Os dez momentos políticos nos Jogos de Tóquio

Os XXXII Jogos Olímpicos da era moderna não registaram boicotes políticos. Mas muitos atletas aproveitaram o relaxamento das proibições em matéria de manifestações políticas, religiosas ou raciais para alertarem para as suas causas. Em algumas competições, previsivelmente tensas em virtude dos países em contenda, os atletas deixaram a política fora dos recintos. Mas no judo masculino, subiu mesmo ao tapete…

1. ESTADOS UNIDOS-IRÃO: UMA LIÇÃO DE DECÊNCIA

A equipa olímpica de basquetebol dos Estados Unidos não é mais o Dream Team dos Jogos de Barcelona, de 1992. Mas o talento chega e sobra para colocar qualquer adversário em sentido.

Quis o sorteio do torneio olímpico de basket que, na fase de grupos, os EUA defrontassem o Irão. Fora dos recintos desportivos, as duas nações não se falam. Estão de relações cortadas deste 1979, ano em que triunfou a Revolução Islâmica liderada pelo ayatollah Ruhollah Khomeini, e atualmente só contactam indiretamente.

É o que acontece, desde há meses, em Viena, para tentar relançar o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. As duas delegações diplomáticas estão alojadas em hotéis diferentes, não muito distantes, cabendo aos mediadores andarem entre um e outro a transportar mensagens.

Os norte-americanos encestaram quase o dobro dos pontos dos iranianos ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES

Nos Jogos de Tóquio, os EUA “esmagaram” o Irão por 120-66. No final, o resultado desequilibrado não fez mossa. Basquetebolistas das duas equipas deixaram-se fotografar em saudável convivência. “Não é surpresa que os treinadores iriam gostar de se conhecer, e os jogadores demonstrariam desportivismo”, comentou Gregg Popovich, o treinador dos EUA. “Só gostávamos que isto fosse a vida real.”

Nas bancadas, o repórter do jornal britânico “The Guardian”, Sean Ingle, tudo testemunhou: “Não foi tanto o Grande Satã. Foi mais o Grande Amor. E durante mais de duas horas agradáveis na Saitama Super Arena, as equipas de basquete dos Estados Unidos e da República Islâmica do Irão deram uma lição salutar de harmonia, decência e classe para muitos dos seus líderes políticos dos últimos 42 anos.”

2. A PALESTINA, ACIMA DE TUDO

Fethi Nourine, um judoca argelino, tomou uma decisão radical ainda antes de iniciar a sua participação nos Jogos. Conhecido o resultado do sorteio, que ditou o cruzamento dos atletas na categoria de menos de 73 kg, o atleta de 30 anos retirou-se. Se vencesse o adversário sudanês, na primeira ronda, iria enfrentar o israelita Tohar Butbul, que ficou isento do primeiro combate.

“Não tivemos sorte no sorteio. Trabalhamos duro para nos classificarmos para os Jogos, mas a causa palestiniana é maior do que tudo isso. Nós recusamos a normalização das relações com Israel”, justificou o treinador nacional argelino, Amar Ben Yekhlef.

A reação de Nourine não foi propriamente surpreendente. Já em 2019, ele abandonara o Campeonato do Mundo, realizado exatamente no mesmo pavilhão dos Jogos — o Nippon Budokan — pelas mesmas razões. Então, afirmou: “Não vamos fazer com que a bandeira de Israel seja erguida e não vamos sujar as mãos a lutar com um israelita”.

Tohar Butbul viu dois adversários retirarem-se dos Jogos para não terem de o defrontar, por ser israelita JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

A Argélia tem uma posição sólida em relação à questão da Palestina. Para além da sua tradição revolucionária de oposição ao colonialismo — demonstrada na guerra da independência contra a França (1954-1962) —, foi em Argel que, a 15 de novembro de 1988, foi proclamada a independência do Estado da Palestina, que chegou a ser reconhecido por 138 países.

Em Tóquio, o israelita Tohar Butbul enfrentaria uma segunda deserção. A seguir ao argelino, também o sudanês Mohamed Abdalrasool desistiu da competição para não enfrentar o judoca judeu.

3. TADJIQUISTÃO E QUIRGUISTÃO EM NEGAÇÃO

Da euforia da delegação portuguesa ao exotismo do porta-bandeira do Tonga, um adereço sobressaiu mais do que todos os outros durante o desfile dos atletas, na cerimónia de abertura dos Jogos, no Estádio Olímpico — a máscara anti-covid. Mas pelo menos em duas delegações, a maioria dos seus membros abdicou dessa proteção: Tadjiquistão e Quirguistão.

Nestes países vizinhos da Ásia Central, o combate à pandemia tem-se travado em moldes muito relaxados. No Quirguistão, em abril, o ministro da Saúde defendeu a toma de um tónico feito à base de ervas para tratar a covid-19. O preparado foi proposto pelo Presidente Sadyr Japarov — um nacionalista e populista, comparado a Donald Trump — e é feito com base numa receita que foi dada ao Presidente pelo seu pai.

Apesar de advertências médicas de que a poção continha um veneno potencialmente letal, o próprio ministro Alymkadyr Beishenaliyev dissipou dúvidas, e bebeu o preparado durante um briefing na Internet.

Desfile da delegação do Tadjiquistão, no Estádio Olímpico de Tóquio. A maioria dos membros não usa máscara MARTIN BUREAU / AFP / GETTY IMAGES

No Tadjiquistão, as autoridades tardaram em admitir a existência de casos de SARS-CoV-2 no país. E, mesmo após terem cedido ao impacto da doença, têm sido acusadas de encobrir a verdadeira extensão do problema que, no entanto, parece não poupar os mais poderosos do país. Na véspera do início dos Jogos, foi noticiada a morte de uma irmã do Presidente Emomali Rahmon, por covid-19.

4. KAEPERNICK CONTINUA A INSPIRAR

Cinco anos após Colin Kaepernick ter, de forma inédita, substituído a mão direita sobre o coração por um joelho no chão, durante a execução do hino dos EUA, antes de um jogo da Liga Nacional de Futebol (futebol americano), o gesto continua a ser repetido em estádios de todo o mundo. Então, Kaepernick — filho de mãe branca e pai negro — insurgia-se contra a violência policial dirigida em especial contra afroamericanos.

De joelho no chão, o protesto contagiou as futebolistas norte-americanas e suecas, e também a equipa de arbitragem NORIKO HAYASHI / GETTY IMAGES

Nos Jogos de Tóquio, o gesto multiplicou-se, em especial nos torneios de futebol, sem receios de penalizações por parte do Comité Olímpico Internacional. Uma alteração recente à regra da Carta Olímpica relativa a manifestações de caráter político, religioso e racial passou a admitir gestos que “não sejam dirigidos, direta ou indiretamente, a pessoas, países, organizações e / ou à sua dignidade” e que “não sejam disruptivos”, como, por exemplo, que não se realizem durante a execução do hino nacional de outra equipa.

Para muitos atletas, foi a deixa perfeita para deixaram a sua consciência falar mais alto e expressarem solidariedade com vítimas de racismo, injustiça e discriminação.

5. MATILDAS NÃO ESQUECEM OS ABORÍGENES

A participar nos Jogos Olímpicos pela quarta vez, as Matildas — a alcunha da seleção australiana feminina de futebol — aproveitaram o palco para porem o dedo numa ferida que tarda em sarar no país.

Antes do início do primeiro jogo, contra a vizinha Nova Zelândia, as australianas posaram para a fotografia segurando uma bandeira do povo aborígene, a população nativa da Austrália, alvo de discriminação. Duas jogadoras da equipa — a guarda-redes Lydia Williams e a atacante Kyah Simon — são aborígenes.

Kyah Simon (na frente a olhar para o chão) e Lydia Williams (a guarda-redes) são de ascendência indígena YOSHIKAZU TSUNO / AFP / GETTY IMAGES

O gesto das Matildas não foi recebido de forma unânime na Austrália. “As bandeiras indígenas não representam todos os australianos. Existe apenas uma bandeira que realmente representa todos nós. Os contribuintes não desembolsam milhões de dólares para enviar equipas olímpicas para representar duas nações. Somos uma nação, a Austrália, indígenas e não indígenas”, criticou a senadora Pauline Hanson (direita).

