Um novo Presidente sem vontade de falar com o Ocidente

Apontado como sucessor do Líder Supremo, o conservador Ebrahim Raisi herda um país em crise económica. A saída está para leste

Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Aos 42 anos de vida, a República Islâmica do Irão parece necessitada de soluções que o pensamento do seu fundador não contemplou. Nos anos que se seguiram à Revolução de 1979, uma frase de Ruhollah Khomeini desiludiu, em especial, os trabalhadores do complexo petroquímico de Azmayesh, cujas greves tinham sido cruciais para o desgaste do xá e subsequente ascensão ao poder dos ayatollahs. “Não fizemos uma revolução para termos melões baratos, fizemo-la pelo Islão”, disse Khomeini.

Hoje, é o preço dos bens de primeira necessidade — seja melão, pão ou gasolina — que mais preocupa os iranianos. Protestos recentes contra a escassez de água potável em cidades da província de Khuzestan (a oeste, junto ao Iraque) foram reprimidos com violência. O petróleo é abundante na região, mas essa riqueza não beneficia quem ali vive.

Sanções não explicam tudo

A política de “máxima pressão” de Donald Trump, que levou à retoma de sanções, colocou o Irão — e mais de 80 milhões de habitantes — à beira do colapso económico. “Com as sanções, que impedem o comércio, as exportações de hidrocarbonetos e o acesso aos mercados financeiros, a economia do país caminha a passos largos para uma situação preocupante, com sinais de grande inquietação no seio da população”, vaticina ao Expresso João Henriques, investigador da Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Observatório do Mundo Islâmico. A forte desvalorização da moeda iraniana, o rial, deixou a fasquia da classe média abaixo de 50% da população. Mas as sanções não explicam tudo…

“Há um novo discurso revolucionário que atribui as principais causas da crise no país à corrupção e à má gestão”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos estudos do Médio Oriente na Universidade do Minho. “Ao considerar uma raiz interna para a maioria dos problemas económicos, uma campanha anticorrupção abrangente requer uma cooperação forte e consistente entre os poderes legislativo, judicial e executivo. Isso será possível, mais do que nunca, com Ebrahim Raisi”. O novo Presidente toma posse quinta-feira.

Há um novo discurso revolucionário que atribui
as principais causas da crise à má gestão e à corrupção

Raisi, de 60 anos, trabalhou no sistema judicial durante 40 e partilha uma visão conservadora com as principais instituições de poder. “É um clérigo há muito apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, Ali Khamenei [82 anos]”, diz João Henriques.

Aliança entre sancionados

“Embora o principal foco do futuro Governo sejam as políticas internas — reforma do regime tributário, renascimento de indústrias falidas, investimento na construção e na agricultura industrial e desenvolvimento de zonas industriais para evitar a exportação de matérias-primas —, os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste”, diz Eslami.

“Será uma mudança significativa em relação à era de Hassan Rohani.” O Presidente cessante, moderado e reformista, defendeu o diálogo com o Ocidente. “Embora a relação com Estados Unidos e União Europeia seja importante, com Raisi será secundária. China e Rússia serão as prioridades.”

Raisi “já deixou patente não ver nas relações com o Ocidente uma prioridade do seu consulado presidencial”, acrescenta Henriques. Desde janeiro de 2016, quando o Presidente chinês, Xi Jinping, visitou Teerão, o Irão tornou-se grande beneficiário da Nova Rota da Seda. Igualmente, é um corredor fundamental para os países da Ásia Central — que abrigam um dos maiores reservatórios energéticos do mundo — acederem a águas internacionais.

Os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste

Com os Estados Unidos a ameaçarem penalizar qualquer país que faça negócios com o Irão, este tenderá a voltar-se também para outras nações visadas por Washington, como Cuba, Bielorrússia ou Síria. Nos últimos anos, esta estratégia tem acontecido com maior visibilidade com a Venezuela, onde aportaram vários petroleiros com crude iraniano. A relação pode evoluir para “um plano mais ambicioso, que pode ter lugar a longo prazo e que passa pelo estabelecimento de uma base militar ou pelo início de um grupo paramilitar nas Caraíbas”, refere Eslami.

Princípios intocáveis

Ebrahim Raisi foi eleito a 18 de junho, com quase 18 milhões de votos (62%), num escrutínio em que participaram apenas 49% dos eleitores. No Irão, a eleição de um Presidente não acarreta mudanças na política externa. É o Líder Supremo quem define as linhas estratégicas do país; ao Presidente, a margem que resta é escolher que caminho seguir para concretizá-las.

“A política externa do Irão é baseada em princípios revolucionários, que incluem a preservação da integridade territorial, a autossuficiência, o antissionismo, o anti-imperialismo e a defesa do Islão”, enumera o professor iraniano. O apoio a milícias no Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano, Síria e Iémen insere-se num imperativo estratégico de neutralização de ameaças estrangeiras, incluindo militares.

Acordo nuclear: que futuro?

Assim sendo, que empenho colocará Raisi no diálogo internacional sobre o programa nuclear? “Na sua primeira declaração pública após ser eleito, Raisi instou a Administração Biden a voltar ao acordo nuclear, de 2015”, recorda o investigador português.

“O Irão não vai parar com as conversações sobre o nuclear”, acrescenta Eslami, mas não aceitará “participar numa negociação longa e erosiva”. Teerão diz que foi Washington a abandonar o acordo, logo terá de dar provas de boa-fé e levantar as sanções. “Embora o diálogo continue, uma nova ronda de negociações sobre o programa iraniano não parece possível”, conclui. “O programa de mísseis balísticos, que é a base da ‘legítima defesa’ e da ‘dissuasão convencional’, é a ‘linha vermelha’ do Irão” — qualquer que seja o Presidente em funções.

PERFIL DE EBRAHIM RAISI

O oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão partilha com o Líder Supremo a origem (ambos nasceram na cidade religiosa de Mashhad) e o estatuto (ambos reclamam serem descendentes diretos do profeta Maomé, daí usarem o turbante negro de sayyed). Nascido em 1960, Ebrahim Raisi é um clérigo conservador que começou a trabalhar no sistema judicial aos 20 anos, como promotor de justiça em Karaj. O seu nome ficou ligado ao chamado “comité da morte”, composto por funcionários judiciais e agentes secretos, responsável pela execução de milhares de presos políticos, em 1988. Liderou o sistema judicial desde 2019, período em que ocorreram duas execuções que geraram protestos internacionais: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam. Em 2017, Raisi debutou no primeiro plano da política: obteve 38% nas presidenciais, que perdeu para o Hassan Rohani, a quem agora sucede.

(FOTO Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2021

Um golpe a seguir aos protestos. E agora?

Teme-se que o farol democrático da Primavera Árabe esteja de regresso aos dias do regime de um homem só

1 O que levou os tunisinos às ruas?

A negligência das autoridades em relação à covid-19. Com um fraco ritmo de vacinação, o país regista a mais alta taxa de mortalidade do mundo árabe. Mas este descontentamento esconde frustrações maiores. “A questão social, que esteve na base da revolução democrática de 2011, não foi resolvida”, diz ao Expresso o analista político Álvaro de Vasconcelos. “Os problemas sociais agravaram–se, o desemprego aumentou, sobretudo entre os jovens, e instalou-se um enorme desagrado em relação aos partidos políticos.”

2 Por que motivo o Presidente é acusado de golpe?

Apoiando-se na contestação popular, o Presidente Kais Saied, professor de Direito Constitucional, eleito a 13 de outubro de 2019 com um discurso populista e antipartidos, atuou ao estilo de um ditador: demitiu o primeiro-ministro, suspendeu o Parlamento, retirou a imunidade aos deputados, nomeou-se procurador-geral da República e decretou o estado de emergência durante 30 dias. As medidas foram tomadas dia 25, invocando a Constituição e o descontentamento popular. “Podemos dizer que é um golpe constitucional”, diz Vasconcelos.

3 Como reagiram os militares?

Colocaram-se ao lado do chefe de Estado. “Em 2011, os militares não intervieram para apoiar Ben Ali [ditador contestado]. Agora surgiram ao lado de Kais Saied.” Uma característica do processo tunisino, em contraponto ao que aconteceu, por exemplo, no Egito, foi a não interferência política da instituição militar. “Houve uma mudança que não pressagia nada de bom, embora os militares tenham respeito pelas questões constitucionais, não sejam muito politizados e não tenham grandes interesses económicos, como os egípcios.”

4 Porque há receios a nível internacional?

A Tunísia foi o único país da Primavera Árabe a enveredar pela via democrática, inspirada na experiência portuguesa. “A esperança democrática no mundo árabe pode estar a desaparecer”, diz o investigador, que recorda que a Tunísia ainda não criou um Tribunal Constitucional. “Era a instituição que faltava. E, portanto, não há quem diga quais são os limites da ação do Presidente.” Álvaro Vasconcelos defende “uma pressão da UE e dos EUA”, que dão ajuda económica fundamental e “têm influência real no país”. “O sistema democrático tunisino não irá encontrar apoio na região.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Como se explica a instabilidade persistente neste país caribenho?

Catástrofes naturais, golpes de Estado e pobreza têm marcado os últimos 100 anos do Haiti

Um pedido de ajuda em Port-au-Prince, a 19 de janeiro de 2010, uma semana após um sismo de 7.0 de magnitude. “Precisamos de água, comida, lâmpadas e ciberturas de lástico”, lê-se MASS COMMUNICATION SPECIALIST 2ND CLASS MICHAEL C. BARTON, U.S. NAVY / RAWPIXEL

1 Quem matou o Presidente Jovenel Moïse?

A investigação ao assassínio do chefe de Estado de 53 anos, na madrugada de 7 de julho, implicou diretamente 28 pessoas: 26 colombianos e dois americano-haitianos — apenas cinco colombianos estão por capturar. Foram presos ainda o chefe da segurança presidencial, Dimitri Hérard, e um terceiro americano, Christian Emmanuel Sanon, médico de 63 anos a viver na Florida, suspeito de ser o cérebro da operação, e o chefe da segurança presidencial. Chegara ao Haiti em junho, num avião privado e na companhia de mercenários. Teria como objetivo tomar a presidência. Moïse, chefe de Estado desde 2017, foi morto a tiro na sua residência particular, em Port-au-Prince. Impopular e autoritário, manifestações de rua pediam a sua demissão.

2 Quão vulnerável é o Haiti a golpes políticos?

Muito. A segunda metade do século XX é fértil em exemplos. Em 1957, o político e médico François Duvalier (conhecido como ‘Papa Doc’) foi eleito Presidente na sequência de um golpe militar. Praticante de vudu (culto animista reconhecido como religião em 2003), declarou-se chefe de Estado vitalício, apoiado na milícia Tonton Macoute. Morreu em 1971 e sucedeu-lhe o filho Jean-Claude Duvalier (‘Baby Doc’), de 19 anos, que acabaria contestado nas ruas e exilado em França. Seguiram-se golpes militares até às eleições de 1990, as primeiras livres e pacíficas, que colocaram no poder Jean-Bertrand Aristide. Este ex-padre católico salesiano, ligado à teologia da libertação, sairia passados sete meses, derrubado por um golpe, e voltaria mais tarde por duas vezes.

3 Como têm reagido os EUA à instabilidade no país?

Washington está a analisar um pedido do primeiro-ministro interino, Claude Joseph, para enviar tropas que ajudem a proteger infraestruturas, como o aeroporto. Não seria inédito. Em 1915, os EUA invadiram o Haiti, que levava quase 100 anos de independência, para “proteger os interesses americanos e estrangeiros”. As tropas retiraram-se em 1934, mas os EUA mantiveram controlo fiscal sobre o país até 1947. Outra intervenção aconteceu em 1994, com Bill Clinton na Casa Branca e uma junta militar sanguinária em Port-au-Prince. A chegada ao país de tropas dos EUA (Operação Democracia Sustentada) foi saudada nas ruas.

4 Que outras fragilidades tem o Haiti?

É o país mais pobre do hemisfério ocidental e está exposto a ciclones, tufões e chuvas. Em 2008, viveu a época de furacões mais trágica: 8% da população foi afetada, 70% das plantações destruídas e houve quase 800 mortos. A exposição a catástrofes naturais decorre da localização do país, nas Caraíbas, e é acentuada pela intervenção humana. Exemplo: com o petróleo inacessível a muitos, há grande procura de carvão proveniente de árvores queimadas; em épocas de chuva forte, encostas despidas de vegetação tornam-se cascatas. A 12 de janeiro de 2010, o Haiti foi atingido pela segunda pior catástrofe natural mundial dos últimos 40 anos — só superada pelo tsunami no oceano Índico de 2004. Um sismo de 7.0 fez mais de 100 mil mortos (há quem diga 300 mil), reativou doenças erradicadas, destruiu casas e infraestruturas e submergiu o país numa crise humanitária.

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Vacinação desigual atrasa alívio

“Oito semanas com o dinheiro congelado. Ou enviam as vacinas, ou devolvem-nos o dinheiro.” O Presidente da Venezuela é dos mais inconformadas em relação ao processo de vacinação no mundo. Caracas entregou à OMS o equivalente a €100 milhões para beneficiar do mecanismo Covax de distribuição de vacinas, mas ainda não recebeu qualquer dose.

As sanções internacionais à Venezuela podem estar a agravar o problema, mas o protesto de Nicolás Maduro encerra uma preocupação universal: enquanto todos os países não controlarem a pandemia, o mundo não respirará de alívio. A campanha decorre de forma muito desigual. Enquanto países como a Venezuela têm menos de 10% da população vacinada, o Reino Unido (com mais de 70%) deu por concluída a fase das restrições e entregou a responsabilidade aos cidadãos. “É preciso aprender a conviver com o vírus”, defendeu o primeiro-ministro, Boris Johnson.

Um desafio à vacinação tem sido a metamorfose do SARS-CoV-2. Espanha, onde a variante Delta corresponde a 35% dos casos, alarma-se com o seu carácter altamente contagioso; outras latitudes já se confrontam com a nova estirpe, Lambda. Detetada pela primeira vez no Peru, onde predomina, já foi identificada nos Estados Unidos, Europa (dois casos em Portugal) e Austrália.

A braços com o forte aumento de infeções da variante Delta, esta semana a Austrália cancelou, pelo segundo ano consecutivo, os grandes prémios de Fórmula 1 e Moto GP, marcados para o outono. Ciente de que a batalha se trava fora de portas, enviou ontem para o vizinho Timor-Leste mais 40 mil doses da vacina. A prática tem beneficiado outras nações da região, onde a pandemia continua a ferro e fogo. Esta semana, o Japão declarou o estado de emergência em Tóquio até 22 de agosto. Vigorará, portanto, durante os Jogos Olímpicos.

Texto escrito com Ana França.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Americanos estão de saída. Teme-se reinício da guerra

Crescem as áreas controladas pelos talibãs. Receando uma insurgência, há cada vez mais civis a pegar em armas

Uma criança afegã caminha junto a um militar norte-americano, na província de Helmand REECE LODDER, U.S. MARINE CORPS / RAWPIXEL

A guerra americana no Afeganistão tem tantos anos como o 11 de Setembro. Foi sobre este país da Ásia Central que os Estados Unidos retaliaram após o pior atentado sofrido em solo próprio. O Afeganistão era governado pelos talibãs, que abrigavam a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Quase 20 anos passados, os militares americanos estão de volta a casa. Para trás deixam um país cada vez mais nas mãos dos talibãs e, de novo, à beira da guerra.

“A verdade é que hoje a sobrevivência, segurança e unidade do Afeganistão estão em perigo”, alertou na quarta-feira Abdullah Abdullah, que lidera o Alto-Conselho para a Reconciliação Nacional no Afeganistão. “Com a retirada das tropas estrangeiras, a guerra escalou. Infelizmente, os talibãs tiraram partido disso. A saída das tropas naturalmente deixou um vácuo nalgumas áreas.”

A percentagem de território na posse dos talibãs não é unânime, mas é consensual a perceção de que os domínios islamitas estão a crescer para norte dos tradicionais bastiões de Helmand e Kandahar, a sul.

“Mesmo com as forças internacionais no terreno, os talibãs vinham há muitos anos aumentando a sua influência e controlo de vastas regiões de território”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008. “Claro que do ponto de vista militar, a saída dos contingentes internacionais facilita-lhes a vida. Terão de fazer face a um inimigo mais reduzido e com menor capacidade militar.”

Esta semana, o comandante das forças dos EUA no Afeganistão expressou grande preocupação em relação ao futuro imediato do país. “A guerra civil é um caminho que podemos visualizar”, alertou o general Austin S. Miller. “A situação de segurança não é boa.”

Notícias dão conta da reorganização de grupos de antigos mujahedin (que combateram a ocupação soviética e, depois, o regime talibã). Igualmente, sobretudo em áreas habitadas por minorias étnicas, como os hazaras, estão a ser formadas milícias civis contra os talibãs. A perspetiva de grupos armados, organizados com base em lealdades tribais e em torno de “senhores da guerra”, voltarem a pegar em armas para repelir uma crescente insurgência talibã é um filme de terror que o Afeganistão já conhece.

Alemães já estão em casa

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estabeleceu o dia 11 de setembro como data final (e simbólica) para a saída das tropas do Afeganistão. A operação deverá ser concluída mais cedo, previsivelmente dentro de dias. Os alemães, que correspondiam ao segundo maior contingente estrangeiro, deixaram o Afeganistão terça-feira.

Quase duas décadas de guerra consagraram o Afeganistão como um atoleiro, onde chegaram a servir em simultâneo 150 mil norte-americanos e onde morreram cerca de 2500. “Falharam muitas coisas” na estratégia americana, analisa Carlos Branco. “Em primeiro, faltou interesse num processo de peace building [construção da paz] logo após a derrota dos talibãs. Os EUA estavam apenas interessados em capturar o Bin Laden e o seu envolvimento inseriu-se no âmbito do contraterrorismo. Isso deu tempo aos talibãs para sarar feridas e recomporem-se.”

“Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável”, diz o major-general Carlos Branco

“Quando a natureza do envolvimento internacional alterou-se e evoluiu para a contrassubversão, Washington assumiu que o conflito ia ser resolvido militarmente, nunca se empenhando a sério em encontrar uma solução política. Essa constatação ocorreu demasiado tarde e de forma errada, para resolver o seu problema com os talibãs, mas não o dos seus aliados afegãos, que terão de viver no Afeganistão lado a lado com os talibãs. O diálogo intra-afegão, que devia estar há anos no topo da agenda, é ainda hoje uma miragem.”

A 29 de fevereiro de 2020, o acordo de paz celebrado entre a Administração Trump e os talibãs abriu caminho ao diálogo intra-afegão que decorre em Doha, capital do Qatar, sem o mínimo progresso. Para o Governo de Cabul, a prioridade é obter um cessar-fogo, mas para os talibãs controlar mais territórios significa ganhos políticos.

“Os Estados Unidos vão retirar-se sem uma solução política para o país”, conclui o militar. “Não sabemos como vai ser o próximo governo e a fórmula política para acomodar a futura correlação de forças. Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável e que há que contar com eles, seja qual for a solução política. Pensou-se ser possível um Afeganistão sem talibãs. Não só são uma força política importante como não vão desaparecer. É incompreensível que nunca tenha havido uma política orientada para os pashtuns, a etnia [maioritária no país] em que assenta o poder talibã. Foi tudo tratado com muita arrogância. Agora há que lidar com as consequências desses erros.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui