O Papa está no Iraque depois de 15 meses sem viajar. Qual a pressa de Francisco?

O líder da Igreja Católica chegou esta sexta-feira ao Iraque para uma visita de quatro dias, a primeira que realiza nos últimos 15 meses. Francisco visitará comunidades cristãs que sobreviveram ao Daesh e terá um encontro com um dos líderes mais importantes do Islão xiita. A viagem realiza-se em contexto de pandemia, num país onde subsiste a insegurança. “Este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos”, diz ao Expresso o estudioso das religiões Paulo Mendes Pinto. “Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir”

O Papa retomou esta sexta-feira as suas viagens apostólicas ao estrangeiro. Francisco partiu para uma visita de quatro dias ao Iraque — a primeira em 15 meses.

Nunca um líder da Igreja Católica se deslocara a este importante país do Médio Oriente, de maioria muçulmana xiita. A insistência em realizar a visita, em contexto pandémico e de insegurança, confirma um padrão observado em deslocações anteriores.

“O Papa Francisco vai a sítios de grande prática católica — como Fátima, por exemplo. Mas vai também a sítios inesperados, onde não só a prática católica é reduzida, como até posta um pouco em causa pela prática religiosa dominante”, diz ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona em Lisboa.

Visitar locais incómodos

“Há uma dominante nas visitas do Papa, que é ir a sítios incómodos. Incómodos por serem associados a violência ou à negação da liberdade religiosa, sítios que não são tão importantes ao nível da quantidade de praticantes católicos.”

São exemplos as visitas à Albânia (2014), República Centro-Africana (2015), Myanmar (2017) ou Emirados Árabes Unidos (2019). É também o caso desta ida ao Iraque, país virado do avesso desde a invasão pelos Estados Unidos da América, em 2003, de que decorreria o surgimento do infame e autoproclamado “Estado Islâmico” (Daesh).

No início da guerra, estimava-se que a comunidade cristã no país andasse pelos 1,5 milhões de pessoas; hoje não serão mais de 250 mil.

“O Iraque é um país importantíssimo, não pela percentagem de católicos que lá existe, mas em termos simbólicos”, continua Paulo Mendes Pinto. “Até ao fim do regime de Saddam Hussein [2003], existia uma comunidade católica organizada, socialmente respeitada e integrada. Com frequência, víamos católicos na mais alta elite do país. Um dos ministros mais conhecidos de Saddam, Tariq Aziz [que ocupou entre 1979 e 2003 pastas como a dos Negócios Estrangeiros e a de vice-primeiro-ministro], era católico.”

A comunidade cristã do Iraque é das mais antigas do mundo. Integra crentes das igrejas Católica Caldeia (largamente maioritária), Assíria Oriental, Católica Siríaca, Ortodoxa Siríaca, Apostólica Arménia, Evangélica, Ortodoxa Grega, Católica Arménia e Católica Latina.

“Este país representa algo que se manteve durante muito tempo. Apesar de o Médio Oriente ser dominantemente islâmico, o Iraque manteve a existência de comunidades judaicas e cristãs. As últimas, em número mais significativo, com facilidade atingiam os 10 a 20% das populações. Essa realidade desapareceu rapidamente depois dos atentados do 11 de Setembro, à medida que a radicalização fez com que as comunidades cristãs na região passassem a ser perseguidas.”

A recente perseguição aos cristãos iraquianos às mãos do Daesh é uma preocupação do Papa, implícita no roteiro que vai percorrer, e que decorrerá em seis etapas. Esta sexta-feira, Francisco ficará pela capital, Bagdade, onde terá encontros políticos e religiosos. No sábado rumará a sul, primeiro até Najaf, cidade santa para os xiitas — onde se encontrará com o Grande Ayatollah Ali al-Sistani, um dos líderes muçulmanos mais influentes do mundo — e depois até à cidade de Ur.

Onde ainda se fala a língua de Cristo

No domingo, o Papa seguirá para norte, até ao Curdistão, com paragens em Erbil, Mosul e Qaraqosh, a maior cidade iraquiana de maioria cristã. As duas últimas ficam já na província de Nínive, onde há comunidades que ainda falam aramaico, a língua corrente na época de Jesus Cristo. Nos anos do Daesh, a presença cristã correu riscos de extinção, devido a conversões forçadas, execuções em massa, fuga à violência e destruição de património.

Quando, em novembro de 2017, Francisco foi presenteado, por um fabricante automóvel, com um Lamborghini personalizado, o argentino autografou-o e ofereceu-o para leilão. A verba angariada — 200 mil euros — foi alocada para apoiar as comunidades cristãs do planalto de Nínive, designadamente o regresso de quem fora obrigado a fugir dos jiadistas.

No périplo do Papa, duas etapas serão especialmente simbólicas para os cristãos: Ur e Mosul. Ur, no sul do país, é a cidade onde nasceu Abraão, patriarca que une as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islão. “Há um peso muito grande dessa cidade no facto de criar pontes com as outras confissões religiosas — e o Papa Francisco tem-no feito”, garante Mendes Pinto.

Mosul, no norte, é a capital da província de Nínive. “Tem o peso de ter sido uma das principais cidades do ‘Estado Islâmico’, onde, supostamente, terá sido proferida a frase que indicava que um dos objetivos era conquistar Roma e decapitar o Papa”, recorda o professor.

Sentimento de abandono

Mosul (Iraque) e Raqqa (Síria) foram as capitais do ‘califado’ declarado pelo Daesh. Ali viveu-se sob o signo do terror durante mais de três anos.

“Há uma certa desilusão por parte de muitos cristãos porque ao longo dos anos foram sendo cometidas atrocidades contra essas comunidades, foram muitas vezes dizimadas, violentadas, no melhor dos casos obrigadas a migrações forçadas, e o ocidente, incluindo a própria Igreja cristã, nunca fez nada de significativo por elas”, recorda Paulo Mendes Pinto.

“A mensagem que o Papa leva é não apenas a de um certo saudosismo, porque ainda há pouco tempo existiam lá comunidades cristãs significativas, mas também de apoio a essas comunidades. Esta visita tem uma dimensão diplomática importantíssima.”

A 33ª deslocação do Papa Francisco ao estrangeiro — o Iraque é 51º país que visita — decorre numa altura em que a violência no país dá sinais de recrudescer. Em janeiro, um duplo ataque suicida num mercado de Bagdade provocou 32 mortos. Em fevereiro, um ataque com 14 rockets contra alvos militares em Erbil fez dois mortos. Já em março, outro ataque com foguetes atingiu uma base com presença norte-americana na província de Anbar.

Recolher obrigatório e confinamento

As condições da viagem agravam-se pelo contexto de pandemia. Com 84 anos, o Papa partiu para o Iraque vacinado, como toda a delegação que o acompanha. Mas chegou ao país num momento em que o número de casos de covid-19 disparou — um deles, na semana passada, foi o núncio apostólico no Iraque, arcebispo Mitja Leskovar  e as autoridades impuseram o recolher obrigatório noturno e confinamento total ao fim de semana.

A insistência em realizar a viagem nesta adversidade revela pressa. “É uma pressa que resulta muito do esboroar socioeconómico de toda a região. Aqueles países têm populações maioritariamente abaixo dos 35 anos, e muitas dessas pessoas estão desempregadas. Estas questões socioeconómicas fazem-se sentir com muita força e em especial junto das minorias. Para o Papa há uma urgência em acudir”, diz Paulo Mendes Pinto.

“Há também uma urgência para ele em fazer uma retoma. Com a pandemia, as reformas que estava a realizar na Igreja Católica ficaram suspensas. Haverá, no mínimo, uma certa impaciência pelo facto de o seu projeto ter perdido muito tempo, e também devido à sua própria saúde.”

Esta é a 11ª visita do Papa Francisco a países de maioria muçulmana, depois de Jordânia, Palestina, Albânia e Turquia (2014), Bósnia e Herzegovina (2015), Azerbaijão (2016), Egito e Bangladesh (2017), Emirados Árabes Unidos e Marrocos (2019).

“Anteriormente, os Papas iam aos grandes locais católicos. Este também vai a esses países, mas vai igualmente aos pequenos”, conclui Mendes Pinto. “No fundo, este Papa afirma-se como o pastor de todos os católicos. Se há católicos no Iraque, ele tem de lá ir. Esta visita revela uma dimensão missionária, de visitar locais novos e sítios onde há comunidades cristãs minoritárias, e também um pensamento de menosprezar o risco. Frequentemente, o Papa quebra o protocolo e deixa os seguranças à beira de um ataque de nervos, mas não é só isso: ele vai a sítios onde as coisas não são fáceis ao nível da segurança. Esta visita ao Iraque é o exemplo perfeito disso.”

(Papa Francisco, discursando no Palácio Presidencial em Bagdade, a 5 de março de 2021 WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

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