Histórias de imigrantes no Porto. “É muita ingenuidade nossa achar que é um papel que determina o direito a uma vida digna”

No centro do Porto, uma mostra fotográfica a céu aberto alerta para dificuldades na integração sentidas por imigrantes residentes na cidade. “Identidades do Porto”, da documentarista luso-brasileira Sabrina Lima, dá voz a quem anseia por deixar de ser apontado pela sua origem. “Quando é que os portugueses me vão considerar um deles?”, questiona o norte-americano Foster, um dos retratados

Sabrina Lima, junto à exposição “Identidades do Porto”, que está patente até 25 de junho, em frente à estação da Trindade FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Pode passar despercebida a quem passa de forma mais apressada, mas quem nela repara não resiste a observá-la demoradamente. De frente para a estação de metro da Trindade, não muito longe do edifício da Câmara Municipal do Porto, uma exposição composta por oito retratos a preto e branco colados num muro de granito dão cara e voz a outros tantos imigrantes residentes na cidade.

Fotos e mensagens convidam os transeuntes a parar e a colocar-se no lugar de quem aceitou posar e partilhar um pouco da sua história em curtas frases impressas nas fotos.

“O objetivo é levar os portugueses a perceberem que essas pessoas [nascidas na Ucrânia, Bangladesh, Cuba, Síria, Angola, Brasil, Venezuela e Estados Unidos] fazem parte da sociedade onde vivem, independentemente do país de onde vêm”, diz ao Expresso a documentarista Sabrina Lima, autora do projeto a que chamou “Identidades do Porto”.

Com esta iniciativa, a luso-brasileira procura também incentivar outros imigrantes que se revejam naqueles testemunhos a partilharem experiências passadas ao longo do seu percurso de integração.

“Eu sempre sou visto como o americano turista que fala português do Brasil, as pessoas não entendem muito bem o que estou fazendo aqui. Não sei quando vamos ultrapassar estes rótulos. Quando vou poder dizer que faço parte da sociedade portuguesa? Quando os portugueses vão me considerar um deles?”

Foster Hodge,
 31 anos, nasceu nos Estados Unidos, vive em Portugal há 1 ano

“Eu me formei como adulta em Portugal, o meu pensamento intelectual é europeu, mas o meu sentir é venezuelano. Acho que o meu pai compreende isto porque ele próprio viveu 30 anos na Venezuela, mas sentiu-se sempre português.”

Roxana Suárez, 
35 anos, nasceu na Venezuela, vive em Portugal há 20 anos

Os oito retratados são pessoas com quem a autora se cruza nas suas rotinas diárias ou procurou deliberadamente durante passeios pela Invicta. “Eu procurei essa representatividade, gente de todos os cantos. Tem um pouco de tudo”, continua Sabrina. “São pessoas que fazem parte da cidade. Uma cidade não é só um conjunto de prédios e de monumentos, é também as pessoas que a habitam, e que não são só nacionais, são de diversas nacionalidades e tentam fazer parte da sociedade”.

Os oito retratados são oriundos da Ucrânia, Bangladesh, Cuba, Síria, Angola, Brasil, Venezuela e Estados Unidos FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Nascida no Rio de Janeiro, em 1981, Sabrina Lima vive no Porto desde fevereiro de 2017. Ela própria tem uma história de emigração para partilhar. Neta de emigrantes portugueses, oriundos de Gondomar que rumaram para o Brasil no pós-guerra, cresceu com o conceito de migração muito presente na sua vida.

“Eu cresci a ouvir a minha avó a contar histórias de quando trabalhava no mercado do Bolhão. Cresci entre cartas trocadas entre os meus avós e os primos, entre Portugal e o Brasil.”

O privilégio de ser branca, com passaporte europeu

Quando, há 15 anos, se tornou emigrante, começando por viver em Barcelona, a artista começou a inquietar-se. “O meu principal incómodo era perceber os privilégios que eu tinha — e que tenho — por ser branca, ter ascendência europeia e um passaporte que diz União Europeia”, assume.

“É muita ingenuidade nossa achar que é um papel, um documento, uma fronteira física que determina o que sentimos e o direito a uma vida digna. Somos todos humanos.”

“Sou Engenheiro Agrónomo e aqui não consigo trabalho com o meu diploma. No final vim trabalhar num restaurante. Tem que ser mais fácil. Pediram uma declaração do curso que eu fiz na Síria. Se a minha universidade funcionasse, eu conseguiria, mas ela está destruída, é impossível.”

Sherbel Jabro, 
41 anos, nasceu na Síria, vive em Portugal há 9 anos

“Quando vim para Portugal, eu sabia que não iam me reconhecer como brasileira. Acham que sou chinesa, turista ou de Macau. Quando digo que sou descendente de japoneses, parece que valorizam mais, e essa categorização me incomoda muito. É tudo gente, é tudo gente.”

Patrícia Nakamura, 
40 anos, nasceu no Brasil e vive em Portugal há 4 anos

A documentarista luso-brasileira, licenciada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com estudos desenvolvidos na área do Cinema, Fotografia e Documentário Interativo em Barcelona e Etnografia Urbana na Universidade do Porto, considera o Porto “uma cidade muito acolhedora. Mas essa é a minha experiência, enquanto uma pessoa branca e europeia”, acrescenta.

As pessoas fotografadas são imigrantes residentes na cidade do Porto FERNANDO VELUDO / NFACTOS

“Portugal tem uma coisa muito bonita que é o voluntariado. Há muitas associações que trabalham pelo acolhimento dos imigrantes, isso é muito importante. Mas temos de sair desse olhar da caridade e pensar em políticas públicas de verdade. Entre os países da União Europeia, Portugal é dos mais abertos e que têm mais boa vontade.”

“Eu me sinto próxima a Portugal por causa da língua portuguesa. Mas sou angolana e não espero mudar o meu sotaque.”

Jenice Rogério, 
36 anos, nasceu em Angola e vive em Portugal há 8 anos

“Passei dois meses de férias no meu país. Nas primeiras duas, três semanas, senti falta de Portugal. Depois, quando voltei, senti falta de Bangladesh.”

Fahim Ahmed, 
32 anos, nasceu em Bangladesh e vive em Portugal há 11 anos

“Identidades do Porto” é um projeto iniciado em 2017, com o apoio do Programa de Arte Urbana, da Câmara Municipal do Porto, que agora Sabrina enriqueceu com novos testemunhos. “Uma diferença que sinto de 2017 para cá é que agora as pessoas estão muito mais abertas a falarem sobre essa questão. Ao mesmo tempo que vivemos um momento perigoso com o crescimento da extrema-direita no mundo, alguns assuntos estão a ser mais falados, mais expostos. Eu senti, nos entrevistados, mais vontade de participar e de partilhar.”

A mostra “Identidades do Porto” está instalada em frente à estação de metro da Trindade FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Hoje, a imigração tornou-se praticamente o principal tema de trabalho de Sabrina Lima, que integra o coletivo Living City Porto. “Eu acredito que o audiovisual tem um grande potencial de sensibilização da sociedade. Um dos meus objetivos com este projeto é criar novas narrativas que ultrapassem o modelo predominante ‘números-fronteiras-segurança nacional’ quando se fala sobre migração. É humanizar as pessoas e as suas histórias.”

O seu próximo projeto poderá mesmo ter como matéria-prima um episódio que a documentarista viveu no momento em que a pandemia de covid-19 tomava conta do mundo.

Sabrina tinha ido ao Brasil fazer uma formação de dois meses e na véspera de regressar a Portugal, num voo que faria escala em Marrocos, as fronteiras começaram a fechar. Acabou por conseguir embarcar num voo direto entre Portugal e o Brasil, mas, após contactar a embaixada portuguesa em Rabat, ficou a saber que, se tivesse necessitado, haveria um voo de repatriamento para os portugueses retidos em Marrocos.

“É inevitável pensar nos milhares de africanos que se veem obrigados a arriscar a vida em travessias precárias para fazer a mesma rota porque calhou terem nascido em países periféricos. É uma coisa que me dói na alma. Não consigo achar normal que se valorize mais ou menos uma vida em função da nacionalidade.”

Sabrina Lima integra o coletivo Living City Porto FERNANDO VELUDO / NFACTOS

O Expresso desafia Sabrina Lima a colocar-se na pele de um dos seus fotografados e a partilhar a sua mensagem.

“A história da humanidade passa pela migração. A vida toda o ser humano migrou pelos mais diversos motivos. Por que não se quer acolher e integrar? Por que um documento, um pedaço de papel que diz em que país a pessoa nasceu, determina quem tem direito ou não a uma vida digna? Somos todos humanos e temos muito mais semelhanças do que diferenças.”

Sabrina Lima, 39 anos, nasceu no Brasil e vive em Portugal há 4 anos

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

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