À espera que a barba cresça para tentar fintar os talibãs

Perseguido pelo regime, um afegão revela o seu plano de fuga do país. Um relato dramático a partir de Cabul

Said estima que o pesadelo tenha durado uns 40 minutos. Uma eternidade para quem sentia a morte à distância de poucos metros. Por volta das 11 da noite, um grupo de homens identificados com os talibãs bateu à porta da casa dos seus pais em Cabul, capital do Afeganistão. Vinham buscá-lo.

“Eram dois carros. Um estava parado à nossa porta e o outro à entrada da rua. Junto à porta havia três homens e mais dois ao fundo da rua”, recorda ao Expresso este afegão, de 36 anos, descrevendo o que observou através da câmara de vigilância instalada junto à entrada da casa dos pais.

Nervoso, Said ligou a pedir ajuda a amigos, que o aconselharam a não abrir a porta. Por aqueles dias já se sabia o que podia significar uma visita noturna dos talibãs. “Aparecem à noite e levam pessoas de suas casas. Dois ou três dias depois, os cadáveres são despejados num lugar qualquer.”

Os talibãs precisam de integrar as suas forças numa forma de organização centralizada, o que se tem revelado difícil

Perante a insistência dos talibãs, foi a mãe quem levantou a voz para lhes responder de dentro de casa. Questionada acerca do paradeiro do filho, respondeu que não se encontrava ali e que nem sequer estava no país. Os homens não acreditaram, disseram ter informações de que Said estava naquela casa, mas acabaram por abandonar o local.

Foi na casa dos pais que Said se refugiou quando os talibãs assumiram o poder no Afeganistão, após entrarem em Cabul, a 15 de agosto, sem a mínima resistência. Sabia que tinha a cabeça a prémio por ter colaborado com as tropas estrangeiras, que, na perspetiva talibã, “ocuparam” o país durante 20 anos. “A minha família está em risco. Os meus irmãos dizem que tomam conta dos meus pais mas que eu tenho de me salvar sozinho.”

Dólares para subornar

Sem sair de casa desde a assustadora visita dos talibãs, há cerca de duas semanas, Said tem procurado gizar uma forma de se pôr a salvo. A fronteira com o Paquistão está a pouco mais de 200 quilómetros de distância, o que deverá levar umas quatro horas por estrada. Said quer chegar ao ponto de passagem de Torkham, mas para lá chegar precisa de passar despercebido…

Conta, para isso, com a ajuda e cumplicidade de um amigo. “Optei por falar a uma só pessoa. Muita gente envolvida dá sempre problemas. Este meu amigo é de confiança.” Motorista de camiões, Ajmal tem experiência em movimentar-se na zona de Torkham. Pediu a Said que pusesse de parte uns 500 dólares (€433) para dar a um facilitador, na fronteira. Enquanto esse dia não chega, Said deixa que a barba cresça para disfarçar a sua aparência. “Eles conhecem-me. Vou tentar modificar a minha expressão.”

O Expresso conheceu Said em 2011, em Cabul. Na altura, este afegão estudava na Faculdade de Medicina Curativa do Instituto de Ensino Superior Ariana, uma instituição privada em Jalalabade (Leste), perto da fronteira com o Paquistão. Foi ele o guia numa visita a uma escola daquela região conservadora — frequentada por rapazes e raparigas — que beneficiou de financiamento português. “Lembras-te que te pedi que fizéssemos uma visita rápida? Aquelas montanhas em frente à escola estavam cheias de talibãs. Haveria perigo se tivéssemos demorado muito.”

Dificuldade em centralizar

Desde que regressaram ao poder — o novo Governo do Emirado Islâmico do Afeganistão foi anunciado a 7 de setembro —, os responsáveis talibãs procuraram obter reconhecimento internacional adotando um discurso de moderação, oposto ao extremismo impiedoso que caracterizou a sua primeira passagem pelo poder, entre 1996 e 2001.

Entre outras garantias, prometeram uma amnistia para quem colaborou com as forças estrangeiras. Mas o quotidiano dos cidadãos revela-se muito diferente, com muitos talibãs empenhados em vingar essa traição pelas próprias mãos.

“Os talibãs funcionam mais como uma rede espalhada do que como uma estrutura hierárquica robusta”, explica ao Expresso Haroun Rahimi, professor de Direito na Universidade Americana de Cabul. “Agora no poder, precisam de integrar as suas forças, verticalmente, numa forma de organização centralizada. Isso tem-se revelado difícil.”

Said vai partilhando vídeos e fotos macabros, publicados pelos afegãos nas redes sociais, para exemplificar as atrocidades do dia a dia. Perseguições nas ruas, casas rebentadas à bomba, homens executados a tiro ou espancados em sessões de tortura intermináveis.

Num dos últimos vídeos enviados ao Expresso, os corpos de dois homens enforcados oscilam lentamente do ramo de uma árvore. “Uns dizem que eram membros do Daesh [o autodenominado Estado Islâmico, inimigo dos talibãs], outros dizem que eram inocentes”, diz Said. “Este massacre não vai terminar. Os talibãs são muito selvagens, não têm compaixão por ninguém.”

É a um destino cruel destes que Said quer escapar, ainda que tenha de deixar para trás a mulher e três filhos menores. Se conseguir chegar a Islamabade, capital do Paquistão, irá começar outra luta: bater à porta de embaixadas ocidentais (que no Afeganistão estão encerradas), contar a sua história, apresentar documentação e esperar que lhe abram a fronteira para recomeçar a vida em outro país. A salvo. “A vida no Afeganistão já não é possível. Apenas se contam os momentos de dor, tristeza e morte.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

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