‘Impeachment’ traz Trump de volta ao palco da política numa altura em que a América precisa de esquecê-lo

Donald Trump começa a ser julgado esta terça-feira, no Senado, pelo papel que teve na invasão ao Capitólio. Ao Expresso, o americanólo José Gomes André defende que o processo, nesta altura, é um erro. “Num momento em que a América precisa de superar o trauma Trump e virar a página, vai-se falar dele”, diz. Será o quinto impeachment da História dos EUA. Nenhum dos anteriores resultou na condenação do Presidente, e este não deverá ser diferente

A caminho de cumprir 245 anos de vida, os Estados Unidos já sujeitaram quatro presidentes a processos de impugnação (impeachment). Metade dos casos aconteceu nos primeiros 200 anos; os outros dois nos últimos 25. Esta terça-feira, começa no senado o julgamento de Donald Trump, o único Presidente norte-americano a ser impugnado duas vezes.

“Em pouco mais de um ano, e com um só Presidente, houve tantos impeachments como nos primeiros 200 anos da História americana. Isto significa que podemos estar a entrar numa fase em que o impeachment deixa de ser considerado um recurso de última instância para se vulgarizar e banalizar como arma política”, comenta ao Expresso o americanófilo José Gomes André, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

“O que começa a acontecer é que de cada vez que a maioria que controla o Congresso desgosta ou não concorda com quem está na Casa Branca, inicia um impeachment. Um dia destes o impeachment passa a equivaler a um protesto, um desagrado. É assim, também, que se desvalorizam as instituições.”

Emoções à solta

Vinte dias apenas após deixar a Casa Branca, Trump volta a ter sobre si o foco da política norte-americana para se defender das acusações de incitamento à insurreição que levou à invasão do Capitólio. “A meu ver, é uma opção política errada. Vamos continuar a falar de Trump, vamos ter mais Trump no palco político, vamos ter outra vez as emoções à solta e a sociedade norte-americana confrontada com uma decisão maniqueísta — ‘Condenação ou absolvição?’ —, quando o que os Estados Unidos precisam rapidamente é de superar este trauma”, defende o académico.

O facto de o ex-Presidente enfrentar um processo de destituição numa altura em que já não pode ser destituído (deixou o cargo a 20 de janeiro, na sequência de derrota eleitoral) levanta dúvidas em relação à oportunidade desta medida. “O argumento a favor da inevitabilidade do impeachment a Trump [atendendo à gravidade dos factos naquele que foi um evento sem precedentes na História americana] está muito relacionado com a dimensão moral do que se passou. Trump não só foi conivente como esteve ligado, mesmo que tacitamente, a um certo incitamento, sublinhando a necessidade de um protesto veemente”, recorda José Gomes André.

O investigador de Filosofia Política acrescenta, porém: “Aquilo que me parece ser má ideia tem sobretudo que ver com o facto de o impeachment surgir numa altura em que Trump já não é Presidente”.

“Isto significa que o que está por trás deste impeachment é muito mais um fenómeno de vingança e punição do próprio Trump e uma tentativa de precaver uma recandidatura presidencial. É nesta segunda dimensão que este impeachment me parece bastante criticável e questionável, porque a dimensão moral é indiscutível.”

As reservas de José Gomes André — autor de uma tese de doutoramento sobre o pensamento de James Madison, o 4.º Presidente dos EUA (1809-1817), considerado “o Pai da Constituição” — decorrem do contexto histórico em que tudo acontece.

“Num momento em que o próprio Presidente Joe Biden fala em reconciliação, na necessidade de curar as feridas, de todo um processo de divisão crescente, de uma América quase traumatizada, de manhã apela-se à reconciliação e à tarde discute-se o impeachment”, critica o investigador.

“Isto vai voltar a colocar Trump no núcleo da discussão política. Num momento em que a América precisa de superar o trauma Trump e virar a página, vai-se falar dele. Vai-se alimentar ainda mais, inclusive, a convicção dos seus apoiantes de que ele é perseguido pelos adversários, de que é uma vítima, um mártir. Parece-me um erro enorme da parte dos democratas, que só vai dividir ainda mais o país. Ainda por cima, tudo isto é reforçado pelo facto de este impeachment ter muito poucas hipóteses de vingar.”

Para Trump ser condenado, o impeachment tem de ser aprovado nas duas câmaras do Congresso: na Câmara dos Representantes por maioria simples e no Senado por maioria de dois terços dos seus membros.

A votação na Câmara dos Representantes aconteceu a 13 de janeiro, ainda antes do final do mandato do 45.º Presidente. A destituição foi então aprovada por 232 votos, contra 197. Dez republicanos tiraram o tapete a Trump e votaram ao lado dos democratas.

No Senado, a aprovação requer a anuência de pelo menos 67 senadores. Isso significa que, além dos 50 democratas (incluindo neste total dois independentes alinhados com o partido de Biden), 17 republicanos terão de votar contra Trump. Isso não está garantido nesta altura.

“Há várias maneiras de sancionar os atos de Trump. Umas já foram usadas, como uma condenação política pública. Outra é um caminho judicial tradicional” nos tribunais, que tem uma carga de neutralidade que o Congresso não tem.

“Outra é o impeachment. Tem de haver uma escala”, explica o americanófilo. “O impeachment é uma figura de última instância, fundamentalmente de condenação política. Não tem outra dimensão além dessa.”

Impeachment… a Joe Biden

A febre dos impeachments poderá, no entanto, não ficar por aqui. A 21 de janeiro, no dia seguinte a Joe Biden tomar posse como 46.º Presidente, Marjorie Taylor Greene, deputada na Câmara dos Representantes, eleita pelo estado da Georgia, e simpatizante do movimento QAnon (que espalha teorias infundadas sobre uma rede de pedófilos canibais patrocinada pelo Partido Democrata), avançou com um pedido de destituição do novo Presidente.

A congressista fundamentou o pedido dizendo que Biden, enquanto vice-Presidente, “permitiu suborno e outros crimes graves e contravenções, ao autorizar o seu filho [Hunter Biden] a influenciar a política interna de um país estrangeiro [Ucrânia] e aceitar vários benefícios — incluindo compensação financeira — de estrangeiros em troca de certos favores”.

José Gomes André não acredita que o atual Presidente saia minimamente beliscado deste processo. “É símbolo apenas da tal radicalização do discurso e da invocação do impeachment por tudo e por nada, mas não tem impacto possível, nem pouco mais ou menos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

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