“Muitos australianos estão fartos de atletas e celebridades que sequestram os palcos para fazerem gestos simbólicos que apenas inflamam a divisão. Os australianos estão fartos de os seus desportos favoritos serem arruinados pela política.”

Polémica à parte, a seleção australiana obteve o seu melhor resultado de sempre nuns Jogos: o quarto lugar, após perder a medalha de bronze para os EUA, as campeãs mundiais.

6. RAVEN SAUNDERS, UMA VOZ DOS OPRIMIDOS

Deu nas vistas desde o primeiro momento em que as câmaras televisivas a visaram, no Estádio Olímpico, pela sua aparência excêntrica. Raven Saunders, a norte-americana que haveria de conquistar a medalha de prata no lançamento do peso, sobressaía pelo seu porte avantajado, pela indumentária que envergava — em especial a máscara, que nunca tirou, nem para fazer os lançamentos — e pelos gestos alucinados.

Consagrada vice-campeã, em cima do pódio e de medalha ao pescoço, ela levantou os braços e cruzou-os sobre a sua cabeça. Pouco depois, em declarações à imprensa, explicou que aquele X é “a interceção onde se encontram todas as pessoas oprimidas”.

O protesto de Raven Saunders, acabada de receber a medalha de prata, referente ao lançamento do peso RYAN PIERSE / GETTY IMAGES

Saunders, uma atleta negra e homossexual, tem falado abertamente sobre a sua experiência com a depressão e questões de identidade. Na hora da glória olímpica, aproveitou os holofotes para falar da sua causa: “Grito para todos os meus negros, grito para toda a minha comunidade LGBTQ, grito para todo o meu povo que lida com saúde mental. No fim de contas, entendemos que isso é maior que nós e do que os poderes constituídos, entendemos que há tantas pessoas que olham para nós, que estão à espera para ver se dizemos algo ou se falamos por eles”.

7. GARRAS DE LUKASHENKO CHEGAM A TÓQUIO

A rédea curta com que o regime do Presidente da Bielorrússia Aleksandr Lukashenko aborda a liberdade de expressão dentro de portas chegou a Tóquio. Krystsina Tsimanouskaya, uma velocista de 24 anos, foi levada contra a sua vontade, por membros do comité olímpico bielorrusso, para o aeroporto de Tóquio para ser repatriada, ainda antes de ter concluído o seu programa de provas.

A atleta acusara os treinadores de “negligência” por a terem convocado, à última hora e à sua revelia, para correr a estafeta dos 4×400 metros, em substituição de outra atleta que não tinha realizado os suficientes controlos antidoping. Tsimanouskaya iria disputar essa prova na véspera de correr os 200 metros, a corrida com que se tinha qualificado para Tóquio.

Krystsina Tsimanouskaya dirige-se para a porta de embarque, no aeroporto internacional de Narita, em Tóquio, onde apanhou um avião para a Áustria, de onde seguiu para a Polónia YUICHI YAMAZAKI / GETTY IMAGES

As críticas caíram mal em Minsk — onde um filho de Lukashenko preside ao comité olímpico bielorrusso —, que as considerou “antipatrióticas”. Tsimanouskaya recebeu guia de marcha para casa.

No aeroporto, após falar ao telefone com a avó que a alertou para as más reações, no país, às suas palavras, pediu ajuda à polícia — temendo ser presa no regresso a casa — e pediu asilo à Polónia. Crítico do regime bielorrusso, este país escancarou-lhe as portas.

8. ISRAEL E ARÁBIA SAUDITA CADA VEZ MAIS PRÓXIMOS

Entre os países árabes, deixou de haver unanimidade nos recintos desportivos quando pela frente surge um atleta de Israel. Se, no torneio masculino do judo, dois atletas oriundos de Estados árabes abandonaram a competição para não defrontarem um adversário judeu, no judo feminino fez-se história.

Tahani Alqahtani, da Arábia Saudita, e a israelita Raz Hershko combateram na categoria de mais de 78 kg. No tapete, a israelita levou a melhor sobre a saudita e, no cumprimento do princípio basilar do judo de respeito pelo adversário, no final, ambas se cumprimentaram.

De azul, a israelita Raz Hershko acaba de derrotar a saudita Tahani Alqahtani JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

Não haveria lugar a surpresa não fosse tratar-se de uma situação incomum entre desportistas dos dois países, que não têm relações diplomáticas entre si.

No último ano, dois países árabes da região do Golfo Pérsico (Emirados Árabes Unidos e Bahrain) reconheceram Israel a nível bilateral. A histórica decisão teve o acordo tácito do gigante árabe da região: a Arábia Saudita. Encontros como este, entre as duas judocas, provam que os dois países já estiveram muito mais distantes do que estão.

“A política ficou de fora da competição e no fim o desporto venceu”, afirmou a israelita, em entrevista ao diário saudita em língua inglesa “Arab News”, elogiando a adversária saudita. “Ela teve coragem de vir para a luta e fazer o que ama. Fizemos uma luta justa e no final apertámos as mãos. Correu tudo bem.”

9. SEM BOICOTES, MAS COM UMA AUSÊNCIA

Os Jogos de Tóquio não registaram boicotes políticos, mas nem todos os países marcaram presença. Mais de três meses antes do seu início, e quando soçobravam incertezas sobre a efetiva realização do evento, a Coreia do Norte anunciou que não participaria, para proteger os seus atletas da covid-19.

Pyongyang tem consistentemente negado a existência de casos positivos no país e quando, finalmente, admitiu um caso culpou a Coreia do Sul: o homem infetado era um norte-coreano que tinha desertado para o Sul e retornado clandestinamente, noticiou o Norte.

A decisão da Coreia do Norte — que participava nos Jogos ininterruptamente desde 1988, ano em que boicotou os de Seul — inviabilizou uma estratégia que marcou os Jogos que antecederam os de Tóquio — os Jogos de Inverno em PyongChang (Coreia do Sul), em 2018. Então, as duas Coreias desfilaram juntas na cerimónia de abertura e competiram integradas numa equipa só.

Em Tóquio, os sul-coreanos, como o atleta de taekwondo (à esquerda), competiram com a sua bandeira, e não unificados com a Coreia do Norte, como anteriormente JAVIER SORIANO / AFP / GETTY IMAGES

Essa aproximação conduziu a uma séria de cimeiras de alto nível: três entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos (2018-19) e outras tantas entre as duas Coreias (2018). Na ausência de resultados concretos, desde então, o processo de negociações, que visa, em última instância, a obtenção de um tratado de paz na Península Coreana está estagnado. Desta vez, o desporto não pôde dar uma ajuda para a retoma do diálogo.

10. NÃO É TEMPO DE CELEBRAÇÕES

Manda a tradição olímpica que seja o chefe de Estado do país organizador a declarar o início dos Jogos. Foi assim também no Japão, com o Imperador Naruhito, no trono desde 1 de maio de 2019, que só muito raramente surge em público.

Prevê a Carta Olímpica também, na sua Regra 55, que o monarca profira exatamente a seguinte frase: “Declaro abertos os Jogos de… (nome da cidade organizadora) celebrando… (número da Olimpíada) da era moderna”. Porém, em Tóquio, houve uma nuance. Em vez de “celebrando”, Naruhito disse “comemorando”, retirando carga festiva a um evento que se realizou em plena pandemia.

Naruhito, o discreto Imperador do Japão, assistiu à cerimónia de abertura dos Jogos, e declarou-os abertos ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

Em 1964, o seu avô Hirohito não teve necessidade de adaptar o texto à conjuntura, quando declarou abertos os Jogos de Tóquio. O evento simbolizou a reintegração do Japão no concerto internacional, após a derrota na II Guerra Mundial.

(FOTO PRINCIPAL O iraniano Saeid Davarpanah e o norte-americano Damian Lillard confraternizam após o jogo entre as duas seleções, no torneio de basquetebol dos Jogos de Tóquio GREGORY SHAMUS / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 9 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Um recurso escasso numa região conflituosa

Opções políticas e alterações climáticas contribuíram para reduzir os caudais de quatro rios históricos. Para as populações ribeirinhas sobra um mar de preocupações

Crianças brincam no rio Nilo em Assuão, no sul do Egito KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGES

Na Antiguidade Clássica, o historiador grego Heródoto rotulou o Egito como “um presente do rio Nilo”. Para oriente, o rio Jordão foi protagonista no advento do judaísmo e do cristianismo. Ainda mais para leste, entre os rios Tigre e Eufrates, floresceu a Mesopotâmia, considerada um dos berços da civilização ocidental. Hoje, a grandeza histórica destes quatro rios esvai-se nos seus caudais, cada vez menos abundantes. Por opções políticas ou pelo efeito das alterações climáticas, há cada vez menos água disponível para as populações ribeirinhas. E tudo acontece na região mais conflituosa do mundo.

NILO Uma nova praga maligna em formação

“O Egito — nação de mais de 100 milhões de almas — enfrenta uma ameaça existencial. Uma grande estrutura de proporções gigantescas foi construída ao longo da artéria que leva vida ao povo do Egito.” O alerta foi dado há um mês, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio. A construção a que Sameh Shoukry se refere é a Grande Barragem Renascentista Etíope (GERD, na sigla inglesa), que a Etiópia começou a erguer em 2011, quando o Egito estava envolvido nas convulsões populares da Primavera Árabe. Fica no Nilo Azul, principal afluente do Nilo, que nasce na Etiópia e converge com o Nilo Branco no Sudão. Para a Etiópia, o projeto reduz a pressão energética e gera eletricidade suficiente para exportar. Para o Egito, é fonte de inquietação. Com 6650 quilómetros de comprimento, o Nilo garante 90% das necessidades hídricas do país.

A 19 de julho, a Etiópia anunciou a conclusão do segundo enchimento da barragem, o que levou as autoridades do Cairo a insurgirem-se contra as ações unilaterais de Adis Abeba. O Nilo corre de sul para norte, pelo que só chega ao Egito a água que o Sudão e a Etiópia deixarem passar. “Sempre dissemos aos nossos irmãos da Etiópia e do Sudão que os respeitamos e nos preocupamos com o seu direito à vida, tal como com o nosso. Eles têm direito a produzir eletricidade, na condição de isso não afetar a quantidade de água que nos chega”, disse, no final de julho, o Presidente Abdel Fattah al-Sisi, homem forte do Egito.

“Os danos que a GERD pode infligir afetarão todos os aspetos da vida do povo egípcio, qual praga maligna”, alerta Shoukry, recuperando a analogia bíblica das “10 pragas” para traduzir o drama atual. “O enchimento unilateral da barragem, sem um acordo que inclua os cuidados necessários para proteger as comunidades a jusante e prevenir danos significativos, aumentará as tensões e poderá provocar crises e conflitos que desestabilizem ainda mais uma região já de si conturbada.” Das Nações Unidas vêm apelos para que Egito, Sudão e Etiópia se entendam à mesa das negociações, mediadas pela União Africana. “A disputa relativamente à GERD não vai evoluir para uma guerra aberta entre os três países (ou entre dois deles). É um cenário altamente improvável”, diz ao Expresso Ana Elisa Cascão, investigadora independente e coautora de “The Grand Ethiopian Renaissance Dam and the Nile Basin” (“A Grande Barragem Renascentista Etíope e a Bacia do Nilo”). “Uma guerra ‘hídrica’ não beneficiaria absolutamente ninguém, e os custos reputacionais seriam imensos para todos. Nos últimos anos, a GERD, como ‘carta política’, tem basicamente sido usada para efeitos de política interna nos três países. Externalizar problemas internos é uma arte que todos eles dominam, mas que tem limites.”

TIGRE E EUFRATES Caudais a diminuir como nunca antes

Nascem na Turquia, desaguam no sul do Iraque e atravessam também a Síria. Espraiam-se por muitos quilómetros — o Eufrates tem 2800 quilómetros, o Tigre 1900 — em países que ora cooperam ora estão em guerra, entre si ou com terceiros. Mais do que as guerras, é o megaprojeto do Sudeste da Anatólia que tem suscitado mais preocupações relativamente ao potencial de irrigação dos dois rios.

Projetada para desenvolver 10% do território turco, esta iniciativa multissectorial prevê a construção de 22 barragens ao longo dos dois rios, a maior das quais a barragem Ataturk (nome do fundador da Turquia moderna), no curso do Eufrates.

Para o Iraque, que recolhe dos dois rios 90% da água doce que consome, o impacto das variações dos caudais é enorme. “Este ano vimos uma redução na precipitação anual de 50% em relação ao ano passado”, alertava no ano passado Mahdi Rashid Al-Hamdani, ministro dos Recursos Hídricos iraquiano, num momento de stresse hídrico. “Solicitámos ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros que envie uma mensagem urgente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia a perguntar qual é o motivo para a quebra do nosso fluxo.”

Bagdade e Ancara têm acordos em vigor sobre a partilha da água, mas há que cumpri-los. Alguma da água em falta no Iraque ficou retida na Turquia, no reservatório da barragem de Ilisu (uma das 22 projetadas), que começou a funcionar no rio Tigre.

Paralelamente às opções políticas nacionais, as alterações climáticas justificam muitas das fragilidades ambientais. Nas últimas semanas, uma seca acentuada na região de Erbil, capital do Curdistão iraquiano (norte), originou grave escassez de água, que levou as autoridades locais a detalhar apelos: “Racionem o consumo e o uso de água e coloquem válvulas nos tanques de água para reduzir o desperdício.” A cidade depende em grande parte da água do rio Zab, afluente do Tigre.

No ano passado, um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apurou que os caudais do Tigre e do Eufrates estão a diminuir “a uma taxa sem precedentes”, com impacto direto na deslocação de populações. “Em julho de 2019, a OIM no Iraque identificou 21.314 pessoas deslocadas internamente de províncias do centro e do sul devido à falta de água, a fontes de água com alto teor de salinidade ou a surtos de doenças transmitidas pela água.”

Em 2018, os grandes protestos populares que se realizaram no sul do Iraque também tiveram origem na escassez de água potável e nas falhas de eletricidade. Aconteceu o mesmo no Irão, no mês passado, na província de Khuzestan, na fronteira com o Iraque. Segundo o serviço meteorológico iraniano, entre outubro de 2020 e junho deste ano, o país viveu os meses mais secos dos últimos 53 anos.

JORDÃO Usar a água para fazer política

Há menos de um mês em funções, o novo Governo de Israel elevou a questão da água à categoria de prioridade política. No início de julho, o primeiro-ministro Naftali Bennett encontrou-se em Amã com o rei da Jordânia, Abdullah II. O governante israelita comunicou ao monarca que Israel estava disposto a vender à Jordânia mais água do que aquela a que está obrigado pelo acordo de paz de 1994, que dividiu entre ambos o acesso às águas dos rios Jordão e Yarmuk.

A Jordânia enfrenta uma grave escassez de água, que é explicada em parte pela matemática: se em 1950 o reino tinha menos de meio milhão de habitantes, hoje tem 10 milhões, embora só tenha recursos hídricos para sustentar 2 milhões.

Com este gesto de boa vontade, a Jordânia viu o seu problema temporariamente menorizado. Já Israel reabilitou uma relação que se degradara de forma substancial nos últimos anos, condenando à morte o acordo Red-Dead de 2015, que iria ligar o Mar Vermelho (Red) ao Mar Morto (Dead) através de canalização, complementada por centrais de tratamento de água nas duas margens.

Este projeto visava salvar o Mar Morto, que está em acelerado estado de degradação, originando sumidouros com dezenas de metros de diâmetro, num território que mais parece ter sido alvo de bombardeamentos. É neste ecossistema que desagua o rio Jordão, ainda que em quantidades cada vez menores, em virtude dos desvios de água realizados ao longo do seu curso, partilhado por Israel, Síria, Jordânia e território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel.

Se na margem esquerda do Jordão a situação é de escassez, na direita é agravada pela ocupação israelita da Palestina, que garante a Israel controlo sobre toda a água entre o rio e o Mar Mediterrâneo. Ao Expresso, Marta Silva, estudiosa das relações entre Israel e a Palestina, identifica o momento-chave em que os palestinianos perderam o acesso aos recursos hídricos: “Em 1967, quando Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.” A especialista explica que “o objetivo era garantir a colonização da região do vale do Jordão, a mais rica a nível de recursos aquíferos, logo com mais terras aráveis e férteis” — o celeiro da Palestina. Hoje, diz a organização EWASH, no vale do Jordão, um colono israelita gasta 81 vezes mais água do que um residente palestiniano.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Perfil de Ebrahim Raisi. Intolerante à corrupção, o novo Presidente do Irão inicia funções com o nome na lista de sanções dos Estados Unidos

O oitavo Presidente da República Islâmica toma posse, esta quinta-feira, diante do Parlamento. Após uma carreira de 40 anos ao serviço da justiça, Ebrahim Raisi é apontado como futuro sucessor de Ali Khamenei na liderança espiritual do país. Sem experiência política, tem a complicar a nova tarefa o facto de enfrentar pessoalmente sanções decretadas pelos Estados Unidos

Ebrahim Raisi ascendeu à presidência do Irão aos 60 anos. O turbante negro revela descendência direta do Profeta Maomé MEGHDAD MADADI / WIKIMEDIA COMMONS

Os calendários eleitorais e a vontade popular determinaram que, em 2021, tanto Estados Unidos como Irão renovassem as suas presidências com outros rostos. Mas mesmo com Joe Biden em Washington e Ebrahim Raisi em Teerão, não está garantida qualquer melhoria no contacto entre os dois países, sem relações diplomáticas desde 1979.

Três dias após ser eleito, o novo chefe de Estado iraniano deu uma concorrida conferência de imprensa em Teerão, onde foi inquirido sobre se planeava encontrar-se com o homólogo norte-americano. “Não”, respondeu secamente.

Nesse encontro com a imprensa, Raisi — que, esta quinta-feira, toma posse diante do Parlamento — defendeu a continuação das conversações indiretas que decorrem, em Viena, sobre o futuro do acordo nuclear (do qual os EUA se retiraram por decisão do anterior Presidente, Donald Trup), instou Washington a levantar as sanções e definiu o programa de mísseis balísticos iraniano como “inegociável”.

Raisi respondeu aos jornalistas com o manto de estadista colocado. De um prisma pessoal, a perspetiva de diálogo com os EUA é algo que também se lhe afigura impossível. Desde finais de 2019 que o novo Presidente do Irão é alvo de sanções dos Estados Unidos.

A 4 de novembro desse ano, dia em que se assinalou o 40.º aniversário do início da crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão — 52 pessoas foram mantidas em cativeiro durante 444 dias —, a Administração Trump decretou sanções financeiras contra o Estado-Maior das Forças Armadas iranianas e nove outros indivíduos próximos do ayatollah Ali Khamenei. Raisi era um dos visados.

“Esta ação visa impedir que os fundos fluam para uma rede secreta de assessores militares e de relações exteriores de Ali Khamenei que há décadas oprimem o povo iraniano, exportam o terrorismo e avançam com políticas desestabilizadoras em todo o mundo”, lê-se no decreto.

À época da imposição das sanções, Raisi levava meses na liderança do sistema judicial do Irão. Fora nomeado para o cargo pelo Líder Supremo, após décadas de experiência na área. Começou em 1981, aos 20 anos, como promotor de justiça na cidade de Karaj, perto de Teerão.

Essa longa experiência contribuiria para uma mancha negativa na sua reputação, profusamente recordada no momento da sua eleição. O seu nome surge associado à sinistra “comissão da morte”, que, em 1988 — era Raisi vice-procurador-geral de Teerão —, supervisionou a execução extrajudicial de presos políticos nas prisões de Evin e Gohardasht, nos arredores da capital.

Crimes contra a humanidade

No dia seguinte à vitória de Raisi nas presidenciais de 18 de junho, a Amnistia Internacional divulgou um comunicado intitulado “Ebrahim Raisi tem de ser investigado por crimes contra a Humanidade”. “Como chefe do sistema judicial iraniano, presidiu a uma violenta repressão aos direitos humanos em que centenas de dissidentes pacíficos, defensores dos direitos humanos e membros de grupos minoritários foram perseguidos e detidos arbitrariamente.”

“Sob a sua supervisão”, continua a organização de defesa dos direitos humanos, “foi concedida impunidade total a funcionários do Governo e forças de segurança responsáveis ​​por matar ilegalmente centenas de homens, mulheres e crianças e sujeitar milhares de manifestantes a prisões em massa e pelo menos centenas a desaparecimentos forçados, tortura e outros maus tratos durante e após os protestos em todo o país em novembro de 2019.”

Neste período, duas execuções tiveram grande repercussão internacional: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam, ambas em 2020.

À frente do sistema judicial, Raisi promoveu um conjunto de reformas penais que resultaram na libertação de presos e na comutação de sentenças de pena de morte, o que lhe angariou popularidade.

Ganhou as eleições à primeira volta, com expressivos 61,95%, naquele que foi o escrutínio menos participado de sempre (51,2% de abstenção). Votaram no vencedor cerca de 18 milhões dos quase 29 milhões de eleitores que foram às urnas. Raisi teve a vida facilitada pelo chumbo aplicado pelo Conselho de Guardiães — órgão que valida as candidaturas à presidência — a alguns perfis moderados e reformistas que poderiam fazer-lhe frente.

Raisi assentou a sua campanha em slogans como “honra nacional”, “dignidade humana” e “igualdade social”, surgindo aos olhos dos eleitores como um homem humilde, intolerante à corrupção. A experiência na 40 anos na área da justiça levou muitos iranianos a acreditarem que será ativo no combate à corrupção, uma das principais queixas do povo.

Ebrahim Raisi nasceu a 14 de dezembro de 1960, em Mashhad, a mesma cidade no nordeste do país onde, 21 anos antes, nasceu Ali Khamenei, atual Líder Supremo do Irão. Mashhad é a segunda cidade do Irão e um importante centro religioso xiita, já que alberga o túmulo de Reza, o oitavo dos doze imãs infalíveis que compõem a linhagem xiita.

Nascido no seio de uma família religiosa, perdeu o pai aos cinco anos e aos 15 começou a estudar no seminário de Qom, a principal cidade santa para os xiitas. Dali assistiu ao avolumar do descontentamento popular em relação ao monarca Mohammad Reza Shah Pahlavi, que haveria de o derrubar e levar os ayatollahs ao poder.

Aos 23 anos, Raisi casou com a professora universitária Jamileh Alamolhoda, de quem teve duas filhas. Pelo casamento, tornou-se genro de Ahmad Alamolhoda, conhecido pregador ultraconservador nas orações de sexta-feira, em Mashhad, que chegou a proibir música ao vivo e mulheres ciclistas na cidade.

Sayyid de turbante negro

Além da visão ideológica conservadora, partilha com o Líder Supremo o título de sayyid. Segundo o Islão xiita, esmagadoramente maioritário no Irão, um sayyid descende diretamente de Fatima, filha do profeta Maomé, e simbolicamente usa um turbante negro para evidenciar esse estatuto.

Nos últimos anos, Raisi tem sido apontado como potencial sucessor de Khamenei, como líder espiritual do Irão. O próprio Khamenei foi Presidente (1981-89), imediatamente antes de assumir a liderança religiosa da República (sucedendo ao pai fundador, o ayatollah Ruhollah Khomeini). Apesar da sua longa carreira na justiça, só muito recentemente se deu a conhecer ao grande público.

Em 2016, foi nomeado por Ali Khamenei guardião da multimilionária fundação caritativa Astan-e Qods-e Razavi, sedeada em Mashhad, com negócios em múltiplas áreas e que supervisiona o santuário do imã Reza.

No ano seguinte, subiu mais um degrau no reconhecimento público e ascendeu ao primeiro plano da política, desafiando nas urnas Hassan Rohani, o Presidente a quem agora sucede. Durante a campanha, Rohani referiu-se a Raisi como um “daqueles que não conhecem nada além de execuções e prisões”. Raisi perdeu aquelas eleições de 2017, com apenas 38% dos votos, num escrutínio que teve uma taxa de afluência de 73%. Mas os iranianos ficaram a conhecê-lo.

Se a presidência do país é, como muitos suspeitam, um trampolim para se tornar o próximo líder espiritual do Irão, os próximos tempos serão vitais. Raisi terá de mostrar capacidade na governação e conquistar o coração de um povo de mais de 80 milhões em grandes dificuldades económicas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui