O Líbano está em diálogo com o Fundo Monetário Internacional para elaborar um plano que resgate o país daquela que é considerada uma das crises económicas mais graves dos últimos 150 anos, em todo o mundo. A União Europeia está disposta a ajudar, mas não a qualquer preço. Ao Expresso, a eurodeputada Isabel Santos, regressada de uma visita ao país, traça linhas vermelhas que os 27 não querem ver ultrapassadas para continuar a ajudar o Líbano
Os números não deixam margem para dúvidas. A União Europeia (UE) tem sido uma parceira de todas as horas do Líbano, muito em especial nos maus momentos. Nos últimos 10 anos, a UE desembolsou mais de 1500 milhões de euros para ajudar o Líbano em contextos não humanitários e em situações de emergência, como o acolhimento de refugiados, a pandemia de covid-19 ou a grande explosão no porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020, considerada um dos maiores rebentamentos não nucleares da História.
Todo este apoio económico não estancou, porém, a vertiginosa queda do Líbano no abismo de uma crise tal que levou o Banco Mundial, no início de junho, a posicionar a situação libanesa “possivelmente no top-3 das crises mais graves em todo o mundo desde meados do século XIX”.
Esta crise, bem como alguns aspetos políticos que estão na sua origem, está a forçar a uma redefinição da relação entre o Líbano e a União Europeia — que têm um Acordo de Associação em vigor desde 2006.
“A UE não pode continuar a apoiar sem que se encontre um plano de recuperação para o país”, afirmou ao Expresso a eurodeputada Isabel Santos, acabada de regressar de uma visita de dois dias ao Líbano, onde chefiou uma delegação do Parlamento Europeu. “É importante que se chegue a acordo com o Fundo Monetário Internacional [FMI] e que, com base nesse apoio, a UE também possa participar.”
“Os atores políticos libaneses têm de entender, de uma vez por todas, que não há mais espaço para falhanços. Tem de haver um compromisso muito sério de todos na reconstrução do país. Não podemos estar sempre à espera de que haja algo ou alguém que nos salve. A solução para o Líbano tem de vir de dentro.”
O Líbano está, há cerca de um mês, em conversações com o FMI na busca de um plano de resgate para o país. No início desta semana, o primeiro-ministro libanês, o empresário milionário Najib Mikati, assegurou que as negociações preliminares estão a avançar. “Não sei qual vai ser o acordo, mas parece-me claro que o FMI exigirá transparência, regras de boa governação e de combate à corrupção”, comentou a eurodeputada do PS.
“Claro que a ajuda humanitária continua a ser disponibilizada através de organizações no terreno, que fazem chegar esse apoio às pessoas necessitadas”, continuou Isabel Santos. “Mas há todo um processo de assistência macrofinanceira que só pode ser desenvolvido depois desse acordo com o FMI.”
Salário de $3000 passou a valer $200
Em especial nos últimos dois anos, a crise irrompeu de forma impiedosa pelas casas dos libaneses. “A maioria da população só tem acesso a eletricidade duas horas por dia”, exemplificou Isabel Santos. “A libra libanesa desvalorizou 90%”, o que atirou “74% da população para uma situação de pobreza”.
“E este é um país que acolhe 1,5 milhões de refugiados… Garantir condições mínimas para estas pessoas também pesa na sociedade libanesa. Algumas delas já estão no país há 60 anos, como os refugiados palestinianos”, acrescenta a eurodeputada.
Uma reportagem publicada esta semana pela agência Reuters ilustra de forma particular a dramática perda do poder de compra no país. Os salários dos cerca de 100 músicos da Orquestra Sinfónica Nacional passaram de 3000 dólares para cerca de 200. Os instrumentistas estrangeiros foram embora, mas, escreve a Reuters no título do artigo, “como no Titanic, a orquestra do Líbano continua a tocar enquanto o país afunda”.
“É dramático vermos um país que foi considerado a Suíça do Médio Oriente num estado absolutamente deplorável”, comentou Isabel Santos.
Um sistema que só bloqueia
Em pano de fundo desta esta crise, há um estado de ingovernabilidade permanente que decorre da especificidade do sistema político. “Se houve algo comum nas conversas que a delegação do Parlamento Europeu teve com os diversos atores é que este sistema assente no modelo confessional não funciona e cria constantes bloqueios ao funcionamento do país”, disse a deputada.
“É preciso que se encontre a fórmula para uma reforma de todo o sistema e que se abandone, de uma vez por todas, um sistema baseado em quotas que tem por base a confessionalidade de diferentes grupos presentes na sociedade.”
Esse apelo foi repetido por representantes da sociedade civil, mas também por membros da classe política. “Mas há que colocar uma grande questão: se a classe política expressa essa vontade, porque não empreende as reformas?”, questiona Isabel Santos.
“Há uma classe política que está instalada, que faz um discurso que sabe que vai ao encontro daquilo que é a opinião da sociedade civil, no sentido de que é preciso mudar, mas que não se mexe para mudar. É uma classe política instalada num esquema muito próprio de equilíbrios que tem por base a pertença a grupos religiosos. E todos ganham com isso.”
Grupos confessionais
- Oficialmente, a lei libanesa reconhece 18 grupos religiosos.
- O poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades, consoante o seu peso demográfico.
- O Presidente libanês é sempre um cristão maronita, o primeiro-ministro um sunita e o presidente do Parlamento um xiita.
- As 18 confissões reconhecidas são: xiitas, sunitas, alauitas, ismaelitas, maronitas, ortodoxos gregos, católicos gregos, ortodoxos arménios, católicos arménios, ortodoxos siríacos, católicos siríacos, assírios nestorianos, caldeus, coptas, católicos romanos, protestantes, drusos e judeus.
“É um sistema que só bloqueia”, comenta a eurodeputada portuguesa. “Quando se fala na necessidade de substituir um ministro que faz parte de determinada fação religiosa, logo essa fação proclama a saída de outro ministro de outro grupo político. Isto não é aceitável. As pessoas têm de governar por competência e não por pertença a um ou outro grupo identitário.”
Na prática, esta complexa teia político-religiosa contribui, muitas vezes, para períodos de paralisia. As últimas eleições gerais, por exemplo, realizadas a 6 de maio de 2018, estavam originalmente marcadas para… 2013 (foram adiadas em 2013, 2014 e 2017). As próximas eleições deverão realizar-se a 27 de março de 2022.
O Governo atual, em funções desde 10 de setembro, surgiu após um impasse político de 13 meses. Mas tinha apenas um mês de vida quando foi desafiado por poderosos interesses sectários. A meio de outubro, em Beirute, uma manifestação convocada pelos movimentos xiitas Hezbollah e Amal originou tiroteios de que resultaram seis mortos — e o receio do regresso à guerra civil (1975-1990).
O protesto teve como objetivo exigir o afastamento do juiz Tarek Bitar, que lidera a investigação à explosão no porto da capital libanesa — provocada pelo armazenamento, sem condições de segurança, de 2750 toneladas de nitrato de amónio, que provocou 214 mortos, mais de 6500 feridos e a destruição de vários bairros da cidade. O magistrado quer interrogar políticos de todos os quadrantes, o que se tem revelado desafiante.
Protestos deste tipo indiciam uma tentativa de boicote à investigação, para que não avance, “ou pelo menos não avance num certo sentido”, afirmou Isabel Santos ao Expresso.
“Há políticos que se negam a comparecer diante do juiz e a prestar declarações, o que não é de todo aceitável. Ninguém está acima da lei e a impunidade não pode ser lei em lado nenhum”, acrescentou. “Os acontecimentos em torno da investigação à explosão têm sinais muito preocupantes de ingerência no poder judicial, o que não pode ser de todo aceite pela UE. A justiça não pode ser condicionada no seu funcionamento. Essa é uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada.”
O poder das milícias
Insanáveis diferenças identitárias aliadas à degradação económica contribuem para um quotidiano altamente explosivo. “As forças de segurança vivem numa situação muito má, estão com restrições nos vencimentos, com condições de vida absolutamente precárias. Tudo isto acrescenta muita preocupação”, desde logo em relação à segurança do país, disse Isabel Santos. “O Líbano não pode ficar na mão de milícias, sejam elas de que grupo forem.”
Em Beirute, a delegação da UE encontrou-se com o Presidente Michel Aoun, com o presidente do Parlamento, com o vice-primeiro-ministro (que tutela a negociação com o FMI) e com o ministro da Administração Interna (que tem a seu cargo as questões de segurança e a gestão do processo eleitoral).
Os quatro eurodeputados reuniram-se com membros da sociedade civil, que expressaram “um grau enorme de desconfiança em relação a todo o sistema político”, e familiares das vítimas da explosão no porto. “Foi um encontro muito marcante, pela carga emocional que comporta e pelo sentimento de injustiça que estas pessoas trazem dentro de si, e que ultrapassa a explosão e a perda dos seus familiares”, concluiu Isabel Santos.
“O sucedido no porto de Beirute é só o acontecimento mais visível do acumular de muitas coisas num Estado canibalizado pela corrupção, pela impunidade, pela desordem total. É preciso encontrar uma saída. Não podemos ter mais um Estado falhado naquela região.”
(FOTO A missão do Parlamento Europeu, na companhia do Presidente libanês, Michel Aoun (ao centro), no Palácio Baabda, em Beirute. Isabel Santos está de vestido GETTY IMAGES)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui