Ódio inédito no conflito de sempre

A mais recente escalada entre Israel e o Hamas fez estalar a violência entre judeus e árabes em cidades israelitas

Nos últimos 12 anos, Israel e o Hamas, o grupo islamita que controla a Faixa de Gaza, enfrentaram-se abertamente três vezes. A última dessas guerras, em 2014, foi ao mesmo tempo a mais longa (sete semanas) e a mais mortífera (mais de dois mil palestinianos mortos). Disse-se então que Israel quis dar aos islamitas uma lição inesquecível por atentarem contra território judeu. Passados sete anos, a chuva de mísseis que o Hamas despejou esta semana sobre Israel — à qual o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, prometeu responder “com força” — mostra, desde logo, que o Hamas não leva a sério as reprimendas do poderoso vizinho.

A mais recente contenda entre israelitas e palestinianos levou poucos dias a evoluir de um conflito localizado num bairro árabe de Jerusalém para uma operação militar na Faixa de Gaza. Quatro leituras parciais desta crise ajudam a perceber a facilidade com que o rastilho se acende entre os dois povos e porque é complexa a solução para o conflito mais antigo do mundo.

A solução de “dois Estados para dois povos” continua a ser o grande chavão diplomático para o problema israelo-palestiniano, mas é desmentido todos os dias por casos como o que está na origem da crise atual. No bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental — a parte árabe da Cidade Santa conquistada por Israel na guerra de 1967 —, há famílias árabes a serem despejadas das casas onde sempre viveram.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano a justiça de Israel deu ordem de expulsão a 22 famílias palestinianas, nos bairros de Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa, num total de 139 pessoas. Mal são evacuadas, as casas são de imediato ocupadas por colonos judeus. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém — cidade que também os palestinianos querem para sua capital — vai-se erodindo e Israel pode reclamar a posse de mais terras.

Nas ruas, a tensão à volta de Sheikh Jarrah foi sendo inflamada por atos provocatórios. Há três semanas, numa marcha supremacista pelo “restabelecimento da dignidade judaica”, ouviu-se repetidamente: “Morte aos árabes.” Já esta semana, foi a vez de sair à rua a tradicional manifestação nacionalista do Dia de Jerusalém, em que milhares de israelitas empunham a bandeira do país para celebrarem a conquista da cidade aos árabes.

Nesse exato dia, os deputados extremistas Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eleitos pelo partido de extrema-direira Sionismo Religioso, deslocaram-se a Sheikh Jarrah, rodeados de segurança e de colonos. Há cerca de 20 anos, a visita à Esplanada das Mesquitas do ex-primeiro-ministro Ariel Sharon (então líder da oposição) desencadeou protestos violentos num prenúncio da segunda intifada palestiniana, que não tardaria a começar.

Com a tensão em Jerusalém em máximos e a sua população muçulmana a cumprir o mês sagrado do Ramadão — assinalou-se entre quarta e quinta-feira a festa de Eid al-Fitr, que marca o fim desse período —, as forças israelitas impuseram restrições no acesso à Esplanada das Mesquitas, procurada diariamente por milhares de palestinianos para as orações. Daí à deflagração de confrontos foi questão de (pouco) tempo. Quando latas de gás lacrimogéneo e granadas de choque disparadas pelas forças israelitas rebentaram no interior da Mesquita de Al-Aqsa — o terceiro lugar santo do Islão —, todo o mundo muçulmano foi automaticamente arrastado para o problema.

RESISTÊNCIA
Só o Hamas defende os palestinianos

Em resposta à violência em Jerusalém e, em especial, aos raides da polícia israelita nas imediações da Mesquita de Al-Aqsa, voaram rockets da Faixa de Gaza na direção de Israel. Este tipo de ataques por parte do Hamas não é novo, foi-o, sim, a quantidade de foguetes disparados em simultâneo sobre cidades como Telavive.

A chuva de mísseis sem precedentes — batizada em Gaza de Espada de Jerusalém — enfiou milhões de israe­litas em bunkers, receosos de nova guerra num momento em que ainda gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia. A esmagadora maioria dos projéteis foi intercetada pelo sofisticado sistema de defesa antimíssil Cúpula de Ferro. Alguns dos que não foram destruídos no ar provocaram sete mortos em Israel.

Em Gaza, os bombardeamentos israelitas de retaliação pelos rockets — operação Guardião das Muralhas — provocaram, até ontem de manhã, 69 mortos, incluindo 17 crianças. Israel disse ter eliminado vários comandantes do Hamas, o que perspetiva a vontade de vingança e um agravamento da situação.

A chuva de mísseis sem precedentes enfiou milhões de israelitas em bunkers, quando gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia

Na Cisjordânia — o outro território palestiniano ocupado por Israel —, o Presidente palestiniano reagiu com palavras de condenação e apelos infrutíferos à comunidade internacional. Mahmud Abbas tem a sua quota de responsabilidade na falta de ânimo dos palestinianos de Gaza e da Cisjordânia. No final de abril, o líder da Autoridade Palestiniana — cujo mandato expirou em 2009 — adiou as tão aguardadas eleições com que os palestinianos ameaçavam “despedir” a elite que os governa, a quem rotulam de corrupta, e enterrar de vez a divisão Fatah-Hamas que fragiliza a causa.

Abbas é acusado de ter adiado as legislativas para precaver a possibilidade de vitória do Hamas. A seu favor, o grupo islamita (que a UE e os Estados Unidos consideram terrorista) tem o facto de ser das poucas alternativas políticas organizadas e de ser a real oposição palestiniana à ocupação.

INTOLERÂNCIA
“Guerra civil” onde antes havia coexistência

Paralelamente aos problemas em Jerusalém e na Faixa de Gaza, a crise abriu uma inédita terceira frente. Várias cidades israelitas com população mista, que se orgulhavam de um quotidiano de coexistência entre judeus e árabes, tornaram-se cenários de violência intercomunitária.

Em São João de Acre, Ramle e Lod multidões de árabes em fúria incendia­ram e vandalizaram sinagogas, lojas, carros e casas de judeus, o que levou o autarca de Lod a alertar para um clima de “guerra civil”. “É a Noite dos Cristais em Lod”, disse Yair Revivo, invocando o pogrom contra os judeus, na Alemanha nazi, na noite de 9 para 10 de novembro de 1938. “É um incidente gigante, uma intifada de árabes israelitas. Todo o trabalho [de coexistência] que temos feito aqui desde há anos foi pelo ralo abaixo.” Em Israel, 20% da população é árabe, detentora de passaporte e com direito a voto. Nunca antes tinham tomado parte em confrontos desta envergadura.

POLÍTICA
Benjamin Netanyahu tal qual uma fénix

A mais recente contenda com o Hamas apanhou o primeiro-ministro de Israel num momento de grande fragilidade. Netanyahu está a ser julgado por corrupção e, no plano político, falhou recentemente a formação de um Governo de coligação. Esta crise fê-lo recuperar estatuto e assumir-se como o líder que vai de novo resgatar Israel do sufoco.

A ironia é que, teoricamente, pode estar prestes a terminar a sua longa carreira. A tarefa de formar um Executivo está agora entregue a Yair Lapid, líder do Yesh Atid (centro), que se propôs formar um “Governo da mudança” e vê esta crise dificultar-lhe os planos, dada a oposição dos partidos árabes, de cujo apoio necessita, aos bombardeamentos em Gaza.

“Os acontecimentos da última semana não podem ser desculpa para deixar Netanyahu e o seu Governo no poder”, disse Lapid. “É exatamente o oposto: são o motivo pelo qual precisa de ser substituído o mais depressa possível.” Netanyahu já anunciou aos israelitas que o “conflito atual pode durar algum tempo”. A Lapid foram dados 28 dias para formar Governo, que começaram a contar a 5 de maio. Se o prazo se esgotar sem que o consiga, Israel estará mais perto de voltar a ir a votos. Serão as quintas eleições em pouco mais de dois anos, que, é óbvio, Netanyahu espera voltar a vencer.

(ILUSTRAÇÃO DE VERONAA / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

A pandemia foi global, mas fustigou em particular a região mais desigual do mundo. Sabe qual é?

A pandemia de covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo, a América Latina. A falta de oxigénio no Brasil, o agravamento da violência de género no México ou a falta de caixões no Equador são sintomas de um subcontinente doente a vários níveis. Saiba tudo sobre o impacto da covid-19 na América Latina. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Não há canto no mundo onde a pandemia de covid-19 não tenha chegado. E se, nos últimos dias, temos falado muito da Índia, não há latitude onde o impacto tenha sido tão grande como na América Latina.

Com uma população que não chega a 10% do total mundial, as regiões da América Latina e Caraíbas contribuem com mais de um quarto das mortes por covid-19 em todo o mundo. Algumas das imagens mais fortes que ajudarão a contar a história desta pandemia vivem-se nestes países…

Cadáveres ao abandono por falta de urnas em Guayaquil, no Equador… Hospitais em Manaus, no Brasil, com falta de oxigénio… Cemitérios e crematórios saturados em Tijuana, no México… Milhares de venezuelanos ao deus-dará, fugidos das dificuldades no país natal e sem sustento nos países vizinhos.

A pandemia revelou ainda mais sintomas em países que já vinham evidenciando pouca saúde. Lembra-se como estava a América Latina antes da chegada do coronavírus?

No Chile, considerado um caso de sucesso económico na região, havia gigantescos protestos contra o custo de vida.

Na Colômbia, que passou 52 dos últimos 60 anos em guerra civil, havia manifestações contra as concessões feitas à guerrilha das FARC durante as negociações de paz.

No Equador, o alvo da contestação popular era a austeridade decretada pelo Governo.

Já na Bolívia, gritava-se que as eleições presidenciais que viabilizaram o quarto mandato de Evo Morales tinham sido fraudulentas.

A América Latina era um subcontinente em polvorosa quando a covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo.

O Peru chegou a ter a maior taxa de mortalidade global, graças a um sistema de saúde deficiente, uma economia assente no sector informal onde o teletrabalho não existe e as dificuldades de distanciamento social são evidentes.

No México, o confinamento agravou o problema da violência de género.

E como se não bastasse, a crise económica decorrente do problema de saúde pública atingiu em cheio a região.

Estima-se que a covid-19 seja responsável pela pior recessão em 100 anos na América Latina, pelo aumento da pobreza extrema.

A nível político, vários países tornaram-se montras do declínio das democracias.
Foi o caso da Bolívia. Quando a pandemia chegou, o país estava polarizado entre apoiantes e críticos do ex-Presidente Morales, que renunciara ao cargo por pressão popular, após 13 anos no poder. Essa luta não cedeu ao vírus e as eleições que deviam trazer a normalidade foram sendo adiadas uma e outra vez, por interesses políticos.
Numa demonstração do descontrolo geral do país, a Presidente interina Jeanine Añez foi infetada com covid-19.

Tal como aconteceu com Jair Bolsonaro, no Brasil. O Presidente minimizou o vírus, assumiu-se como um dos membros da Aliança da Avestruz, politizou a produção das vacinas e promoveu uma narrativa populista de confinamento versus economia. Com tudo isto enfraqueceu a estratégia de combate à pandemia do Brasil e tornou o país um exemplo… pelas piores razões.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Intifada por Sheikh Jarrah. Uma luta contra a ocupação israelita e a negligência palestiniana

A violência regressou ao coração de Jerusalém. Desta vez, o rastilho foi o avanço da ocupação israelita sobre um bairro na parte árabe da cidade. A alimentar muita da revolta dos palestinianos está também um sentimento de abandono em relação à sua própria liderança. O recente adiamento das muito aguardadas eleições legislativas só veio acentuar essa frustração. “Nem Israel nem a Autoridade Palestiniana estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres”, diz ao Expresso um ativista de Hebron. “Querem manter o status quo.

Mapa de Jerusalém, com a localização de Sheikh Jarrah THE NATIONAL

O recato a que os muçulmanos têm por hábito entregar-se durante o mês sagrado do Ramadão foi tomado, nos últimos dias, por uma “intifada” (revolta) palestiniana, na Cidade Velha de Jerusalém. As zonas em redor da Mesquita de Al-Aqsa estão transformadas em campos de batalha entre palestinianos e forças israelitas.

Segunda-feira, gás lacrimogéneo e granadas de choque disparados pela polícia israelita rebentaram dentro daquele que é o terceiro lugar mais sagrado do Islão. A segunda maior religião do mundo conta cerca de dois mil milhões de crentes.

Na origem da mais recente vaga de violência entre israelitas e palestinianos está a disputa por Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém Oriental que foi buscar o nome ao médico pessoal de Saladino, o curdo que liderou as tropas muçulmanas na conquista de Jerusalém aos cristãos, em 1187.

Por decisão da justiça israelita, há famílias árabes que ali vivem desde sempre e que estão na iminência de serem despejadas. Domingo passado, quando já havia confrontos nas ruas, foi adiada a audiência no tribunal que devia confirmar essa expulsão.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano, os tribunais israelitas já ordenaram o despejo de 22 famílias palestinianas em Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa (outro bairro de Jerusalém Oriental), num total de 139 pessoas.

Sempre que são evacuadas, as casas não ficam ao abandono — colonos israelitas tomam conta delas, garantindo que o pedaço de terra onde se erguem passe a constar nos mapas como território judeu. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém é uma referência cada vez mais longínqua nos livros de história.

Os palestinianos de Jerusalém Oriental vivem num limbo. Não são cidadãos de Israel (como quase dois milhões de árabes que vivem em território israelita, com direito a passaporte e a voto), nem têm o seu estatuto de residência garantido.

Vivem numa das frentes mais tensas da ocupação israelita, sem certezas em relação à vida quotidiana e mergulhados num sentimento de abandono em relação à liderança palestiniana. Dela esperavam defesa e proteção contra o avanço do projeto de colonização israelita.

“Facada” veio de mão supostamente amiga

A última “facada” nessa esperança palestiniana foi desferida pelo próprio Presidente da Autoridade Nacional Palestiniana. No passado dia 29 de abril, Mahmud Abbas anunciou o adiamento das eleições legislativas previstas para 22 de maio.

“Essa decisão só veio aumentar a frustração entre os palestinianos que esperavam um recomeço, uma nova unidade nacional que contrariasse tanto a política de ocupação e de apartheid israelita como a divisão intrapalestiniana entre Hamas e Fatah”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa.

Abbas alegou que as autoridades de Israel não garantiam a realização do escrutínio em Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade santa ocupada na guerra de 1967. “Mal Israel concorde, teremos eleições no prazo de uma semana”, prometeu. Mas as suas palavras soaram a pretexto. “A Autoridade Palestiniana [AP] tem feito muito pouco pela defesa desta população”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita.

“Por um lado, representantes da Fatah [partido de Abbas, que domina a AP] colocam a culpa em Israel por recusar a instalação de mesas eleitorais em Jerusalém Oriental. Nas eleições anteriores (em 1995, 2005 e 2006), Israel tinha permitido a instalação de mesas eleitorais em postos de correio.”

Por outro lado, os mesmos representantes “recusaram a possibilidade da colocação de mesas em consulados europeus e instalações das Nações Unidas em Jerusalém Oriental. Esta recusa, que justificaram dizendo que se trataria de um ‘escape’, e não uma ‘solução’, mostra que a Fatah não estava verdadeiramente interessada em garantir a participação eleitoral destes palestinianos, e que existe outra agenda política”.

Sem votar há quinze anos

Estas eleições legislativas seriam as primeiras desde 2006 — quando a vitória do Hamas não foi reconhecida (pela Fatah, por Israel e pela comunidade internacional), o que contribuiu para dividir a Palestina em dois, com o Hamas a tomar o poder à força na Faixa de Gaza e a Fatah a entrincheirar-se na Cisjordânia.

“O anúncio das eleições, a 15 de janeiro de 2021 [a cinco dias de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos], causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais [36 aprovadas pela comissão eleitoral] e até no número crescente de mulheres nessas listas”, recorda Marta Silva.

“Quase um milhão de jovens palestinianos teria votado pela primeira vez”, acrescenta Giulia Daniele. “O adiamento das eleições — que mais parece um cancelamento, sem nova data marcada — poderá custar muito caro à causa palestiniana, criando uma desilusão generalizada numa geração que gostaria de ser mais ouvida e de tentar mudar o status quo em que se sente presa há longo tempo.”

Com estas legislativas, os palestinianos tencionavam por fim começar a ‘arrumar a casa’. O povo exigia-o desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho próximo, tinham agendadas presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina (OLP), que é a instituição que, na ausência de um Estado independente, representa o povo palestiniano a nível internacional.

“Fiquei surpreendido por Abbas aceitar fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista palestiniano Issa Amro, ícone da resistência pacífica e da desobediência civil na Cisjordânia. “Tinha a certeza que ele não iria aceitar eleições livres. É idoso, está debilitado e incapaz. Seguramente ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido.”

Ocupação não tem oposição

Issa vive noutra frente da ocupação israelita: a cidade de Hebron, onde moram alguns dos colonos judeus mais radicais. A 13 de abril passado, foi absolvido por um tribunal palestiniano no âmbito de um processo interposto pela AP, que lidou mal com as acusações do ativista. “A liderança da AP é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação”, diz Issa, que acusa: “Nem Israel nem a AP estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres. Querem manter o status quo.”

“A presença no poder da Fatah desde 1993 [Acordos de Oslo] tem servido também os interesses de Israel, uma vez que garante que não exista oposição capaz de resistir à ocupação”, explica Marta Silva. “O governo da Fatah é visto pelos palestinianos como profundamente corrupto, e a colaboração em termos de segurança com o Estado de Israel é conhecida, e explica a detenção de vários opositores políticos da Fatah.”

Entre as listas que se preparavam para ir a votos, uma em especial estava a colocar a Fatah em sentido: a “Liberdade” — em que Issa Amro ia votar —, fundada por Nasser Kidwa, sobrinho do malogrado líder histórico palestiniano Yasser Arafat, e por Marwan Barghouti, um líder das duas Intifadas, preso desde 2004, a cumprir várias sentenças de prisão perpétua numa prisão israelita. Barghouti, a quem chamam “Mandela palestiniano”, era apontado como alternativa mais forte a Abbas e potencial vencedor das presidenciais.

Paralelamente, não estava afastada a possibilidade de se repetir em 2021 o resultado de 2006. “O futuro da Palestina e os seus equilíbrios internos são os fatores determinantes do adiamento das eleições”, diz Giulia Daniele. “Existe medo real por parte da Fatah, e também de Israel e dos Estados Unidos, de um fortalecimento significativo — e uma muito provável nova vitória — do Hamas, não apenas na Faixa de Gaza mas também na Cisjordânia.”

Várias outras formações políticas têm na origem antigos dirigentes da Fatah, que interpretaram a desilusão e a desconfiança de grande parte dos palestinianos em relação à gestão governativa do partido e assumiram a dissidência em relação ao Presidente, que leva 16 anos no cargo.

Abbas é só uma parte do problema

“Abbas tem 85 anos e problemas de saúde graves. Debates sobre quem poderá suceder-lhe existem há anos. No entanto, o problema palestiniano não reside exclusivamente em Abbas. Ele é apenas a face mais visível de uma elite política que beneficia da ocupação”, diz Marta Silva.

“A AP é uma continuação da ocupação israelita por outros meios, uma forma de terciarização da ocupação: a AP e Abbas necessitam de Israel para manter o poder sobre esse território, e Israel necessita de manter a Fatah no poder, porque sabe que a eleição do Hamas, da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), ou da ‘Liberdade’ significaria o fim da cooperação para a ‘segurança’ entre os dois lados.”

A prazo, o adiamento das eleições palestinianas, sem perspetiva de serem realizadas tão cedo, terá, na perspetiva de Marta Silva, duas consequências importantes que podem voltar-se contra os palestinianos:

  1. Dispersão do eleitorado palestiniano. “Acredito que uma grande percentagem dos eleitores que iam votar na Fatah por ser um ‘mal já conhecido’ comece a ponderar votar noutras listas, nomeadamente no Hamas, também pela atitude do grupo em relação a Jerusalém Oriental: representantes do Hamas dizem, desde janeiro, que Abbas não tem de pedir autorização a Israel, país ocupante, para levar a cabo as eleições em Jerusalém.”
  2. Favorecimento do Hamas. “Este adiamento confirma em público a imagem de uma Fatah subjugada aos interesses de Israel. O que será erradamente analisado como processo de radicalização do eleitorado palestiniano esconde, na realidade, um problema de falta de alternativas políticas. Num momento em que listas democráticas — que reconhecem o direito de existência de Israel nos territórios pré-1967 e renunciaram há muito à luta armada — estão constantemente sob ataque por parte da Fatah e de Israel, o Hamas surge como uma das poucas alternativas políticas organizadas e com capacidade de resistência à ocupação. Trata-se de uma falta de visão política espantosa por parte de Israel e da comunidade internacional, mas a história da Palestina desde o início do século XX está repleta de exemplos como este.”

Tudo acontece num contexto de grande tensão em que as ruas de Jerusalém têm sido palco de manifestações de ódio e desprezo contra os palestinianos. Segunda-feira, saiu à rua a tradicional e provocatória marcha do Dia de Jerusalém, em que milhares de pessoas agitam a bandeira de Israel para celebrar a conquista da parte árabe da cidade, na guerra dos Seis Dias (1967). Para evitar um banho de sangue, a polícia alterou o curso do desfile, afastando-o da Porta de Damasco, principal entrada da Cidade Velha e centro dos confrontos dos últimos dias.

Há três semanas, tinham sido militantes de um grupo da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita a realizar uma marcha em Jerusalém para “restaurar a dignidade judaica”. Entre os slogans que gritaram, ouviu-se muitos “Morte aos árabes”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

A “joia da coroa” das presidências portuguesas

A Índia é assunto querido à diplomacia portuguesa. Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Este sábado, no Porto, uma nova edição tenta reatar as negociações comerciais entre ambas, paralisadas há oito anos. Para a UE, este caminho para a Índia revela a procura de alternativas à dependência da China. Para Portugal, é o continuar de uma relação histórica com mais de 500 anos. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa”, diz ao Expresso uma investigadora indiana

A Índia é um país tão grande e diversificado que a dúvida se instala com legitimidade: é a Índia um país ou será mais um continente? Em superfície, o mapa indiano engole os 16 territórios menores da União Europeia (UE). Já em termos populacionais, estima-se que dentro de cinco anos ultrapasse a China e se torne o país mais populoso do mundo.

É este colosso geográfico e demográfico que este sábado se vai ‘sentar à mesa’, ainda que de forma virtual, com a União Europeia. A cimeira decorrerá no Palácio de Cristal do Porto e foi, desde a primeira hora, rotulada por António Costa de “joia da coroa” da presidência portuguesa do Conselho da UE, em matéria de política externa.

“Tanto Portugal como a UE reconhecem que é necessário aprofundar as relações com a Índia para depender menos da China. Mas o desafio é que, ao contrário da China, a Índia tem sido um ator económico menos relevante e também relutante em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que se arrastam desde 2007, e que foram interrompidas em 2013”, comenta ao Expresso Constantino Xavier, investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli. “A cimeira de sábado deverá indicar um novo compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando negociações.”

A relação entre a UE e a Índia — duas das maiores economias do mundo — formalizou-se em 1994, através de um Acordo de Cooperação bilateral. O objetivo maior de um acordo de livre comércio nunca viu a luz do dia, inviabilizado por divergências, sobretudo a nível das tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e da livre circulação de determinadas categorias profissionais. A cimeira do Porto ambiciona desbloquear o impasse e relançar o diálogo.

COMÉRCIO UE-ÍNDIA

10º

lugar é a posição da Índia no ranking dos parceiros comerciais da União Europeia

posição é a que a União Europeia ocupa na lista de destinos das exportações indianas

“A Índia tem procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos 2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países nórdicos, da Europa Central e Oriental também”, diz ao Expresso a indiana Garima Mohan, investigadora no German Marshall Fund. “Enquanto a Índia tenta recuperar das consequências da pandemia, precisará de trabalhar mais com a Europa, também na questão da distribuição equitativa de vacinas.”

Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira do Porto servirá para tomarem o pulso uma à outra. “Do lado europeu, vai permitir aferir quão tangível é o interesse da Índia em cooperar mais com a UE, e em que setores a cooperação pode ser acelerada”, comenta ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense.

“Para a Índia, permite a Modi aferir das intenções da UE no que toca a objetivos geopolíticos e geoeconómicos. Nova Deli tem a grande expectativa de a cimeira resultar num empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e procura alavancar a iniciativa ‘Make In India’ (que tem por mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), através da qual se posiciona como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. A Índia procura parceiros que a confirmem como uma potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size diplomacy [diplomacia à medida].”

2000, 2007 e 2021

A confirmar-se o relançamento das negociações entre europeus e indianos, será mais um marco na afirmação de Portugal como ponte entre a Índia e a Europa, alicerçada numa relação histórica bilateral com mais de 500 anos.

“O facto de este histórico encontro de líderes decorrer sob a presidência portuguesa tem sido amplamente notado na Índia”, diz Mohan. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa.”

Foi durante uma presidência portuguesa do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Foi ainda na presidência portuguesa do segundo semestre de 2007 que foram lançadas as negociações com vista a um acordo de comércio livre, que agora se tenta retomar.

“A Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança estreita para o futuro.”

António Costa primeiro-ministro português

“Portugal tem desempenhado um papel importante na aproximação entre Nova Deli e Bruxelas, agindo essencialmente como facilitador de diálogo”, acrescenta Tiago André Lopes. “O facto de ser, uma vez mais, em Portugal que se discutem as relações entre o bloco europeu e o gigante asiático permite-nos, como anfitriões, gozar de um canal de influência não apenas como moderadores da discussão, mas como parte ativa na fixação da agenda. O sucesso desta cimeira irá firmar o crédito de Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e com África.”

A cimeira deste sábado não pode deixar de ser enquadrada na Nova Estratégia de Cooperação no Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar “estabilidade”, “segurança”, “prosperidade” e “desenvolvimento sustentável” numa região que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. “Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem pendido para a China, culminando no polémico acordo de investimentos de 2020”, diz Constantino Xavier.

“Portugal cedo reconheceu que é necessária uma política para a Ásia mais equilibrada, não só com a Índia, mas também com o Japão, e que essa diversificação europeia contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. É nesse sentido que a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, além de uma mera abordagem mercantilista, focada sobretudo nos grandes negócios da China. Seja na Índia ou no resto da Ásia, esse papel de peso da UE é recebido de braços abertos, como mais uma alternativa para preservar uma Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.”

A ÍNDIA E PORTUGAL

0,2%

das exportações portuguesas tiveram como destino a Índia, em 2020. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a Índia é o 46º cliente das exportações portuguesas de bens

0,9%

do total de importações portuguesas vêm da Índia. É o 15ª mercado onde mais Portugal compra

17.619

cidadãos estrangeiros de origem indiana vivem em Portugal, segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) referente a 2019. São, na esmagadora maioria (13.235), homens

“O fator China é uma explicação importante para a aproximação entre UE e Índia. As perceções europeias sobre a Índia têm mudado à medida que aumentam as tensões com a China”, diz Garima Mohan. “Revigorar a parceria com a Índia é também um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da UE.”

“Da mesma forma, a resposta da Índia ao desafio da China concentrou-se no fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação. Isso inclui não só o fortalecimento dos laços com os seus parceiros do grupo Quad (Austrália, Japão e Estados Unidos) e com o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Não é por acaso que assuntos da agenda UE-Índia — como a segurança marítima no Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G e Inteligência Artificial —, todos têm elementos de competição com a China.”

A relação entre europeus e indianos tem potencial para exercer um impacto geopolítico maior. “UE e Índia também procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional da crescente rivalidade sino-americana”, alerta Constantino Xavier.

“Seja na luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias ou no desenvolvimento sustentável, Bruxelas e Nova Deli estão a coordenar posições comuns para oferecer soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Ambas reconhecem que para depender menos dos Estados Unidos ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as suas políticas com outras potências e blocos regionais.”

É todo este longo caminho que a presidência portuguesa do Conselho da UE tem promovido e que a cimeira do Porto quer ajudar a trilhar.

(FOTOS A 24 de junho de 2017, António Costa recebeu Narendra Modi, no Palácio das Necessidades, em Lisboa GABINETE DO PRIMEIRO-MINISTRO DA ÍNDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Era uma vez duas eleições…

Os israelitas foram a votos a 23 de março e ainda não têm Governo. Os palestinianos, cujas últimas legislativas datam de há 15 anos, viram adiar as eleições agendadas para 22 de maio. No Médio Oriente, até votar pode ser complicado

1 Israel já conseguiu formar Governo?

Passaram 45 dias e ainda não há Governo. À meia-noite de terça-feira passada esgotou-se, sem êxito, o prazo dado ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, líder do partido mais votado (Likud, direita, 31 deputados em 120), para formar uma coligação. O senhor que se segue na tarefa, indicado pelo Presidente Reuven Rivlin, é Yair Lapid, líder da segunda força mais votada (Yesh Atid, centro, 17 deputados). Lapid tem 28 dias para obter o apoio de pelo menos 61 parlamentares. Sabe-se que ele e Naftali Bennett (líder do Yamina, direita radical, 7 deputados) negociaram um “governo de mudança” (sem Netanyahu) onde alternariam no cargo de primeiro-ministro (Bennett seria o primeiro). Falta convencer mais partidos.

2 E os palestinianos, vão realizar eleições?

Já não. Estavam marcadas legislativas para 22 de maio, a comissão eleitoral tinha aprovado 36 listas candidatas, mas há uma semana o Presidente Mahmud Abbas anunciou a suspensão do ato eleitoral, alegando que os eleitores de Jerusalém Oriental (anexada por Israel) não tinham condições para votar. Para muitos palestinianos, a justificação soou a desculpa. “Surpreendeu-me que Abbas concordasse em fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista Issa Amro. “Ele não ia aceitar eleições livres. É idoso [85 anos], está incapacitado e incapaz. Ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido. A liderança da Autoridade Palestiniana é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação, quer manter o statu quo.”

3 Que importância teria este escrutínio?

Muita. Seriam as primeiras legislativas desde 2006. “O anúncio destas eleições causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais e até no número crescente de mulheres nessas listas”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita. O escrutínio seria o início de um ‘arrumar de casa’ que os palestinianos vêm exigindo desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho haveria presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina, que representa o povo a nível internacional.

4 Que consequências terá este adiamento?

À luz dos últimos 15 anos, é realista interpretar o adiamento das eleições como um cancelamento, que acontece em contexto delicado. “Muitos elementos fomentam raiva e violência contra os palestinianos, como se viu na manifestação da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita em Jerusalém, na semana passada”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa. Não fazer eleições “só vai aumentar a frustração dos palestinianos que acreditavam numa nova unidade nacional, em contraste com a política de ocupação e apartheid israelita e com a divisão intrapalestiniana Hamas-Fatah”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui