Americanos estão de saída. Teme-se reinício da guerra

Crescem as áreas controladas pelos talibãs. Receando uma insurgência, há cada vez mais civis a pegar em armas

Uma criança afegã caminha junto a um militar norte-americano, na província de Helmand REECE LODDER, U.S. MARINE CORPS / RAWPIXEL

A guerra americana no Afeganistão tem tantos anos como o 11 de Setembro. Foi sobre este país da Ásia Central que os Estados Unidos retaliaram após o pior atentado sofrido em solo próprio. O Afeganistão era governado pelos talibãs, que abrigavam a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Quase 20 anos passados, os militares americanos estão de volta a casa. Para trás deixam um país cada vez mais nas mãos dos talibãs e, de novo, à beira da guerra.

“A verdade é que hoje a sobrevivência, segurança e unidade do Afeganistão estão em perigo”, alertou na quarta-feira Abdullah Abdullah, que lidera o Alto-Conselho para a Reconciliação Nacional no Afeganistão. “Com a retirada das tropas estrangeiras, a guerra escalou. Infelizmente, os talibãs tiraram partido disso. A saída das tropas naturalmente deixou um vácuo nalgumas áreas.”

A percentagem de território na posse dos talibãs não é unânime, mas é consensual a perceção de que os domínios islamitas estão a crescer para norte dos tradicionais bastiões de Helmand e Kandahar, a sul.

“Mesmo com as forças internacionais no terreno, os talibãs vinham há muitos anos aumentando a sua influência e controlo de vastas regiões de território”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008. “Claro que do ponto de vista militar, a saída dos contingentes internacionais facilita-lhes a vida. Terão de fazer face a um inimigo mais reduzido e com menor capacidade militar.”

Esta semana, o comandante das forças dos EUA no Afeganistão expressou grande preocupação em relação ao futuro imediato do país. “A guerra civil é um caminho que podemos visualizar”, alertou o general Austin S. Miller. “A situação de segurança não é boa.”

Notícias dão conta da reorganização de grupos de antigos mujahedin (que combateram a ocupação soviética e, depois, o regime talibã). Igualmente, sobretudo em áreas habitadas por minorias étnicas, como os hazaras, estão a ser formadas milícias civis contra os talibãs. A perspetiva de grupos armados, organizados com base em lealdades tribais e em torno de “senhores da guerra”, voltarem a pegar em armas para repelir uma crescente insurgência talibã é um filme de terror que o Afeganistão já conhece.

Alemães já estão em casa

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estabeleceu o dia 11 de setembro como data final (e simbólica) para a saída das tropas do Afeganistão. A operação deverá ser concluída mais cedo, previsivelmente dentro de dias. Os alemães, que correspondiam ao segundo maior contingente estrangeiro, deixaram o Afeganistão terça-feira.

Quase duas décadas de guerra consagraram o Afeganistão como um atoleiro, onde chegaram a servir em simultâneo 150 mil norte-americanos e onde morreram cerca de 2500. “Falharam muitas coisas” na estratégia americana, analisa Carlos Branco. “Em primeiro, faltou interesse num processo de peace building [construção da paz] logo após a derrota dos talibãs. Os EUA estavam apenas interessados em capturar o Bin Laden e o seu envolvimento inseriu-se no âmbito do contraterrorismo. Isso deu tempo aos talibãs para sarar feridas e recomporem-se.”

“Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável”, diz o major-general Carlos Branco

“Quando a natureza do envolvimento internacional alterou-se e evoluiu para a contrassubversão, Washington assumiu que o conflito ia ser resolvido militarmente, nunca se empenhando a sério em encontrar uma solução política. Essa constatação ocorreu demasiado tarde e de forma errada, para resolver o seu problema com os talibãs, mas não o dos seus aliados afegãos, que terão de viver no Afeganistão lado a lado com os talibãs. O diálogo intra-afegão, que devia estar há anos no topo da agenda, é ainda hoje uma miragem.”

A 29 de fevereiro de 2020, o acordo de paz celebrado entre a Administração Trump e os talibãs abriu caminho ao diálogo intra-afegão que decorre em Doha, capital do Qatar, sem o mínimo progresso. Para o Governo de Cabul, a prioridade é obter um cessar-fogo, mas para os talibãs controlar mais territórios significa ganhos políticos.

“Os Estados Unidos vão retirar-se sem uma solução política para o país”, conclui o militar. “Não sabemos como vai ser o próximo governo e a fórmula política para acomodar a futura correlação de forças. Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável e que há que contar com eles, seja qual for a solução política. Pensou-se ser possível um Afeganistão sem talibãs. Não só são uma força política importante como não vão desaparecer. É incompreensível que nunca tenha havido uma política orientada para os pashtuns, a etnia [maioritária no país] em que assenta o poder talibã. Foi tudo tratado com muita arrogância. Agora há que lidar com as consequências desses erros.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

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