Um ano após a Lei da Segurança Nacional, Hong Kong está menos livre, mas com igual vontade de contestar a China

A Lei da Segurança Nacional, imposta há um ano por Pequim a Hong Kong, “silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do Partido Comunista Chinês”, diz ao Expresso um cidadão daquele território autónomo, a viver no Reino Unido. Aos poucos, o regime comunista vai esculpindo a cidade à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”

Quando, em finais de 2015, os cinemas de todo o mundo se enchiam para visionar o sétimo episódio da saga Guerra das Estrelas — “O Despertar da Força” —, a corrida às bilheteiras em Hong Kong revelava um concorrente à altura de tanto entusiasmo. “Dez Anos”, um filme independente de baixo orçamento, projetava a vida naquele território, em 2025, no âmbito de uma sociedade distópica controlada pela China.

Numa das cinco histórias contadas, funcionários do governo local orquestravam um assassínio político com o intuito de gerar medo na sociedade de Hong Kong e fomentar o apoio público à adoção de uma lei de segurança nacional.

Noutra trama, um taxista falante de cantonês (língua de Hong Kong) via-se cada vez mais marginalizado e condicionado no exercício do seu trabalho por não falar mandarim (putonghua), a língua falada na China Continental que os locais estavam obrigados a aprender para poderem trabalhar sem limitações em Hong Kong.

Num terceiro episódio, o dono de uma pequena mercearia sentia os limites à liberdade de expressão entrarem-lhe negócio adentro quando as palavras que usava para promover os ovos que ali vendia — “ovos locais” — foram parar a uma lista oficial de termos censurados.

https://www.youtube.com/watch?v=ePJuYVSNZTM&ab_channel=NeoFilmReviews

Cinco anos e meio depois de este filme conquistar as bilheteiras de Hong Kong, o exercício de ficção revela-se assustadoramente real. Pelo menos estas três histórias não andam muito longe da realidade que se vive naquela região administrativa especial da China.

O fim de um sistema

Faz um ano esta quarta-feira que entrou em vigor a Lei da Segurança Nacional, imposta pelo regime de Pequim, que condicionou a autonomia do território e acentuou a submissão de Hong Kong à vontade do Partido Comunista Chinês (PCC). Aos poucos, Pequim vai esculpindo o território à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”.

“Hong Kong ainda não é ‘só mais uma cidade chinesa’. Restam linhas, mesmo que não sejam claras. Ao contrário do que acontece na China Continental, não há pessoas a desaparecer, nem são feitas ameaças às famílias de forma rotineira como meio para silenciar dissidentes. Hong Kong é muito menos livre, mas não é a China Continental”, comenta ao Expresso Evan Fowler, cidadão de Hong Kong residente do Reino Unido, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.

“O efeito da Lei de Segurança Nacional vai muito além da aplicação da lei. Cria incerteza e medo. Silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do PCC. Das pessoas com quem me encontrei em Hong Kong em 2019, quando visitei a minha pátria pela última vez, metade foi presa. Os restantes não ousam falar, ou passaram a limitar fortemente as suas conversas. Hong Kong, vale a pena recordá-lo, já foi a sociedade mais vibrante e livre da Ásia, e um modelo de liberdades cívicas para grande parte da região.”

A Lei da Segurança Nacional entrou em vigor no território a 30 de junho de 2020, a poucos minutos das zero horas de 1 de julho — dia de aniversário da transferência da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China, em 1997. Passado um ano, confirmam-se os receios de quem se opôs desde a primeira hora a esta ferramenta, com a qual as autoridades chinesas querem combater atividades “subversivas e secessionistas” no território.

Promessas quebradas

“Quando a Lei de Segurança Nacional foi imposta por Pequim a Hong Kong, de uma forma que era, em si, uma violação da Lei Básica do território, as autoridades locais, claramente às escuras a esse respeito, prometeram que a Lei se aplicaria a muito poucos casos. Disseram que Hong Kong não seria afetada e que os seus cidadãos não teriam nada a temer. Um ano depois, esta declaração não só soa a falso como reflete a falta de autoridade do Governo de Hong Kong, para não falar da promessa de autonomia de alto nível”, diz Evan Fowler.

No último ano, um conjunto de alterações legislativas e restrições às práticas democráticas introduzidas por Pequim reescreveu as regras e contribuiu para a sensação de que 2047 — ano em que termina o período de transição de 50 anos e a China assumirá total controlo sobre Hong Kong — chegou adiantado mais de duas décadas e meia. Foram especialmente visíveis em quatro domínios.

1. “Reformar” a democracia

Hong Kong tinha eleições para o seu Parlamento — Conselho Legislativo (LegCo) — previstas para 6 de setembro de 2020. Alegando preocupações com a pandemia, a contestada presidente do governo, Carrie Lam, vista como marioneta de Pequim, adiou-as. O escrutínio está agora agendado para 19 de dezembro deste ano, mas terá contornos muito diferentes do que até agora.

A 30 de março de 2021, o Governo de Xi Jinping promulgou uma reforma do sistema eleitoral de Hong Kong que visa marginalizar a oposição no território. A composição do LegCo foi alargada de 70 para 90 membros, mas apenas 20 serão eleitos por sufrágio universal. Até então 35 de 70 lugares (50%) eram escolhidos pelo povo; com esta alteração, apenas 22% do hemiciclo passa a ser efetivamente eleito. Dos restantes lugares, 40 são escolhidos por um comité eleitoral de 1500 personalidades pró-Pequim e 30 são selecionados por grupos socioprofissionais, num complexo sistema que a China opera a seu favor.

Para Pequim, estas foram “reformas” necessárias para garantir que Hong Kong seja governada por “patriotas”. Para os locais que prezam a autonomia, mais não são do que machadadas na democracia.

2. Controlar a imprensa

Após 26 anos nas bancas, o “Apple Daily”, um dos jornais mais populares de Hong Kong, crítico do regime chinês e considerado o único órgão de comunicação pró-democracia, foi obrigado a fechar portas, acusado de espalhar a sinofobia no território. A última edição impressa, publicada quinta-feira da semana passada (24 de junho), teve uma tiragem de um milhão de exemplares. À chuva, milhares de pessoas aguardaram em fila a sua vez para comprarem aquela edição histórica, revelando inconformismo com a ordem das autoridades chinesas.

O cerco ao jornal decorria há meses. A 10 de agosto de 2020, a polícia de Hong Kong invadiu os escritórios da Next Digital, empresa proprietária do jornal, e deteve o seu fundador e ativista pró-democracia Jimmy Lai (detentor também de cidadania britânica), acusando-o de “conluio com forças estrangeiras”.

Em dezembro seguinte, o empresário de 73 anos foi agraciado com o Prémio Liberdade de Imprensa, atribuído pelos Repórteres Sem Fronteiras. Quatro meses depois, foi condenado a 14 meses de prisão por “organizar protestos ilegais”, em 2019.

3. Silenciar os críticos

O primeiro cidadão de Hong Kong acusado na justiça ao abrigo da nova Lei de Segurança Nacional foi um homem de 23 anos, acusado de embater com uma moto contra um grupo de polícias, durante os protestos de 1 de julho, imediatamente após a entrada em vigor da Lei. Tong Ying-kit, que empunhava uma bandeira com um dos slogans fortes dos protestos em Hong Kong — “Libertem Hong Kong, Revolução dos nossos tempos” —, foi acusado de terrorismo e secessão. Um ano depois, continua a ser julgado e enfrenta pena de prisão perpétua.

Com o intuito de decapitar o movimento pró-democracia de Hong Kong, a China tem promovido detenções de vozes críticas, ora de forma cirúrgica, ora em massa. Uma das operações com maior impacto aconteceu em janeiro passado e envolveu a prisão de 55 personalidades da oposição, entre ativistas, antigos deputados e académicos, acusados de envolvimento em conspirações e ações subversivas contra o Estado.

A 100ª detenção aconteceu em março seguinte: 83 homens e 17 mulheres, com idades entre os 16 e os 79 anos.

4. Desmobilizar as manifestações

Se, nos últimos anos, Hong Kong tem sido palco de jornadas de protesto épicas, participadas por centenas de milhares de pessoas em atitude pacífica — como a “revolução dos guarda-chuvas”, em 2014 —, quem o tentar hoje arrisca-se a ser preso e condenado a prisão perpétua por “subversão”, “secessão” ou mesmo “terrorismo”. Lemas como “Libertem Hong Kong, a revolução dos nossos tempos” podem ser considerados atos de subversão.

“Além das manchetes relativas às detenções e ao encerramento do ‘Apple Daily’, está uma cidade que enfrenta uma repressão sistémica aos seus direitos e liberdades mais fundamentais — liberdades que Hong Kong tem garantidas não só pela Declaração Conjunta Sino-Britânica e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, como pela própria Constituição da China”, recorda Evan Fowler.

“Muitas vezes esquecemos que instituições como o Estado de Direito e a liberdade de imprensa são garantidas, pelo menos em teoria, pela Constituição da China. Na nova relação da cidade com a lei, e no uso da Lei da Segurança Nacional que vimos desde que foi aprovada, é difícil não concluir que Hong Kong não só é menos livre, mas também menos autónoma. O Estado de Direito aplica-se seletivamente — o que não é Estado de Direito.”

Habituado a recorrer à criatividade para travar a sua luta — como as paredes Lennon —, o movimento pró-democracia está, mais uma vez, confrontado com a necessidade de se reinventar para contornar dificuldades impostas.

Esperança na pressão vinda de fora

“O movimento terá de adaptar-se, como fez no último ano. Já não é mais uma voz de desafio pela democracia. Pequenos gestos terão mais peso. Não se trata de fazer com que Pequim cumpra a sua palavra, mas de demonstrar a Pequim que o povo não está quebrado e que, embora tenha de aceitar a nova realidade, não a apoiará”, diz Evan Fowler.

“Julgo que veremos mais pessoas pressionadas a sair [de Hong Kong] e vozes públicas do movimento falarão a partir do exílio. Uma comunidade maior no exílio terá uma voz mais forte no exterior para pressionar no sentido de uma ação internacional.”

Algumas das novas formas de protesto e de dissidência já foram visíveis este mês, por alturas da tradicional vigília em Victoria Park, comemorativa do aniversário do massacre na Praça Tiananmen (que a China não reconhece).

“Quando a vigília de 4 de junho foi proibida e as pessoas foram ameaçadas com ordens de prisão por se vestirem de preto, gritarem slogans ou acenderem uma vela, recorreram a formas artísticas de protesto — seja andando em silêncio ou usando as luzes dos telefones para [imitar velas e] iluminar partes da cidade. Estes sinais de resistência desaparecerão, a menos que o mundo continue a olhar [para Hong Kong] e condene a repressão”, defende Fowler.

Tudo acontece com uma pandemia em curso, que também tem sido instrumentalizada por razões políticas. “A covid-19 foi invocada como razão oficial das autoridades para proibirem os protestos, incluindo a vigília de 4 de junho. No entanto, mais revelador foi o facto de os partidários de Pequim enfatizarem repetidamente a Lei da Segurança Nacional como motivo, e as autoridades nada fizeram para se opor a essa narrativa”, conclui Evan Fowler.

“É também revelador que alguns dos detidos no ano passado por participarem nos protestos não tenham sido acusados de reunião ilegal, mas de crimes ao abrigo da Lei de Segurança Nacional. Perante isso, não surpreende que a visão comummente aceite seja a de que a covid-19 tem sido usada politicamente para silenciar dissidentes.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

O Euro não é só futebol: 10 momentos políticos durante a fase de grupos

Uma claque de ultras nas bancadas de Budapeste, jogadores ajoelhados em protestos contra o racismo, traumas de guerras recentes ou mais longínquas e, inevitavelmente, as dificuldades colocadas pela covid-19… O Euro ainda não vai a meio e já não faltam contendas políticas

1. MUITO MAIS DO QUE UMA CLAQUE

O aviso fora dado três dias antes de arrancar o Euro. Num jogo amigável, em Budapeste, entre a Hungria e a República da Irlanda, as bancadas da Puskás Arena reagiram mal ao protesto contra a discriminação racial realizado pelos jogadores irlandeses. Apuparam-nos todo o tempo que permaneceram de joelho no chão, antes de o jogo começar.

Alguns jogadores húngaros indignaram-se com a tomada de posição dos colegas irlandeses e apontaram para a palavra “Respeito”, impressa na manga dos equipamentos de todas as seleções que disputam o Euro. Ora, essa palavra é parte de uma campanha promovida pela própria UEFA, de combate… ao racismo.

A exceção húngara no Euro 2020 — é o único país organizador a permitir bancadas cheias — contribuiu para dar visibilidade a uma contestação organizada a estas intervenções cívicas nos relvados. Na Puskás Arena (68 mil lugares), onde a seleção da casa recebeu Portugal e a França (e onde estas duas seleções se defrontaram quarta-feira), centenas de pessoas com t-shirts pretas, apinhadas numa das bancadas, deram nas vistas neste papel. São uma espécie de claque oficial da seleção húngara e respondem pelo nome de Brigada dos Cárpatos.

Este grupo de ultras alia o entusiasmo pelo futebol à exaltação do nacionalismo. Engloba grupos radicais, como os Monstros Verdes, que apoiam o Ferencváros nas competições de clubes. Nas bancadas da Groupama Arena, em Budapeste, são frequentes os cânticos visando negros, ciganos, judeus e homossexuais, bem como a saudação nazi.

Criados na década de 1990, os Monstros definem-se como patriotas de extrema-direita e exibem, com orgulho, a sua opção pela violência, envolvem-se em lutas com grupos rivais e espancam ou esfaqueiam quando a sua equipa perde. Numa demonstração de força, muitas vezes, nas bancadas, alguns despem as t-shirts pretas para exibir os troncos musculados.

Membros da Brigada dos Cárpatos, na Puskás Arena, durante o Hungria-França ALEX PANTLING / GETTY IMAGES

Animados pela circunstância de, pela primeira vez, a Hungria acolher um evento da dimensão e com a projeção do Euro, a Brigada surge como grupo de apoio à seleção magiar mas também a Viktor Orbán, o primeiro-ministro conservador da Hungria, que tem no futebol o seu desporto favorito e no combate à homossexualidade uma prioridade política.

No exato dia em que Hungria e Portugal disputaram a sua primeira partida do Euro em Budapeste, o Parlamento húngaro aprovou legislação introduzida pelo partido de Orban (Fidesz — União Cívica Húngara), que proíbe a divulgação de conteúdos alusivos à homossexualidade e à mudança de sexo junto de menores de 18 anos. Algo que a Brigada dos Cárpatos não contesta.

2. A GUERRA DA JUGOSLÁVIA AINDA FERVE

O jogo estava longe de ser dos mais interessantes do Euro, mas a temperatura subiu já muito perto do fim quando, ao minuto 89, a Áustria confirmou a vitória por 3-1 com um derradeiro golo. O marcador, Marko Arnautovic, austríaco de ascendência sérvia, não se conteve nos festejos e provocou Ezgijan Alioski, adversário de ascendência albanesa. “Que a tua mãe albanesa se vá f****”, gritou na direção do macedónio.

Não contente, fez o gesto de OK com a mão, conotado com os movimentos supremacistas brancos. O insulto ressuscitou velhos fantasmas dos tempos da Jugoslávia, onde sérvios, macedónios, albaneses e muitos outros grupos étnicos simulavam coexistência pacífica dentro das mesmas fronteiras.

Após marcar à Macedónia do Norte, o austríaco Marko Arnautovic celebrou com um gesto supremacista, na direção de um rival DANIEL MIHAILESCU / AFP / GETTY IMAGES

No dia seguinte ao jogo, já com a controvérsia no domínio público, o austríaco pediu desculpa pelas suas “palavras a quente” e disse não ser racista. Mas a Federação de Futebol da Macedónia do Norte — que participou pela primeira vez na fase final de um Campeonato da Europa em 30 anos de independência — não o poupou e apelou à UEFA, que puniu Marko Arnautovic com um jogo de suspensão.

3. MODA UCRANIANA NÃO PEGA NA RÚSSIA

Ainda o apito não soara no Europeu e já o torneio estava envolvido numa contenda política. Nas malas para Amesterdão, onde assentou arraiais antes da primeira partida, a seleção da Ucrânia levou camisolas com um pormenor que desencadeou a fúria dos russos.

Discreto, a amarelo, o mesmo tom das camisolas, um mapa da Ucrânia tinha como parte integrante do território a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, bem como as regiões separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk, no leste do país. Os equipamentos tinham também bordados dois slogans nacionalistas: “Glória à Ucrânia!” e “Glória aos heróis!”.

O mapa da Ucrânia, com a Crimeia incluída, bordada num equipamento da seleção ucraniana que a UEFA não autorizou AFP / GETTY IMAGES

Andrii Pavelko, Presidente da federação ucraniana, disse que o equipamento simbolizava “a pátria única e indivisa” e inspiraria os jogadores a “lutarem em nome de toda a Ucrânia”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia falou de uma medida “desesperada” e os protestos de Moscovo chegaram à UEFA, cujos estatutos proíbem mensagens políticas nos equipamentos dos atletas.

Pesados os prós e contras, o organismo que tutela o futebol europeu autorizou os ucranianos a vestirem a contestada camisola, com uma única exigência: a remoção da inscrição “Glória aos heróis!” da parte interior do colarinho, dada a sua conotação militar.

A sorte quis que as duas seleções não se defrontassem na fase de grupos, o que evitou males maiores. Já o mérito desportivo ditou que a Rússia fosse eliminada e a Ucrânia seguisse em frente, mas sem hipótese de ter que jogar em São Petersburgo…

4. UMA RIVALIDADE CENTENÁRIA QUE NÃO ESMORECE

Um França-Alemanha é daqueles jogos que não escapa a conotações políticas, nem mesmo quando é ‘a feijões’. Mais ainda quando, consumado o ‘Brexit’ — a saída do Reino Unido da União Europeia —, os dois países voltaram a ser os dois grandes polos políticos da comunidade.

Neste Europeu, após os gauleses vencerem os germânicos por 1-0, alguns franceses acenaram com essa rivalidade histórica. No dia seguinte ao jogo, o prestigiado jornal desportivo “L’Équipe” escreveu em manchete: “Como em 18”.

As reações à capa do jornal dividiram-se entre duas interpretações. Por um lado, houve quem pensasse tratar-se de uma referência ao Mundial da Rússia de 2018, que a França venceu e onde a Alemanha foi para casa de forma humilhante após a fase de grupos. Outra leitura socorre-se de uma memória mais longínqua: a da rendição alemã na Grande Guerra, em 1918.

“L’Équipe” foi acusado de mau gosto e de estar a ressuscitar fantasmas nacionalistas. No Twitter, o jornalista francês Samuel Etiene, da televisão pública France 3, desabafou: “A referência à Guerra 14-18 e aos seus milhões de mortos é forçosamente necessária após um França-Alemanha?”

Hans-Dieter Lucas, embaixador alemão em França, não atribuiu (ou não quis atribuir) o mesmo significado à opção editorial do “L’Équipe” e reagiu de forma surpreendente: “A memória do Campeonato do Mundo de 2018 continua dolorosa, mas felizmente os nossos amigos — Les Bleus — ajudaram-nos a sentir grandes emoções naquele ano. Viva a amizade franco-alemã”, escreveu no Twitter.

5. JOELHOS NO CHÃO, APUPOS NAS BANCADAS

Foram uma minoria entre as 24 equipas que disputaram a fase de grupos do Euro. Inglaterra, Escócia, País de Gales, Suíça e Bélgica não abdicaram de usar o palco mundial que é esta competição para afirmarem convicções e manifestarem-se contra o racismo, dobrando um joelho no chão antes do início do jogo.

Este gesto ‘fez escola’ após Colin Kaepernick, então jogador da liga de futebol americano, o ter feito durante a execução do hino norte-americano, em 2016, num protesto contra a violência policial sobre os afroamericanos. Desde então, tornou-se um símbolo do movimento Black Lives Matter.

Neste Euro, antes do Dinamarca-Bélgica, o belga Jason Denayer aliou o joelho no chão ao punho erguido, gesto popularizado nos Jogos Olímpicos da Cidade do México (1968), por dois atletas norte-americanos, num ato de solidariedade para com o movimento Black Power.

No Inglaterra-Escócia, ambas as equipas realizaram o protesto antes do início do jogo MIKE EGERTON / GETTY IMAGES

Amplamente executado na Premier League, primeira divisão inglesa, não causou surpresa que tanto ingleses como escoceses repetissem o protesto no jogo que os opôs. Outra partida onde houve unanimidade envolveu outra equipa britânica: o País de Gales, contra a Suíça.

O gesto não tem sido, porém, totalmente compreendido por todas as nacionalidades em presença neste Europeu. Quando a Bélgica defrontou a Rússia e os belgas se ajoelharem no relvado, as bancadas do Estádio de São Petersburgo vaiaram-nos.

6. PROTESTO SEGUIDO DE PEDIDO DE DESCULPAS

Não correu bem, e a Greenpeace acabou a pedir desculpa pela sua ação. Estava prestes a começar o Alemanha-França, em Munique, e um paraquedista irrompeu, desgovernado, no perímetro da Allianz Arena. Na tela, um apelo: “Abandonem o petróleo!”

Não era suposto que o ativista da Greenpeace aterrasse no relvado do Alemanha-França MARKUS GILLIAR / GETTY IMAGES

No Twitter, a organização ambientalista detalhou o propósito daquela iniciativa: “Ei, Volkswagen, é hora de abandonar o petróleo! Ativistas do Greenpeace protestam contra o patrocinador dos jogos na partida entre a Alemanha e a França e exigem: parem de vender carros a gasóleo e gasolina que prejudicam o ambiente!”.

Ao descer na direção do relvado, o ativista perdeu o controlo do paraquedas, passou rente à bancada e feriu dois adeptos que tiveram de ir para o hospital. Acusada de irresponsabilidade, a ONG esclareceu que o plano inicial era o ativista apenas sobrevoar o estádio e deixar cair uma bola de látex com uma mensagem.

7. BRAÇADEIRA PÕE MANUEL NEUER ‘NO BANCO DOS RÉUS’

Junho é, em todo o mundo, o Mês do Orgulho, a favor da igualdade de direitos para todas as orientações sexuais e identidades de género. Da baliza da seleção alemã, Manuel Neuer associou-se à campanha pela diversidade e contra o ódio, entrando em campo com a braçadeira de capitão tingida com as cores do arco-íris, bandeira da comunidade LGBTQI+.

A UEFA abriu uma investigação ao atleta, que depressa foi arquivada em função das inúmeras críticas que o procedimento desencadeou. Numa carta enviada à federação alemã, a UEFA lavou a face e considerou a braçadeira um símbolo coletivo a favor da diversidade e, portanto, de “uma boa causa”.

Manuel Neuer, após a vitória alemã sobre Portugal, com a faixa arco-íris no braço CHRISTIAN CHARISIUS / GETTY IMAGES

Este episódio teve um segundo capítulo. A autarquia de Munique demonstrou vontade de iluminar a Allianz Arena com as cores do arco-íris, por ocasião do jogo entre a Alemanha e a Hungria. A ação teria o intuito de “enviar um sinal de solidariedade visível” à comunidade gay da Hungria, país que recentemente introduziu legislação anti-LGBT+ e onde, dentro dos estádios, há manifestações racistas e homofóbicas.

Foi o que aconteceu na Puskás Arena, no jogo contra Portugal, onde das bancadas saíram cânticos de “Cristiano homossexual” e depois contra a França, altura em que Kylian Mbappé e Karim Benzema foram alvo de insultos racistas.

A UEFA decidiu investigar os incidentes no estádio de Budapeste, mas não autorizou a iluminação da Allianz Arena dado o seu “contexto político”. Sentindo-se no olho do furacão, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que considerara a ideia de iluminar o estádio “muito nociva e perigosa”, cancelou a sua presença no jogo de Munique, em que a Hungria bateu o pé à poderosa Alemanha (2-2).

8. RUSSOS E FINLANDESES, FRENTE A FRENTE DESTA VEZ NO FUTEBOL

À semelhança da Macedónia do Norte, também a Finlândia participa numa fase final do Euro pela primeira vez na história. Integrados no grupo B, os finlandeses disputaram dois jogos inesquecíveis: o primeiro contra a Dinamarca, tragicamente marcado pela paragem cardíaca de Christian Eriksen; o segundo, contra a Rússia, de quem a Finlândia se tornou grão-ducado no início do século XIX, só ascendendo à independência em 1917.

Para explicar o simbolismo desta partida — marcada para o Estádio de São Petersburgo —, crónicas de antecipação ao jogo recuperaram uma citação dita em 2007 pelo então ministro da Defesa da Finlândia, Jyri Häkämies, que afirmou que as três maiores ameaças à segurança do país eram: “Rússia, Rússia, Rússia”.

Quatro finlandeses para um russo, em São Petersburgo, no primeiro embate de sempre entre as duas seleções, numa fase final do Euro MAKSIM KONSTANTINOV / GETTY IMAGES

Neste Euro, o jogo entre as duas equipas resultou numa vitória da experiente Rússia — vencedora do torneio em 1960 (enquanto União Soviética) — sobre a caloira Finlândia. Mas fechadas as contas, os finlandeses terminaram em terceiro lugar no grupo e os russos em quarto, sem que nenhuma equipa tenha seguido em prova.

9. DRAGHI VS ERDOGAN, UM ITÁLIA-TURQUIA POR OUTROS MEIOS

O jogo que inaugurou o Euro, no Estádio Olímpico de Roma, teve implícito um diferendo político recente. No início de abril, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, foi das vozes mais agressivas para com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, após o caso Sofagate — a humilhação da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante uma visita Ancara, sem lugar onde se sentar num encontro com Erdogan. Então, Draghi chamou “ditador” ao chefe de Estado turco.

Este acusou o italiano de “falta de tato” e “grosseria” e responsabilizou-o por minar a relação entre os dois países. “Ao fazer esta declaração, o homem chamado Draghi infelizmente fez cair o machado sobre o nosso relacionamento exatamente no momento em que esperávamos que as relações turco-italianas chegassem a bom porto.”

“Fair-play” entre os treinadores turco, Senol Gunes, e italiano, Roberto Mancini, um gesto impossível entre Erdogan e Draghi BURAK AKBULUT / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

Apesar de se ter deslocado ao Azerbaijão para ver a sua Turquia perder por 2-0 com o País de Gales, no Estádio Olímpico de Baku, Erdogan primou pela ausência nas duas partidas que a Turquia disputou no Olímpico de Roma, contra a Itália e a Suíça.

Se tivesse ido, no jogo contra a Squadra Azurra, teria à sua espera algo incómodo para digerir, tendo em conta as suas posições políticas: o quarto árbitro do jogo foi uma mulher, a francesa Stéphanie Frappart, a primeira a participar num Europeu masculino.

Em Itália, grupos de ativistas pressionaram para que a equipa de arbitragem fosse integralmente composta por mulheres, em resposta ao tratamento sexista de Ursula von der Leyen em Ancara e, sobretudo, da saída da Turquia da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, assinada em 2011… em Istambul.

10. COVID-19 ENTRA EM CAMPO

A pandemia adiou o Euro 2020 para 2021, mas mesmo assim o campeonato — que decorre em 11 cidades de 11 países — não está livre de sobressaltos. Terminada a fase de grupos, e com a covid-19 a manifestar-se pelo continente a diferentes velocidades, subsistem dúvidas em relação aos próximos locais dos jogos, designadamente os das meias-finais e o da final, agendados para o Estado de Wembley, em Londres.

Para entrar no Estádio de Wembley, para além do bilhete para o jogo, há que verificar também o estado dos espectadores em matéria de covid-19 LEON NEAL / GETTY IMAGES

No Reino Unido, o aumento do número de contágios, que levou o Governo britânico a adiar para 19 de julho a última fase do desconfinamento, e a prevalência da variante Delta (altamente contagiosa) levaram algumas vozes a defender o afastamento das meias-finais e finais de solo britânico.

O primeiro-ministro Boris Johnson já afirmou que “a saúde pública continua a ser a prioridade”. A UEFA preocupa-se em especial com a quarentena obrigatória de dez dias que Londres aplica a quem chega ao país vindo de territórios que não estão na lista verde (como é o caso de Portugal). Já foi isso que travou a realização em Inglaterra da final da Liga dos Campeões, entre duas equipas inglesas. Acabou por ser no Porto.

A regra pode inviabilizar a entrada no Reino Unido de largas centenas de convidados da organização, entre funcionários, patrocinadores e VIP, o que pode levar a UEFA a socorrer-se de um plano B para contornar esse obstáculo. Como cidade alternativa a acolher a final, pelas menores limitações à pandemia, a opção mais falada tem sido… Budapeste, a capital da Hungria.

(FOTO PRINCIPAL Jason Denayer, futebolista belga, alia o joelho no chão ao punho erguido, num protesto antirracista antes do jogo com a Dinamarca, em Copenhaga WOLFGANG RATTAY / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 24 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Bennett já governa. E Netanyahu já quer abatê-lo

O “Governo da mudança” enfrenta desafios internos e externos e uma moção de censura no Parlamento

Naftali Bennett, com a kippah, e Benjamin Netanyahu MIRIAM ALSTER / FLASH90

Os primeiros dias do autoproclamado “Governo da mudança” — sem Benjamin Netanyahu ao leme após muitos anos — mais parecem dignos da era… Netanyahu. Terça-feira, uma marcha nacionalista desfilou, de forma provocadora, em Jerusalém Oriental, celebrando a conquista dessa parte da cidade aos árabes em 1967.

Aos gritos de “morte aos árabes”, “Maomé está morto” e “a segunda Nakba [expulsão de árabes da Palestina] está a chegar”, a marcha não evitou passar pela Porta de Damasco — principal entrada no bairro árabe da Cidade Velha —, tornando os confrontos com palestinianos inevitáveis.

Tal como aconteceu há um mês, quando a iminência de despejos de famílias árabes do bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, desencadeou uma inédita chuva de rockets sobre Israel, disparados pelo Hamas, o grupo islamita reagiu agora à marcha lançando balões incendiários a partir da Faixa de Gaza. Os artefactos provocaram 20 fogos no sul de Israel, que respondeu com bombardeamentos a Gaza — em maio durante 11 dias, esta semana durante umas horas.

Estes acontecimentos traduzem o principal desafio interno que enfrenta o novo Governo em funções desde domingo, liderado pelo nacionalista Naftali Bennett: a coexistência entre israelitas árabes e judeus. Na frente externa, o grande problema é o de sempre nos últimos anos: o programa nuclear iraniano.

“Netanyahu juntou-se à viagem vergonhosa dos seus co-conspiradores anti-Irão — Bolton, Trump e Pompeo — para o caixote do lixo da história. (…) É hora de mudar de rumo”
Javad Zarif, ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão

A saída de cena de Netanyahu significa para o Irão o desaparecimento de um entrave ao diálogo com o Ocidente. Mas se esse tipo de política é defendida pelo atual Presidente iraniano (o moderado Hassan Rohani), poderá não ser a do seu sucessor, que será eleito nas presidenciais de hoje.

Esta semana, no Parlamento israelita, Bennett não se distanciou da posição do seu antecessor, considerando “um erro” a reativação do acordo nuclear de 2015 (de que Donald Trump retirou os EUA, mas a que Joe Biden quer regressar). “Israel não permitirá que o Irão se equipe com armas nucleares”, disse o novo primeiro-ministro. Este dossiê será, porventura, o principal braço de ferro entre Israel e a Administração Biden.

“Israel não tem melhor amigo do que os EUA”
Joe Biden, Presidente norte-americano

Após entrar na Casa Branca, a 20 de janeiro, Biden demorou quase um mês para fazer o seu primeiro telefonema para Netanyahu (Trump ligara-lhe no segundo dia em funções). A demora na cortesia causou ansiedade em Israel e suspeitas de que Biden quisesse menosprezar Netanyahu, que era unha com carne com Trump.

Desta vez, o Presidente dos EUA ligou a Bennett no próprio dia em que o Parlamento o confirmou como primeiro-ministro. Num ato paralelo, o secretário de Estado americano, Antony Blinken telefonou ao seu homólogo Yair Lapid (que a meio da legislatura trocará de cargo com Bennett). “O vínculo que une os nossos povos é prova dos valores que partilhamos e de décadas de estreita cooperação” disse Biden. “Os Estados Unidos permanecem inabaláveis no seu apoio à segurança de Israel.”

“Estou convosco, amigos, na batalha diária contra este mau e perigoso Governo de esquerda, para derrubá-lo”
Benjamin Netanyahu, ex-primeiro-ministro israelita

Netanyahu demorou apenas três dias a declarar guerra à coligação de oito partidos — da extrema-direita judaica ao islamismo árabe — que se uniram para o afastar do poder. Na quarta-feira, o seu partido (Likud, direita) apresentou uma moção de censura ao Executivo, acusando-o de ter sido formado com base em “fraude e mentiras”. Será votada na próxima segunda-feira, no mesmo Parlamento que aprovou o Governo Bennett por um triz: 60 votos contra 59.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Iranianos elegem novo Presidente. Quem são os candidatos?

Os iranianos escolhem, esta sexta-feira, um novo Presidente. Apesar de não ser dos cargos mais influentes na complexa estrutura política iraniana, o chefe de Estado é o rosto que representa e defende o país fora de portas. Há quatro candidatos nos boletins de voto, nenhum assumidamente reformista

Ebrahim Raisi, um dos candidatos às presidenciais iranianas HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Desde o início do ano que tanto os Estados Unidos como Israel renovaram as respetivas lideranças. Joe Biden está na Casa Branca desde 20 de janeiro e Naftali Bennett chefia o Governo de Israel desde domingo passado. Esta sexta-feira, é o Irão que elege um novo Presidente. Só a prazo, combinadas todas as novas sensibilidades, se perceberá como vai evoluir um dos dossiês que mais tensão geram a nível internacional — o programa nuclear iraniano.

“O Presidente é considerado o representante da nação em reuniões oficiais, e fala em seu nome”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho, que se dedica aos estudos do Médio Oriente. “A diplomacia do país está nas mãos do Presidente. Assim, presidentes diferentes podem seguir abordagens diferentes em relação às políticas externa e interna.”

Biden quer revitalizar o acordo internacional assinado em 2015 (do qual Donald Trump retirou os EUA, três anos depois), que sujeitava o programa nuclear do Irão a supervisão internacional. O israelita Bennett não desafina da posição do seu antecessor, Benjamin Netanyahu, e já afirmou que reativar o acordo seria “um erro”.

Quanto ao Irão, nos últimos anos, tem tido um Presidente defensor do diálogo com o Ocidente, Hassan Rouhani. Acontece que este está de saída e quem lhe sucede pode não pensar de igual forma.

Esta sexta-feira, mais de 59 milhões de eleitores dirão em quem confiam para governar nos próximos quatro anos. Dos 592 iranianos que tentaram candidatar-se — com idades entre os 40 e os 75 anos —, apenas sete passaram no crivo do Conselho dos Guardiães (ver infografia abaixo). Sestes, três desistiram a dois dias do escrutínio. Nos boletins de voto haverá, pois, quatro nomes, nenhum deles assumidamente reformista:

EBRAHIM RAISI

É o candidato do establishment político, apoiado pelos sectores conservadores e da linha dura. É apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei e, tal como este, usa um turbante preto, indicativo de que é um sayyid, isto é descendente do Profeta Maomé. Tem 60 anos e lidera, desde 2019, o aparelho judicial, onde trabalhou durante décadas e ganhou fama de ser implacável no combate à corrupção. Em 1988, integrou uma comissão que condenou à morte milhares de prisioneiros políticos, após a guerra Irão-Iraque. Integra a Assembleia de Peritos, órgão responsável pela nomeação e exoneração do Líder Supremo. Em 2017, perdeu as presidenciais para Rohani, com 38% dos votos. E em 2019, foi alvo de sanções por parte dos Estados Unidos.

ABDOLNASER HEMMATI

Formado em Economia, tem 66 anos e é um tecnocrata moderado que ocupou o cargo de governador do banco central iraniano desde 2018. Durante este período, este antigo jornalista teve de lidar com uma forte desvalorização do rial e com as sanções norte-americanas ao sector bancário, incluindo ao próprio banco, que deprimiram o país. Serviu em posições destacadas durante as presidências do conservador Mahmud Ahmadinejad e do reformista Hassan Rouhani, o que revela capacidade para trabalhar com fações opostas. É o único não conservador a ir a votos. Poderá concentrar os votos reformistas, que, porém, estão em perda devido ao desencanto com a atual administração Rohani e aos problemas económicos agravados pela reintrodução de sanções ao país.

MOHSEN REZAEI

Candidata-se à presidência pela quarta vez — concorreu em 2005, 2009 e 2013, e perdeu sempre. Em 2000 candidatou-se a um lugar no Parlamento e também não conseguiu ser eleito. Tem 66 anos e uma carreira militar de décadas. Entre 1981 e 1997, foi comandante-chefe dos Guardas da Revolução. Liderou estas forças durante a guerra Irão-Iraque. Desde 1997, é secretário do Conselho de Discernimento, que arbitra disputas legislativas entre o Parlamento e o Conselho de Guardiães. É formado em Economia, pela Universidade de Teerão.

AMIR-HOSSEIN GHAZIZADEH HASHEMI

É médico de profissão, na especialidade de otorrinolaringologia. É deputado desde 2008, de linha ultraconservadora. É primeiro vice-presidente do Parlamento. Tem posições extremadas em relação ao dossiê nuclear, tendo já defendido a saída do Irão do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Aos 50 anos, é o mais novo dos quatro candidatos. Prometeu formar um Governo jovem para guiar a Revolução numa nova fase.

Um dos quatro homens passará a ser o rosto o Irão fora de portas, ainda que a presidência esteja longe de ser a instituição mais influente na estrutura política da República Islâmica.

“O Presidente é o braço executivo da liderança e o representante do povo a nível executivo”, diz o professor Eslami. “Conforme os princípios religiosos, o governo da sociedade islâmica é da responsabilidade do jurista (Velayat-e Faqih) que foi nomeado governante da sociedade islâmica”, ou seja, o Líder Supremo ayatollah Ali Khamenei.

“Mas isso não contradiz o facto de o jurista também ter assistentes e conselheiros para fazer avançar a sociedade segundo as regras e leis religiosas. A Constituição prevê três ramos, um dos quais o executivo, e uma vez que o seu chefe é eleito diretamente pelo povo e muitos assuntos executivos são-lhe confiados, o cargo também é considerado liderança. Pode dizer-se que o Presidente é o primeiro vice do líder, responsável pelos assuntos executivos. Ele responde perante o líder.”

No topo da pirâmide do poder está o Líder Supremo. Dele emanam múltiplos centros de poder, compostos por instituições ora nomeadas ora eleitas por sufrágio universal.

Enquanto chefe de Governo, o Presidente tem poderes limitados. Entre as suas obrigações está o dever de nomear os membros do gabinete e fazer uma proposta de orçamento, que depois devem ser aprovados no Parlamento. É eleito para um máximo de dois mandatos de quatro anos.

“Enfatizar a importância da presidência não significa subestimar outras instituições, como os poderes judiciário e legislativo”, conclui o professor Eslami. “Mas como o Presidente é eleito por voto popular direto, também tem um lugar especial na Constituição.” Ainda que quem defina os parâmetros das políticas a seguir seja o Líder Supremo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

O efeito Bin Laden no combate à pandemia

A taxa de vacinação contra a covid-19 no Paquistão é muito baixa. Para tal contribui a escassez de doses, mas também um sentimento antiocidental em torno das campanhas de inoculação. A operação militar norte-americana que identificou e executou Osama bin Laden numa cidade paquistanesa, há dez anos, dá algumas respostas…

Campanha sobre cuidados a ter durante a pandemia, desenvolvida pelo Crescente Vermelho do Paquistão LINKEDIN PAKISTAN RED CRESCENT

A corrida contra o tempo implícita nas campanhas de vacinação contra a covid-19 que decorrem por todo o mundo tem obstáculos acrescidos no Paquistão. Neste país de mais de 225 milhões de pessoas, a resistência às vacinas é uma realidade, alimentada por rumores que atribuem a origem da pandemia a uma conspiração estrangeira e encaram as vacinas como venenos.

“Há uma resistência popular às vacinas, especialmente nas áreas rurais”, diz ao Expresso Jassim Taqui, analista político paquistanês. “As pessoas acreditam numa teoria da conspiração que sustenta que as vacinas, tanto as chinesas como as ocidentais, visam esterilizar os muçulmanos para que a sua população seja sistematicamente limitada ou para alterar a sua genética, transformando as novas gerações em animais semelhantes aos macacos.”

Estas crenças levam muitos paquistaneses a viver a pandemia em negação. Mas algo mais contribui fortemente para esse ceticismo: o efeito Osama bin Laden.

A 2 de maio de 2011, o então líder da Al-Qaeda foi morto durante um ataque de forças especiais norte-americanas à casa onde vivia, na cidade paquistanesa de Abbottabad. Para localizar o terrorista, a CIA organizara, previamente, uma falsa campanha de vacinação contra a hepatite B na localidade onde se suspeitava que Bin Laden estivesse escondido. O objetivo era tão somente recolher amostras de ADN de crianças que se suspeitava serem próximas do homem mais procurado do mundo.

“A falsa campanha de vacinação que levou à morte de Osama bin Laden desempenhou um papel fundamental na resistência às vacinas ocidentais no Paquistão e, em geral, a todas as outras vacinas. Mesmo pessoas instruídas questionam a eficácia das vacinas, uma vez que não há indicações ou dados que sugiram que a inoculação garante a imunidade ou que os vacinados não voltem a ser atacados pela covid-19”, explica Jassim Taqui.

Foi o caso do primeiro-ministro Imran Khan e do Presidente Arif Alvi, a quem o coronavírus foi diagnosticado poucos dias após receberem a primeira dose da vacina. “As pessoas acreditam que os países que produziram essas vacinas são motivados, em parceria com a Organização Mundial do Comércio [OMC], por benefícios monetários enormes provenientes da comercialização dessas vacinas e não pelo combate à pandemia.”

Retaliação sobre a Save the Children

Descoberto o embuste em redor da operação de captura de Bin Laden, o Governo paquistanês expulsou do país a organização Save the Children, apesar de esta ONG negar que o médico paquistanês que orquestrou a falsa vacinação trabalhasse para si.

Paralelamente, sectores extremistas da sociedade paquistanesa cavalgaram a onda anti-vacinas, acusaram os voluntários ao serviço das campanhas de imunização de serem agentes da CIA e incentivaram a um sentimento antiocidental.

Em junho de 2012, a liderança dos talibãs paquistaneses emitiu um decreto religioso (fatwa) contra o programa de vacinação do Governo. Desde então, tornaram-se frequentes ataques contra equipas de vacinação, que já levaram à morte de dezenas de pessoas, a maioria pessoal de saúde do sexo feminino e agentes da segurança que trabalhavam no apoio às ações de vacinação.

Tudo contribui para que, dez anos depois da falsa campanha que detetou Bin Laden, os paquistaneses não esqueçam o estratagema e desconfiem da boa vontade de quem lhes bate à porta com o intuito de injetarem-lhes um líquido no corpo.

“Penso que [o episódio Bin Laden] prejudicou a confiança nas vacinas não só no Paquistão, mas em todo o mundo, onde existe desconfiança entre populações e governos, especialmente em zonas de conflito”, diz ao Expresso o epidemiologista paquistanês Rana Jawad Asghar, professor na Universidade de Nebraska (EUA).

Consequências também nos EUA

A 6 de janeiro de 2013, vários reitores de escolas de saúde pública dos EUA escreveram uma carta ao então Presidente Barack Obama comparando o uso de campanhas de vacinação pela CIA à infiltração, décadas antes, de espiões americanos na Peace Corps, agência federal dos EUA, criada em 1961 pelo Presidente John F. Kennedy, para ajudar os países em desenvolvimento.

Cerca de meio ano depois, o então diretor da CIA, John Brennan, proibiu o uso de programas de vacinação nas operações de espionagem. Mas pelo menos no Paquistão, o mal estava feito.

Em finais de janeiro passado, sensivelmente na mesma altura em que foram confirmados os primeiros casos de covid-19 no Paquistão, uma sondagem da Gallup Paquistão concluiu que 49% dos inquiridos não tencionavam tomar a vacina. E dos 46% que aceitavam, apenas 4% preferiam uma vacina produzida na Europa ou EUA.

Foi em contexto de grande ceticismo em relação à covid-19 que, a 3 de fevereiro, arrancou a campanha de vacinação no Paquistão. Na véspera, chegara ao país um carregamento de 500 mil doses da vacina chinesa da Sinopharm, uma gota nas necessidades do país, mas que permitiu iniciar o processo.

“De início, as autoridades sanitárias confiaram totalmente nos chineses, pensando que receberiam as vacinas de graça. Isso não aconteceu. Os chineses exigem dinheiro, embora afirmem que deram ao Paquistão meio milhão de vacinas como presente”, diz Jassim Taqui.

“Depois, o Governo decidiu comprar vacinas a empresas russas e britânicas. Atualmente, o Paquistão criou um laboratório conjunto com a China para encher localmente as vacinas [da chinesa CanSinoBio, de uma dose apenas]. E paga aos chineses por isso.”

4,84

em cada 100 paquistaneses já tomaram a vacina (até 13 de junho). Em Portugal, esse rácio é de 67,09

Rana Jawad Asghar identifica três razões para a baixa taxa de vacinação. “Antes de mais, o Paquistão teve problemas com o fornecimento de vacinas. Isso, por sua vez, obrigou o Governo a não convidar ativamente as pessoas a vacinarem-se, pois temia não poder atender à procura se muitas pessoas o solicitassem. Em segundo lugar, a desinformação sobre vacinas é galopante não apenas no Paquistão, mas em todo o mundo. A falta de informação nas áreas pobres e rurais pode ser uma terceira causa, menos importante.”

No Paquistão, as dificuldades em torno da vacinação têm sido nefastas para o combate contra outras doenças, para além da covid-19. Dadas como erradicadas em grande parte do mundo, a poliomielite e a febre tifoide continuam ativas no país.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui