A mais recente escalada entre Israel e o Hamas fez estalar a violência entre judeus e árabes em cidades israelitas
Nos últimos 12 anos, Israel e o Hamas, o grupo islamita que controla a Faixa de Gaza, enfrentaram-se abertamente três vezes. A última dessas guerras, em 2014, foi ao mesmo tempo a mais longa (sete semanas) e a mais mortífera (mais de dois mil palestinianos mortos). Disse-se então que Israel quis dar aos islamitas uma lição inesquecível por atentarem contra território judeu. Passados sete anos, a chuva de mísseis que o Hamas despejou esta semana sobre Israel — à qual o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, prometeu responder “com força” — mostra, desde logo, que o Hamas não leva a sério as reprimendas do poderoso vizinho.
A mais recente contenda entre israelitas e palestinianos levou poucos dias a evoluir de um conflito localizado num bairro árabe de Jerusalém para uma operação militar na Faixa de Gaza. Quatro leituras parciais desta crise ajudam a perceber a facilidade com que o rastilho se acende entre os dois povos e porque é complexa a solução para o conflito mais antigo do mundo.
OCUPAÇÃO
A gradual (e radical) judaização de Jerusalém
A solução de “dois Estados para dois povos” continua a ser o grande chavão diplomático para o problema israelo-palestiniano, mas é desmentido todos os dias por casos como o que está na origem da crise atual. No bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental — a parte árabe da Cidade Santa conquistada por Israel na guerra de 1967 —, há famílias árabes a serem despejadas das casas onde sempre viveram.
Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano a justiça de Israel deu ordem de expulsão a 22 famílias palestinianas, nos bairros de Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa, num total de 139 pessoas. Mal são evacuadas, as casas são de imediato ocupadas por colonos judeus. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém — cidade que também os palestinianos querem para sua capital — vai-se erodindo e Israel pode reclamar a posse de mais terras.
Nas ruas, a tensão à volta de Sheikh Jarrah foi sendo inflamada por atos provocatórios. Há três semanas, numa marcha supremacista pelo “restabelecimento da dignidade judaica”, ouviu-se repetidamente: “Morte aos árabes.” Já esta semana, foi a vez de sair à rua a tradicional manifestação nacionalista do Dia de Jerusalém, em que milhares de israelitas empunham a bandeira do país para celebrarem a conquista da cidade aos árabes.
Nesse exato dia, os deputados extremistas Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eleitos pelo partido de extrema-direira Sionismo Religioso, deslocaram-se a Sheikh Jarrah, rodeados de segurança e de colonos. Há cerca de 20 anos, a visita à Esplanada das Mesquitas do ex-primeiro-ministro Ariel Sharon (então líder da oposição) desencadeou protestos violentos num prenúncio da segunda intifada palestiniana, que não tardaria a começar.
Com a tensão em Jerusalém em máximos e a sua população muçulmana a cumprir o mês sagrado do Ramadão — assinalou-se entre quarta e quinta-feira a festa de Eid al-Fitr, que marca o fim desse período —, as forças israelitas impuseram restrições no acesso à Esplanada das Mesquitas, procurada diariamente por milhares de palestinianos para as orações. Daí à deflagração de confrontos foi questão de (pouco) tempo. Quando latas de gás lacrimogéneo e granadas de choque disparadas pelas forças israelitas rebentaram no interior da Mesquita de Al-Aqsa — o terceiro lugar santo do Islão —, todo o mundo muçulmano foi automaticamente arrastado para o problema.
RESISTÊNCIA
Só o Hamas defende os palestinianos
Em resposta à violência em Jerusalém e, em especial, aos raides da polícia israelita nas imediações da Mesquita de Al-Aqsa, voaram rockets da Faixa de Gaza na direção de Israel. Este tipo de ataques por parte do Hamas não é novo, foi-o, sim, a quantidade de foguetes disparados em simultâneo sobre cidades como Telavive.
A chuva de mísseis sem precedentes — batizada em Gaza de Espada de Jerusalém — enfiou milhões de israelitas em bunkers, receosos de nova guerra num momento em que ainda gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia. A esmagadora maioria dos projéteis foi intercetada pelo sofisticado sistema de defesa antimíssil Cúpula de Ferro. Alguns dos que não foram destruídos no ar provocaram sete mortos em Israel.
Em Gaza, os bombardeamentos israelitas de retaliação pelos rockets — operação Guardião das Muralhas — provocaram, até ontem de manhã, 69 mortos, incluindo 17 crianças. Israel disse ter eliminado vários comandantes do Hamas, o que perspetiva a vontade de vingança e um agravamento da situação.
A chuva de mísseis sem precedentes enfiou milhões de israelitas em bunkers, quando gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia
Na Cisjordânia — o outro território palestiniano ocupado por Israel —, o Presidente palestiniano reagiu com palavras de condenação e apelos infrutíferos à comunidade internacional. Mahmud Abbas tem a sua quota de responsabilidade na falta de ânimo dos palestinianos de Gaza e da Cisjordânia. No final de abril, o líder da Autoridade Palestiniana — cujo mandato expirou em 2009 — adiou as tão aguardadas eleições com que os palestinianos ameaçavam “despedir” a elite que os governa, a quem rotulam de corrupta, e enterrar de vez a divisão Fatah-Hamas que fragiliza a causa.
Abbas é acusado de ter adiado as legislativas para precaver a possibilidade de vitória do Hamas. A seu favor, o grupo islamita (que a UE e os Estados Unidos consideram terrorista) tem o facto de ser das poucas alternativas políticas organizadas e de ser a real oposição palestiniana à ocupação.
INTOLERÂNCIA
“Guerra civil” onde antes havia coexistência
Paralelamente aos problemas em Jerusalém e na Faixa de Gaza, a crise abriu uma inédita terceira frente. Várias cidades israelitas com população mista, que se orgulhavam de um quotidiano de coexistência entre judeus e árabes, tornaram-se cenários de violência intercomunitária.
Em São João de Acre, Ramle e Lod multidões de árabes em fúria incendiaram e vandalizaram sinagogas, lojas, carros e casas de judeus, o que levou o autarca de Lod a alertar para um clima de “guerra civil”. “É a Noite dos Cristais em Lod”, disse Yair Revivo, invocando o pogrom contra os judeus, na Alemanha nazi, na noite de 9 para 10 de novembro de 1938. “É um incidente gigante, uma intifada de árabes israelitas. Todo o trabalho [de coexistência] que temos feito aqui desde há anos foi pelo ralo abaixo.” Em Israel, 20% da população é árabe, detentora de passaporte e com direito a voto. Nunca antes tinham tomado parte em confrontos desta envergadura.
POLÍTICA
Benjamin Netanyahu tal qual uma fénix
A mais recente contenda com o Hamas apanhou o primeiro-ministro de Israel num momento de grande fragilidade. Netanyahu está a ser julgado por corrupção e, no plano político, falhou recentemente a formação de um Governo de coligação. Esta crise fê-lo recuperar estatuto e assumir-se como o líder que vai de novo resgatar Israel do sufoco.
A ironia é que, teoricamente, pode estar prestes a terminar a sua longa carreira. A tarefa de formar um Executivo está agora entregue a Yair Lapid, líder do Yesh Atid (centro), que se propôs formar um “Governo da mudança” e vê esta crise dificultar-lhe os planos, dada a oposição dos partidos árabes, de cujo apoio necessita, aos bombardeamentos em Gaza.
“Os acontecimentos da última semana não podem ser desculpa para deixar Netanyahu e o seu Governo no poder”, disse Lapid. “É exatamente o oposto: são o motivo pelo qual precisa de ser substituído o mais depressa possível.” Netanyahu já anunciou aos israelitas que o “conflito atual pode durar algum tempo”. A Lapid foram dados 28 dias para formar Governo, que começaram a contar a 5 de maio. Se o prazo se esgotar sem que o consiga, Israel estará mais perto de voltar a ir a votos. Serão as quintas eleições em pouco mais de dois anos, que, é óbvio, Netanyahu espera voltar a vencer.
(ILUSTRAÇÃO DE VERONAA / GETTY IMAGES)
Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui





