Diálogo entre iranianos e americanos está refém de pré-condições de ambas as partes
A chegada de Joe Biden à Casa Branca foi um bálsamo de esperança para a revitalização do acordo sobre o programa nuclear do Irão. Essa janela de oportunidade está, contudo, a fechar-se a cada dia que passa. Em junho haverá eleições presidenciais na república islâmica e, no tradicional braço de ferro entre candidatos da linha dura e moderados, começam a faltar argumentos aos últimos (como o Presidente Hassan Rohani) para continuarem a defender o diálogo com o Ocidente.
“Após a retirada dos Estados Unidos do acordo [decisão de Donald Trump], surgiu no Irão uma espécie de fobia à cooperação internacional. Muitos pensam: ‘Mesmo que façamos um novo acordo, que garantias temos de que os outros países vão respeitar os compromissos?’ Por causa desse ceticismo nas elites políticas e na sociedade iraniana, creio que vai haver mais votos em candidatos da linha dura”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho que se dedica aos estudos do Médio Oriente.
“Os moderados procuram preservar o interesse nacional em negociações internacionais. Os conservadores acham que o interesse nacional só fica garantido quando se é poderoso em termos militares, defendem que o Irão só pode confiar em si próprio e que a autossuficiência é o mais importante. Por isso acho que as pessoas vão escolher um conservador, que não vai negociar de forma alguma.”
Ciente de que a eleição de um Presidente da linha dura será a sentença de morte para o acordo nuclear, um dos seus principais negociadores, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, alertou esta semana: “O tempo está a esgotar-se para os americanos, tanto por causa do decreto do Parlamento [que obriga o Governo iraniano a endurecer a sua posição nuclear se as sanções não forem suavizadas até 21 de fevereiro] como devido à atmosfera eleitoral que se seguirá ao ano novo iraniano [celebrado a 21 de março].”
Só a Venezuela paga ao Irão
Depois de Biden se ter mostrado recetivo a um novo compromisso, Teerão e Washington hesitam em dar o primeiro passo. “O Irão diz que quem saiu da mesa da negociação primeiro tem de voltar à mesa da negociação primeiro”, diz o professor Eslami, invocando as palavras, há dias, do Líder Supremo do Irão, que detém o poder de decisão em matéria de política nuclear.
Os Estados Unidos “não têm direito a estabelecer condições. Quem tem direito a colocar condições à continuação do acordo é o Irão, porque o Irão cumpriu todos os seus compromissos desde o início”, disse o ayatollah Ali Khamenei. “Se querem que o Irão regresse aos seus compromissos, têm de levantar as sanções por completo.”
Face à perspetiva de recomeço, as partes querem maximizar ganhos. Para o Irão o interesse passa por vender petróleo e preservar a segurança, vendendo e comprando armas e equipamento militar. “O Irão perdeu oportunidades de vender petróleo, de ganhar dinheiro, por causa das sanções. Mesmo em tempos de pandemia, não conseguiu importar medicamentos”, diz Mohammad Eslami. “O Irão vendeu 7000 milhões de dólares [€5800 milhões] de petróleo à Coreia do Sul. O dinheiro está numa conta em Seul, mas o Irão não consegue mexer-lhe por causa das sanções. Há muitos países a reter dinheiro iraniano. Só a Venezuela está a pagar ao Irão.”
Esta semana, em entrevista à CBS, Biden defendeu que as sanções não serão levantadas enquanto o Irão não voltar aos níveis de enriquecimento de urânio a que está obrigado. O acordo nuclear prevê uma percentagem máxima de 3,67%, fasquia que o Irão começou a desrespeitar após a saída dos EUA — atualmente, enriquece a 20%.
“O interesse dos Estados Unidos, totalmente ligado ao de Israel, passa por controlar o Irão e parar o programa iraniano de mísseis balísticos de longo alcance”, diz o analista. “A força aérea do Irão é antiquada, o país não pode comprar carros de combate nem barcos de guerra, a única coisa com que se pode defender é o programa de mísseis balísticos. A doutrina militar iraniana depende muito deste programa, que significa dissuasão. O Irão não vai negociar a sua política de defesa.”
Governo Biden sensível ao tema
Na equipa governativa de Biden há vários nomes que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na elaboração do acordo nuclear. O próprio Presidente e o secretário de Estado Antony Blinken eram, à época, vices dos cargos que agora ocupam. Há, pois, sensibilidade para o tema, mas nem o problema se resolve por decreto (como Biden resolveu o regresso do país ao Acordo de Paris) nem 2015 é 2021. Se a desconfiança mútua é constante desde a Revolução Islâmica de 1979, acentuou-se perigosamente com Trump.
“A saída dos Estados Unidos do acordo foi muito importante. Mas o principal ponto de viragem foi o assassínio do general Qasem Soleimani, que era um herói nacional, defendia o país e derrotou o Daesh”, conclui Eslami. “O povo iraniano não quer confiar nos Estados Unidos.”
SETE ANOS A (DES)CONFIAR
2015
A 14 de julho, Irão, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha assinam um acordo sobre o programa nuclear. Em troca do fim das sanções, o Irão aceita limitar o enriquecimento de urânio e inspeções internacionais
2016
EUA e UE levantam sanções, a 16 de janeiro. No dia seguinte Obama aprova sanções visando o programa de mísseis balísticos do Irão (não incluído no acordo)
2017
Trump chega à Casa Branca a 20 de janeiro. A 17 de maio confirma a renúncia às sanções ao Irão
2018
A 8 de maio os EUA retiram-se do acordo, repõem sanções e anunciam uma estratégia de “pressão máxima” sobre o Irão. Este aumenta os níveis
de enriquecimento de urânio
2019
Os EUA rotulam os Guardas da Revolução (corpo de elite do Irão) de organização terrorista, a 8 de abril. O Irão declara que as forças americanas no Médio Oriente passam a ser alvos
2020
Um drone dos EUA mata o general iraniano Qasem Soleimani, a 3 de janeiro, no Iraque. Cinco dias depois, o Irão bombardeia duas bases dos EUA
2021
Biden chega à Casa Branca com vontade de novo pacto com o Irão
(FOTO Mural anti-Estados Unidos no muro da antiga embaixada norte-americana em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de fevereiro de 2021
