónico, incluindo as ilhas Senkaku, reivindicadas pela China. Biden e Suga “passearam-se” pela região do Pacífico e enfatizaram a necessidade de desnuclearização total da Península da Coreia.

03-02 COREIA DO SUL 
A pensar no Norte

Washington e Seul têm uma relação que dura há mais de sete décadas, tantas quantas a Coreia do Sul existe enquanto país. Para Washington, aquela nação é “o pilar de segurança e de prosperidade” na região do Pacífico. Foi este o ponto de partida da conversa entre Biden e o homólogo Moon Jae-in, numa conversa que teve como assunto incontornável a Coreia do Norte. A Coreia do Sul acompanhou Donald Trump na sua histórica aproximação a Kim Jong-un, mas esse é um legado que a nova Administração norte-americana recebeu com cautelas e que quererá abordar com calma.

03-02 AUSTRÁLIA 
Uma questão de ambição

Nos seus telefonemas aos líderes mundiais, como se constata nos comunicados da Casa Branca, Biden insistiu na cooperação com vista ao combate às alterações climáticas. O Presidente considera serem uma “ameaça existencial ao planeta” e já agendou uma cimeira sobre o clima para 22 de abril. Quando conversou com o primeiro-ministro Scott Morrison, houve na Austrália quem achasse que Biden iria pressioná-lo no sentido de maior compromisso com o desafio ambiental — a Austrália ainda não se comprometeu com a meta da neutralidade carbónica até 2050. Morrison disse que essa pressão não existiu e resumiu: “No que respeita às relações entre a Austrália e os EUA, não há nada para consertar, apenas coisas para construir.”

08-02 ÍNDIA 
Com a China no pensamento

As viagens internacionais estão fortemente condicionadas pela pandemia de covid-19, mas assim que se tornarem seguras, Joe e Jill Biden já têm convite em mãos para visitarem a Índia. Foi endereçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, durante o telefonema com o Presidente dos EUA, que abordou os desafios da região e a necessidade de fortalecimento da segurança através do Quad. Abreviatura de Diálogo Quadrilateral de Segurança, trata-se de um fórum frequentado por quatro países (Índia, EUA, Japão e Austrália), que, de forma informal, trabalha para contrariar a influência política, comercial e militar da China na região.

10-02 CHINA 
O concorrente mais sério

A proximidade ao Ano Novo Chinês deu um toque festivo à conversa de Biden com o homólogo Xi Jinping, que não iludiu as inúmeras preocupações norte-americanas relativas ao modus operandi chinês: práticas económicas coercivas, repressão em Hong Kong, violações dos direitos humanos em Xinjiang e ações assertivas na região do Pacífico. As palavras de Biden não terão apanhado Xi de surpresa. Cerca de uma semana antes, no seu primeiro discurso sobre política externa, o americano defendeu: “A liderança americana deve enfrentar este novo momento de avanço do autoritarismo, incluindo as ambições crescentes da China de rivalizar com os Estados Unidos.” E acrescentou. “Enfrentaremos diretamente os desafios colocados à nossa prosperidade, segurança e valores democráticos pelo nosso concorrente mais sério, a China.”

ISRAEL NERVOSO, IRÃO IMPACIENTE

A ausência de Israel do grupo de países prioritários a receber telefonema do novo Presidente dos EUA causou inquietação no mais sólido aliado dos norte-americanos no Médio Oriente.

“É possível que o silêncio de Washington tenha como objetivo enviar uma mensagem muito clara a Israel: o mergulho de cabeça de Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelita] na política partidária dos EUA e os seus ditames para a nova Administração têm um preço na Casa Branca”, diz ao Expresso Ari Heistein, investigador no Instituto para os Estudos de Segurança Nacional, de Israel.

O israelita defende que a situação “deixa Netanyahu nervoso” devido à proximidade das legislativas de 23 de março (e à possibilidade de não poder afirmar-se na campanha como “o grande estadista de Israel”, dada a frieza do aliado americano), e também devido à questão iraniana.

“A diplomacia nuclear dos EUA com o Irão começará em breve e Israel espera muito ter um canal de comunicação aberto com Washington ao mais alto nível, de modo a garantir que os seus interesses e preocupações em relação ao programa nuclear do Irão sejam levados em conta pelos EUA.”

Em Teerão, este silêncio é interpretado “como sinal de que os EUA querem negociar. Não por uma questão de vontade, mas porque têm de o fazer”, comenta ao Expresso a iraniana Ghoncheh Tazmini, investigadora na London School of Economics.

“O Irão reduziu gradualmente o seu compromisso com o defunto acordo [sobre o seu programa nuclear] e há rumores de que está a ficar impaciente e pode considerar acelerar o programa nuclear se não houver avanços do lado dos EUA.” Com Netanyahu por perto, a margem de manobra de Joe Biden será menor.

(FOTO Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, ao telefone, na Sala Oval da Casa Branca ADAM SCHULTZ / FLICKR / CASA BRANCA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Aung San Suu Kyi. Presa quatro vezes por lutar pela democracia

Filha de um herói da independência da Birmânia (atual Myanmar), a vida de Aung San Suu Kyi confunde-se com a história do próprio país. Nos últimos 32 anos o braço-de-ferro que a Nobel da Paz tem travado com os generais levou-a a passar quase metade desse tempo em prisão domiciliária. O golpe militar de 1 de fevereiro colocou-a de novo em regime de detenção. Hoje e sempre, o mesmo “crime”: a luta pela democracia no seu país

O projeto de democracia em Myanmar (antiga Birmânia) sofreu um duro golpe, faz esta segunda-feira duas semanas, com a detenção de Aung San Suu Kyi, principal rosto da esperança de um país livre, após décadas de governação militar. Escreve o jornal “The Irrawaddy” (publicado por birmaneses exilados no norte da Tailândia) que neste dia 15 de fevereiro um tribunal distrital em Naypyitaw (capital de Myanmar) adiou uma audiência do seu caso para a próxima quarta-feira.

A chefe de Governo birmanesa deposta é acusada de ter violado a Lei de Importação e Exportação do país, ao importar walkie-talkies sem autorização. Se for condenada, poderá enfrentar uma pena de três anos de prisão — o seu quarto período de detenção nos últimos 32 anos.

“Gosto da Aung San Suu Kyi. Gosto da Liga Nacional pela Democracia [partido que lidera], na medida em que está a lutar pela democracia e pelos direitos do povo”, diz ao Expresso Faruque, um rohingya de 32 anos, a partir do campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

Os rohingya não estão entre os apoiantes mais entusiastas da Nobel da Paz, que respondeu com silêncio e inação à repressão desta minoria muçulmana em Myanmar. Mas Faruque tenta ver mais além… “A maioria dos rohingya está feliz [com a detenção de Suu Kyi], mas eu não. Acredito na democracia e acredito que um Governo democrata pode resolver os nossos problemas”, diz. “Mas discordo de algumas políticas de Aung San Suu Kyi. Ela nunca defendeu os rohingya, apenas os militares.”

Filha do general Aung San — líder nacionalista, herói da independência e fundador das forças armadas birmanesas (“Tatmadaw”) —, o seu respeito e reverência em relação à instituição militar vêm-lhe do berço. Suu Kyi partilha com os generais as crenças nacionalistas, mas diverge deles ao defender a subordinação dos militares à autoridade de um governo eleito. Essa visão para o país já a privou de liberdade em quatro ocasiões.

20.07.1989 — 10.07.1995

Independente desde 1948, a Birmânia (Myanmar, desde 1989) tem vivido maioritariamente sob o jugo dos militares. Aung San Suu Kyi vivia em Inglaterra — onde casara e tivera dois filhos — quando, em 1988, decidiu regressar ao seu país natal para cuidar da mãe doente. Encontra um país revoltado com uma gestão económica desastrosa e com a repressão política. Os estudantes estão à cabeça da contestação que atinge o pico a 8 de agosto, no que ficou conhecido como a “revolta do dia 8888”, reprimida de forma sangrenta.

Suu Kyi junta-se aos manifestantes e funda um partido: a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ser filha de um herói do país torna-a uma voz mobilizadora. A 20 de julho de 1989, é detida ao abrigo da Lei de Proteção do Estado e colocada em prisão domiciliária, no n.º 54 da Avenida da Universidade, em Rangum.

Quando os militares acedem a realizar eleições, para um comité constitucional, a 27 de maio de 1990 — as primeiras multipartidárias desde 1960 —, o partido de Suu Kyi não se ressente da detenção da líder e conquista 392 dos 485 lugares. Os militares não reconhecem os resultados, mas o mundo reconhece o valor da vitória: em 1991, Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz. O marido e os dois filhos representam-na na cerimónia, em Oslo.

Aung San Suu Kyi é libertada a 10 de julho de 1995, ao fim de seis anos de reclusão. O seu partido desafia uma proibição governamental e volta a nomeá-la secretária-geral. Continua o braço-de-ferro com os militares.

23.09.2000 — 06.05.2002

De regresso à vida política, Aung San Suu Kyi percebe que a sua liberdade é ilusória. Em 1996 tenta ir de comboio até Mandalay, mas não passa da estação. As autoridades desacoplam a carruagem em que devia seguir, alegando problemas técnicos.

Quatro anos depois, tinham as universidades acabado de abrir portas após três anos e meio encerradas pelo regime, para calar os protestos antigovernamentais, a líder da oposição tenta repetir a viagem até à segunda cidade do país. Planeia fazer a deslocação na companhia de outros militantes do seu partido, para confirmar denúncias de que o regime interferia nas atividades da LND. Mais uma vez, fica confinada numa sala de espera da estação ferroviária.

Seguem-se 19 meses de prisão domiciliária, que terminam a 6 de maio de 2002. Nesse dia, uma multidão de apoiantes acompanha-a num passeio triunfal por Rangum (antiga capital e maior cidade de Myanmar) até à sede do seu partido, onde Suu Kyi declara que a sua liberdade é incondicional. Está de volta ao combate político.

30.05.2003 — 13.11.2010

Sensivelmente um ano após sair em liberdade, Suu Kyi volta a ser presa, desta vez para cumprir o período mais longo de reclusão a que foi sujeita: sete anos e seis meses. Nesse 30 de maio de 2003, um grupo de simpatizantes da junta militar ataca a comitiva da líder da oposição, perto da cidade de Depayin. Oficialmente morrem quatro pessoas, mas a oposição reclama um verdadeiro massacre, com pelo menos 70 vítimas mortais.

Suu Kyi é levada para a prisão de Insein, os escritórios do seu partido são encerrados e as universidades fecham por tempo indeterminado. Meses depois, é transferida para sua casa, onde continua a cumprir pena.

Em setembro de 2007, Suu Kyi assoma brevemente ao portão de casa para saudar centenas de monges que ali se dirigiram para saudá-la. Os religiosos budistas levavam dias de protestos contra a junta militar, que ficaram conhecidos como a Revolução de Açafrão (a cor das suas túnicas).

Myanmar continua em polvorosa e, no ano seguinte, a 10 de maio, os generais promovem um referendo constitucional que mais parece destinado a cortar as asas à líder da oposição. Uma das cláusulas impede a candidatura à presidência a cidadãos com nacionalidade estrangeira ou com familiares diretos nessa condição. Era o caso de Suu Kyi, casada com um inglês (entretanto falecido sem que pudesse ter ido visitá-lo no fim da vida, pois não a deixariam voltar a entrar em Myanmar) e mãe de dois rapazes com cidadania britânica.

O cerco do regime aperta-se ainda mais quando um norte-americano de 53 anos invade a sua propriedade, a 30 de novembro de 2008, após atravessar a nado o lago contíguo à casa. Suu Kyi alerta as autoridades para aquela presença indesejada, mas estava criado mais um pretexto para a penalizar.

É levada para a prisão de Insein e sujeita a julgamento: é condenada a três anos de trabalhos forçados, pena comutada para 18 meses de detenção domiciliária, que termina a 13 de novembro de 2010.

01.02.2021 — (…)

As raízes do golpe militar de 1 de fevereiro passado, que voltaram a privar Aung San Suu Kyi de liberdade, datam de 8 de novembro de 2020, quando a LND venceu as eleições gerais de forma esmagadora.

Os deputados não chegam a tomar posse já que no dia previsto para a cerimónia (1 de fevereiro), os militares declaram as eleições ilegítimas e tomam o poder, fechando o parêntesis democrático aberto em 2015 pela inequívoca vitória eleitoral do partido de Suu Kyi e pela sua entronização como líder de facto de Myanmar.

Desde as detenções de Suu Kyi e do Presidente do país, Win Myint (também da LND) que várias cidades birmanesas estão tomadas pelos maiores protestos populares desde a Revolução de Açafrão. Nas mãos dos manifestantes há muitos retratos de Aung San Suu Kyi, heroína birmanesa e também, cada vez mais, um ícone mundial da resistência pacífica.

(ILUSTRAÇÃO “Seria difícil dissipar a ignorância a menos que houvesse liberdade para buscar a verdade sem medo”, Aung San Suu Kyi DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

À espera que o outro dê o primeiro passo

Diálogo entre iranianos e americanos está refém de pré-condições de ambas as partes

A chegada de Joe Biden à Casa Branca foi um bálsamo de esperança para a revitalização do acordo sobre o programa nuclear do Irão. Essa janela de oportunidade está, contudo, a fechar-se a cada dia que passa. Em junho haverá eleições presidenciais na república islâmica e, no tradicional braço de ferro entre candidatos da linha dura e moderados, começam a faltar argumentos aos últimos (como o Presidente Hassan Rohani) para continuarem a defender o diálogo com o Ocidente.

“Após a retirada dos Estados Unidos do acordo [decisão de Donald Trump], surgiu no Irão uma espécie de fobia à cooperação internacional. Muitos pensam: ‘Mesmo que façamos um novo acordo, que garantias temos de que os outros países vão respeitar os compromissos?’ Por causa desse ceticismo nas elites políticas e na sociedade iraniana, creio que vai haver mais votos em candidatos da linha dura”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho que se dedica aos estudos do Médio Oriente.

“Os moderados procuram preservar o interesse nacional em negociações internacionais. Os conservadores acham que o interesse nacional só fica garantido quando se é poderoso em termos militares, defendem que o Irão só pode confiar em si próprio e que a autossuficiência é o mais importante. Por isso acho que as pessoas vão escolher um conservador, que não vai negociar de forma alguma.”

Ciente de que a eleição de um Presidente da linha dura será a sentença de morte para o acordo nuclear, um dos seus principais negociadores, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, alertou esta semana: “O tempo está a esgotar-se para os americanos, tanto por causa do decreto do Parlamento [que obriga o Governo iraniano a endurecer a sua posição nuclear se as sanções não forem suavizadas até 21 de fevereiro] como devido à atmosfera eleitoral que se seguirá ao ano novo iraniano [celebrado a 21 de março].”

Só a Venezuela paga ao Irão

Depois de Biden se ter mostrado recetivo a um novo compromisso, Teerão e Washington hesitam em dar o primeiro passo. “O Irão diz que quem saiu da mesa da negociação primeiro tem de voltar à mesa da negociação primeiro”, diz o professor Eslami, invocando as palavras, há dias, do Líder Supremo do Irão, que detém o poder de decisão em matéria de política nuclear.

Os Estados Unidos “não têm direito a estabelecer condições. Quem tem direito a colocar condições à continuação do acordo é o Irão, porque o Irão cumpriu todos os seus compromissos desde o início”, disse o ayatollah Ali Khamenei. “Se querem que o Irão regresse aos seus compromissos, têm de levantar as sanções por completo.”

Face à perspetiva de recomeço, as partes querem maximizar ganhos. Para o Irão o interesse passa por vender petróleo e preservar a segurança, vendendo e comprando armas e equipamento militar. “O Irão perdeu oportunidades de vender petróleo, de ganhar dinheiro, por causa das sanções. Mesmo em tempos de pandemia, não conseguiu importar medicamentos”, diz Mohammad Eslami. “O Irão vendeu 7000 milhões de dólares [€5800 milhões] de petróleo à Coreia do Sul. O dinheiro está numa conta em Seul, mas o Irão não consegue mexer-lhe por causa das sanções. Há muitos países a reter dinheiro iraniano. Só a Venezuela está a pagar ao Irão.”

Esta semana, em entrevista à CBS, Biden defendeu que as sanções não serão levantadas enquanto o Irão não voltar aos níveis de enriquecimento de urânio a que está obrigado. O acordo nuclear prevê uma percentagem máxima de 3,67%, fasquia que o Irão começou a desrespeitar após a saída dos EUA — atualmente, enriquece a 20%.

“O interesse dos Estados Unidos, totalmente ligado ao de Israel, passa por controlar o Irão e parar o programa iraniano de mísseis balísticos de longo alcance”, diz o analista. “A força aérea do Irão é antiquada, o país não pode comprar carros de combate nem barcos de guerra, a única coisa com que se pode defender é o programa de mísseis balísticos. A doutrina militar iraniana depende muito deste programa, que significa dissuasão. O Irão não vai negociar a sua política de defesa.”

Governo Biden sensível ao tema

Na equipa governativa de Biden há vários nomes que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na elaboração do acordo nuclear. O próprio Presidente e o secretário de Estado Antony Blinken eram, à época, vices dos cargos que agora ocupam. Há, pois, sensibilidade para o tema, mas nem o problema se resolve por decreto (como Biden resolveu o regresso do país ao Acordo de Paris) nem 2015 é 2021. Se a desconfiança mútua é constante desde a Revolução Islâmica de 1979, acentuou-se perigosamente com Trump.

“A saída dos Estados Unidos do acordo foi muito importante. Mas o principal ponto de viragem foi o assassínio do general Qasem Soleimani, que era um herói nacional, defendia o país e derrotou o Daesh”, conclui Eslami. “O povo iraniano não quer confiar nos Estados Unidos.”

SETE ANOS A (DES)CONFIAR

2015
A 14 de julho, Irão, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha assinam um acordo sobre o programa nuclear. Em troca do fim das sanções, o Irão aceita limitar o enriquecimento de urânio e inspeções internacionais

2016
EUA e UE levantam sanções, a 16 de janeiro. No dia seguinte Obama aprova sanções visando o programa de mísseis balísticos do Irão (não incluído no acordo)

2017
Trump chega à Casa Branca a 20 de janeiro. A 17 de maio confirma a renúncia às sanções ao Irão

2018
A 8 de maio os EUA retiram-se do acordo, repõem sanções e anunciam uma estratégia de “pressão máxima” sobre o Irão. Este aumenta os níveis
de enriquecimento de urânio

2019
Os EUA rotulam os Guardas da Revolução (corpo de elite do Irão) de organização terrorista, a 8 de abril. O Irão declara que as forças americanas no Médio Oriente passam a ser alvos

2020
Um drone dos EUA mata o general iraniano Qasem Soleimani, a 3 de janeiro, no Iraque. Cinco dias depois, o Irão bombardeia duas bases dos EUA

2021
Biden chega à Casa Branca com vontade de novo pacto com o Irão

(FOTO Mural anti-Estados Unidos no muro da antiga embaixada norte-americana em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de fevereiro de 2021