O norte-americano Joe Biden quer reverter a estratégia do seu antecessor para o Irão. O iraniano Ali Khamenei só aceita negociar se as sanções forem levantadas. E o israelita Benjamin Netanyahu fará de tudo para que não haja acordo

A velha máxima segundo a qual não se deve regressar ao local onde se foi feliz parece não se aplicar ao processo diplomático em torno do programa nuclear do Irão. Foi em Viena que, a 14 de julho de 2015, sete países assinaram um acordo que limitou as atividades nucleares iranianas, colocando-as sob supervisão internacional. É também na capital da Áustria que, desde 6 de abril, as mesmas partes tentam reativá-lo e minimizar os danos causados pela saída unilateral dos Estados Unidos, decidida por Donald Trump, em 2018.
EUA e Irão não têm relações diplomáticas e nutrem desconfiança mútua que os condiciona em contexto de aproximação. Houve, pois, que recorrer à criatividade para tornar a diplomacia possível. Em Viena, as duas delegações estão hospedadas em diferentes hotéis (o Grand Hotel Wien e o Imperial), que distam menos de 100 metros, cabendo a britânicos, franceses, alemães, russos e chineses a tarefa de andarem de um lado para o outro para se reunirem em separado.
Este diálogo sofreu um abalo esta semana, depois de a central de Natanz — principal infraestrutura nuclear iraniana — ter sofrido um apagão, na sequência de uma grande explosão que responsáveis iranianos não hesitaram em qualificar de “terrorismo nuclear”.
Ações de sabotagem
“Apesar de os EUA declararem que não estão envolvidos na operação que levou à explosão em Natanz, a desconfiança que já existia entre os responsáveis iranianos saiu reforçada”, comenta ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho.
Teerão conteve-se na hora de apontar o dedo acusador, mas este ataque vem engrossar todo um historial de ações de sabotagem atribuídas a Israel, que vê no programa iraniano uma ameaça à sua existência. São exemplos o assassínio de cientistas nucleares (como Mohsen Fakhrizadeh, principal cientista do programa, em novembro passado), ataques cibernéticos (como o Stuxnet, em 2010, atribuído à Mossad e à CIA, que se estima tenha causado um atraso de anos ao programa); e ataques a navios iranianos.
Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio verbal. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de uma batalha naval
“Se é Israel que está por trás do ataque [em Natanz], fê-lo com dois objetivos”, enumera ao Expresso o israelita Ely Karmon, investigador do Centro Interdisciplinar de Herzliya (Israel). “Primeiro, com um objetivo operacional: travar o progresso do programa nuclear iraniano, que é real, uma vez que já começou a enriquecer urânio a 20% e iniciou o funcionamento com centrifugadoras avançadas (IR-9), que têm capacidade de separar isótopos de urânio 50 vezes mais depressa do que as centrifugadoras de primeira geração (IR-1). Depois, há um objetivo político: convencer os responsáveis ocidentais que estão a negociar em Viena a não ceder à pressão iraniana. O Irão quer regressar ao acordo original sem quaisquer restrições ao nível da produção de mísseis de longo alcance e da sua atuação agressiva na Síria, Líbano, Iraque e Iémen.”
O ataque a Natanz, no domingo, coincidiu com a visita a Israel do secretário da Defesa dos EUA, general Lloyd Austin. Ao lado do homólogo israelita Benny Gantz, o chefe do Pentágono reafirmou o compromisso “duradouro e blindado” dos EUA para com Israel. Mas, numa altura em que a Administração Biden se predispõe a dialogar com o arqui-inimigo de Israel, o aliado americano não se mostra sensível ao chavão israelita de que “é melhor nenhum acordo do que um mau acordo”.
Batalha naval
Há muito que a tensão entre iranianos e israelitas transbordou do domínio das palavras. Nas últimas semanas, tem sido visível uma escalada ao estilo de batalha naval. A 6 de abril, o exato dia em que começava o diálogo em Viena, o “Saviz”, navio de carga iraniano que se suspeita seja usado para apoiar os huthis no Iémen, foi atingido por uma mina no Mar Vermelho. Já esta semana, terça-feira, o navio comercial “Hyperion Ray”, de uma empresa israelita, foi atingido por mísseis quando navegava no Golfo Pérsico.
A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão após o triplo choque causado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19
Nessa mesma terça-feira, o Irão subiu a fasquia da pressão e informou a Agência Internacional de Energia Atómica de que vai começar a enriquecer urânio a 60% — quando chegar aos 90% poderá utilizar o minério em armamento.
“Isto vai melhorar significativamente a qualidade e a quantidade dos produtos radiofarmacêuticos”, regozijou-se Kazem Gharibabadi, representante do Irão junto da organização, enfatizando o argumento de Teerão de que só quer energia nuclear para fins pacíficos, nomeadamente para usar na área da saúde.
Trump falhou
Ao abrigo do acordo de 2015, o Irão está obrigado a respeitar uma percentagem máxima de enriquecimento de urânio de… 3,67%. Foi depois de os EUA se retirarem do acordo e adotarem uma estratégia de “pressão máxima”, reintroduzindo sanções, que o Irão começou a violar os compromissos.
“Muitos responsáveis do aparelho de Defesa israelita e muitos peritos, que em 2015 acharam que o acordo era mau e que a Administração Obama podia ter alcançado um melhor, opuseram-se às medidas de Trump”, recorda Karmon. “Hoje, consideram que a estratégia de Trump falhou e que os iranianos avançam ainda mais rapidamente na direção da bomba.”
No Irão, não se olha de forma unânime para as negociações com o Ocidente. “Há um grupo que as considera vitais para a sobrevivência do regime”, diz Eslami. “Outro ponto de vista, dominante, considera-as prejudiciais, ‘veneno que mata’ o regime, como qualificou o ayatollah Ali Khamenei”, Líder Supremo da República Islâmica.
Triplo choque
Para quem governa o país, as negociações podem ser tábua de salvação para grandes problemas. Em janeiro, um relatório do Banco Mundial identificou um “triplo choque” que destrói o país. “A economia iraniana entrou num terceiro ano consecutivo de recessão a seguir ao triplo choque provocado pelas sanções, pelo colapso do mercado petrolífero e pela covid-19”, lê-se. Não por acaso, em Viena, a principal reivindicação do Irão para voltar a cumprir o acordo é o levantamento das sanções.
“Ainda que algumas negociações produtivas, que melhorem o câmbio da moeda, diminuam a inflação e ajudem ao controlo da pandemia sejam cruciais para o Governo, e para os partidos reformistas que tentam atrair votos nas eleições [presidenciais de 18 de junho], a visão da liderança é a de não fazer compromissos”, diz Mohammad Eslami. “O Líder Supremo está sempre a promover a confiança nas capacidades internas, popularizada como ‘autossuficiência’.”
As eleições que se aproximam estão na sombra das conversações de Viena. O atual Presidente, Mohammed Rouhani, é reformista (defensor do diálogo com o Ocidente), mas a linha dura do regime tem argumentos para ambicionar resgatar o cargo — ‘o acordo foi uma traição’, ‘nada ganhamos com ele’. “A sugestão do Líder Supremo à nação para que eleja um Presidente ‘jovem e revolucionário’ reforça a ideia de que não está otimista em relação às negociações. Apesar de não ter dito o nome, a maioria dos analistas acredita que ‘jovem e revolucionário’ é um ‘código’ para Saeed Mohammad, general dos Guardas da Revolução [52 anos] profundamente antiocidental e antinegociações.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui
