Aung San Suu Kyi. Presa quatro vezes por lutar pela democracia

Filha de um herói da independência da Birmânia (atual Myanmar), a vida de Aung San Suu Kyi confunde-se com a história do próprio país. Nos últimos 32 anos o braço-de-ferro que a Nobel da Paz tem travado com os generais levou-a a passar quase metade desse tempo em prisão domiciliária. O golpe militar de 1 de fevereiro colocou-a de novo em regime de detenção. Hoje e sempre, o mesmo “crime”: a luta pela democracia no seu país

O projeto de democracia em Myanmar (antiga Birmânia) sofreu um duro golpe, faz esta segunda-feira duas semanas, com a detenção de Aung San Suu Kyi, principal rosto da esperança de um país livre, após décadas de governação militar. Escreve o jornal “The Irrawaddy” (publicado por birmaneses exilados no norte da Tailândia) que neste dia 15 de fevereiro um tribunal distrital em Naypyitaw (capital de Myanmar) adiou uma audiência do seu caso para a próxima quarta-feira.

A chefe de Governo birmanesa deposta é acusada de ter violado a Lei de Importação e Exportação do país, ao importar walkie-talkies sem autorização. Se for condenada, poderá enfrentar uma pena de três anos de prisão — o seu quarto período de detenção nos últimos 32 anos.

“Gosto da Aung San Suu Kyi. Gosto da Liga Nacional pela Democracia [partido que lidera], na medida em que está a lutar pela democracia e pelos direitos do povo”, diz ao Expresso Faruque, um rohingya de 32 anos, a partir do campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

Os rohingya não estão entre os apoiantes mais entusiastas da Nobel da Paz, que respondeu com silêncio e inação à repressão desta minoria muçulmana em Myanmar. Mas Faruque tenta ver mais além… “A maioria dos rohingya está feliz [com a detenção de Suu Kyi], mas eu não. Acredito na democracia e acredito que um Governo democrata pode resolver os nossos problemas”, diz. “Mas discordo de algumas políticas de Aung San Suu Kyi. Ela nunca defendeu os rohingya, apenas os militares.”

Filha do general Aung San — líder nacionalista, herói da independência e fundador das forças armadas birmanesas (“Tatmadaw”) —, o seu respeito e reverência em relação à instituição militar vêm-lhe do berço. Suu Kyi partilha com os generais as crenças nacionalistas, mas diverge deles ao defender a subordinação dos militares à autoridade de um governo eleito. Essa visão para o país já a privou de liberdade em quatro ocasiões.

20.07.1989 — 10.07.1995

Independente desde 1948, a Birmânia (Myanmar, desde 1989) tem vivido maioritariamente sob o jugo dos militares. Aung San Suu Kyi vivia em Inglaterra — onde casara e tivera dois filhos — quando, em 1988, decidiu regressar ao seu país natal para cuidar da mãe doente. Encontra um país revoltado com uma gestão económica desastrosa e com a repressão política. Os estudantes estão à cabeça da contestação que atinge o pico a 8 de agosto, no que ficou conhecido como a “revolta do dia 8888”, reprimida de forma sangrenta.

Suu Kyi junta-se aos manifestantes e funda um partido: a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ser filha de um herói do país torna-a uma voz mobilizadora. A 20 de julho de 1989, é detida ao abrigo da Lei de Proteção do Estado e colocada em prisão domiciliária, no n.º 54 da Avenida da Universidade, em Rangum.

Quando os militares acedem a realizar eleições, para um comité constitucional, a 27 de maio de 1990 — as primeiras multipartidárias desde 1960 —, o partido de Suu Kyi não se ressente da detenção da líder e conquista 392 dos 485 lugares. Os militares não reconhecem os resultados, mas o mundo reconhece o valor da vitória: em 1991, Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz. O marido e os dois filhos representam-na na cerimónia, em Oslo.

Aung San Suu Kyi é libertada a 10 de julho de 1995, ao fim de seis anos de reclusão. O seu partido desafia uma proibição governamental e volta a nomeá-la secretária-geral. Continua o braço-de-ferro com os militares.

23.09.2000 — 06.05.2002

De regresso à vida política, Aung San Suu Kyi percebe que a sua liberdade é ilusória. Em 1996 tenta ir de comboio até Mandalay, mas não passa da estação. As autoridades desacoplam a carruagem em que devia seguir, alegando problemas técnicos.

Quatro anos depois, tinham as universidades acabado de abrir portas após três anos e meio encerradas pelo regime, para calar os protestos antigovernamentais, a líder da oposição tenta repetir a viagem até à segunda cidade do país. Planeia fazer a deslocação na companhia de outros militantes do seu partido, para confirmar denúncias de que o regime interferia nas atividades da LND. Mais uma vez, fica confinada numa sala de espera da estação ferroviária.

Seguem-se 19 meses de prisão domiciliária, que terminam a 6 de maio de 2002. Nesse dia, uma multidão de apoiantes acompanha-a num passeio triunfal por Rangum (antiga capital e maior cidade de Myanmar) até à sede do seu partido, onde Suu Kyi declara que a sua liberdade é incondicional. Está de volta ao combate político.

30.05.2003 — 13.11.2010

Sensivelmente um ano após sair em liberdade, Suu Kyi volta a ser presa, desta vez para cumprir o período mais longo de reclusão a que foi sujeita: sete anos e seis meses. Nesse 30 de maio de 2003, um grupo de simpatizantes da junta militar ataca a comitiva da líder da oposição, perto da cidade de Depayin. Oficialmente morrem quatro pessoas, mas a oposição reclama um verdadeiro massacre, com pelo menos 70 vítimas mortais.

Suu Kyi é levada para a prisão de Insein, os escritórios do seu partido são encerrados e as universidades fecham por tempo indeterminado. Meses depois, é transferida para sua casa, onde continua a cumprir pena.

Em setembro de 2007, Suu Kyi assoma brevemente ao portão de casa para saudar centenas de monges que ali se dirigiram para saudá-la. Os religiosos budistas levavam dias de protestos contra a junta militar, que ficaram conhecidos como a Revolução de Açafrão (a cor das suas túnicas).

Myanmar continua em polvorosa e, no ano seguinte, a 10 de maio, os generais promovem um referendo constitucional que mais parece destinado a cortar as asas à líder da oposição. Uma das cláusulas impede a candidatura à presidência a cidadãos com nacionalidade estrangeira ou com familiares diretos nessa condição. Era o caso de Suu Kyi, casada com um inglês (entretanto falecido sem que pudesse ter ido visitá-lo no fim da vida, pois não a deixariam voltar a entrar em Myanmar) e mãe de dois rapazes com cidadania britânica.

O cerco do regime aperta-se ainda mais quando um norte-americano de 53 anos invade a sua propriedade, a 30 de novembro de 2008, após atravessar a nado o lago contíguo à casa. Suu Kyi alerta as autoridades para aquela presença indesejada, mas estava criado mais um pretexto para a penalizar.

É levada para a prisão de Insein e sujeita a julgamento: é condenada a três anos de trabalhos forçados, pena comutada para 18 meses de detenção domiciliária, que termina a 13 de novembro de 2010.

01.02.2021 — (…)

As raízes do golpe militar de 1 de fevereiro passado, que voltaram a privar Aung San Suu Kyi de liberdade, datam de 8 de novembro de 2020, quando a LND venceu as eleições gerais de forma esmagadora.

Os deputados não chegam a tomar posse já que no dia previsto para a cerimónia (1 de fevereiro), os militares declaram as eleições ilegítimas e tomam o poder, fechando o parêntesis democrático aberto em 2015 pela inequívoca vitória eleitoral do partido de Suu Kyi e pela sua entronização como líder de facto de Myanmar.

Desde as detenções de Suu Kyi e do Presidente do país, Win Myint (também da LND) que várias cidades birmanesas estão tomadas pelos maiores protestos populares desde a Revolução de Açafrão. Nas mãos dos manifestantes há muitos retratos de Aung San Suu Kyi, heroína birmanesa e também, cada vez mais, um ícone mundial da resistência pacífica.

(ILUSTRAÇÃO “Seria difícil dissipar a ignorância a menos que houvesse liberdade para buscar a verdade sem medo”, Aung San Suu Kyi DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

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