Acontecimento internacional do ano. Os talibãs estão de volta ao poder

Vinte anos após o início de uma guerra declarada para os derrubar, os talibãs são de novo Governo em Cabul. Como se EUA e NATO nunca lá tivessem estado

Símbolos do domínio talibã no Afeganistão: mulheres cobertas com burqa e a cavidade vazia onde existiu um dos budas gigantes dinamitados pelos extremistas, em Bamiyan. Esta foto foi tirada a 17 de junho de 2012 SGT. KEN SCAR / WIKIMEDIA COMMONS

O novo normal no Afeganistão é um cenário de terror de onde quem lá vive tenta fugir a todo o custo. A recente chegada a Portugal de um grupo de jovens músicas que integram a orquestra do Instituto Nacional de Música do Afeganistão é só um exemplo.

Desde que os talibãs recuperaram as rédeas do poder, a 15 de agosto, o quotidiano do país está envolto em atos de vingança e manifestações de intolerância tais que garantem ao Afeganistão um lugar de destaque nos relatórios internacionais relativos ao exercício de direitos e liberdades, pelas piores razões.

A música é proibida em locais públicos. Afegãos que trabalharam para forças militares estrangeiras recebem visitas de talibãs, com o intuito de os levar de casa, sem regresso garantido. Por todo o país, em especial em zonas recônditas, multiplicam-se relatos de detenções, tortura e execuções de cidadãos afetos ao antigo regime, de ataques contra ativistas, jornalistas, religiosos e personalidades da cultura. A lei dos talibãs voltou a punir ladrões com enforcamentos em praça pública e a autorizar agressões nas ruas a transeuntes que, de alguma forma, não se apresentem consoante os códigos defendidos pelos “estudantes de teologia”. Ainda que o novo poder prometa uma amnistia geral, no terreno, os militantes têm sede de desforra.

As mulheres estão, para já, proibidas de estudar e de trabalhar, exceção feita a médicas, essenciais para o atendimento de pacientes do sexo feminino nos hospitais. Os talibãs garantem que as restrições impostas às mulheres são temporárias. Ironicamente, é uma mulher que, atualmente, personaliza o principal obstáculo que o novo regime talibã enfrenta — o do reconhecimento internacional.

No final de julho, a menos de um mês de os talibãs entrarem em Cabul, Adela Raz, afegã de 35 anos, foi nomeada embaixadora do Afeganistão nos Estados Unidos. Sem o reconhecimento formal do novo regime por parte de Washington, os talibãs não conseguem substituí-la, ainda que, inversamente, a diplomata esteja cada vez mais de mãos atadas, sem autoridade nem fundos para assegurar o funcionamento da embaixada. Na semana passada, outro diplomata afegão, Ghulam Isaczai, cedeu às circunstâncias e demitiu-se da chefia da missão do Afeganistão na ONU.

Sem reconhecimento

Quando foram poder pela primeira vez (1996-2001), os talibãs viram três países reconhecerem o Emirado Islâmico do Afeganistão: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Passados 20 anos, não há Estado que arrisque ser pioneiro a legitimar um sistema de governo igualmente retrógrado e medieval.

Quatro meses após voltarem ao poder, não se pode dizer que os talibãs vivam num isolamento diplomático absoluto. A China, por exemplo — que precisa do Afeganistão para que não aumente o problema na região de Xinjiang (onde os uigures, a minoria muçulmana chinesa, vivem em campos de concentração) —, já entregou aos talibãs milhões em ajuda de emergência. Mas as autoridades de Pequim não avançam sozinhas para o reconhecimento de um regime que prometeu moderação e inclusão e acabou a escolher um governo sem mulheres, com pouca diversidade étnica e até com um ministro procurado pela Interpol (o que não é novidade no Afeganistão). “As coisas serão diferentes quando a China, o Paquistão, a Rússia e o Irão chegarem a um consenso sobre o assunto”, assegurou o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi.

Só aparentemente os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas com negociações que tornaram o regresso ao poder inevitável

Paralelamente à vantagem política de serem aceites na cena internacional como iguais entre pares, o reconhecimento internacional é crucial para que o Governo talibã consiga aceder a empréstimos e financiamentos, em particular junto de instituições como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, e veja sanções serem levantadas, o que só acontecerá caso se comporte dentro de determinados limites. Sem apoio internacional, não haverá dinheiro para pagar salários e fica comprometida a administração — e estabilidade — de um país com cerca de 40 milhões de habitantes e índices de pobreza gritantes.

Décadas de guerras

Dono de uma geografia que tem tanto de estonteante como de agreste — sem litoral, com extensas regiões escassamente povoadas e pelo menos quatro montanhas com cumes acima dos 7000 metros —, o Afeganistão é também consequência de décadas de conflitos. Nos últimos 200 anos, por entre períodos de confrontos internos entre os diferentes grupos étnicos, o orgulhoso povo afegão enfrentou três potências estrangeiras: o Império Britânico (1838-42, 1878-80 e 1919-21), a União Soviética (1979-1989) e os Estados Unidos (2001-2021). Todas saíram do Afeganistão derrotadas e os afegãos consolidaram a fama de insubmissos.

O regresso dos talibãs ao poder resulta, pois, de mais uma guerra mal conduzida por quem se propôs erradicar as raízes do terrorismo internacional. Declarada para vingar o 11 de Setembro, derrubar o regime talibã — que permitiu que a Al-Qaeda usasse o Afeganistão para atacar Washington e Nova Iorque — e impedir que o país continuasse a ser porto seguro para terroristas, a invasão do Afeganistão revelou-se uma missão de contraterrorismo que não foi pensada para construir um novo país, em termos políticos e militares.

Essa ilusão ficou a descoberto quando os “estudantes” reassumiram o Governo de Cabul no momento em que as últimas tropas da NATO regressavam a casa. Contrariamente a 2001, quando a entrada em Cabul foi antecedida por dias de bombardeamentos sobre a capital, desta vez os talibãs marcharam de forma fulminante e sem enfrentarem a mínima resistência.

Só aparentemente é que os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. Desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas beneficiando de negociações que tornaram o seu regresso ao poder inevitável, mal a NATO virasse costas.

Falta de liderança

A inércia quer das forças armadas quer de milícias afetas a senhores da guerra (alguns dos quais fugiram mesmo do país) indicia cumplicidade entre fações que noutros tempos se digladiavam até à morte. A exceção foi um grupo de combatentes tajiques, liderados por um filho do lendário comandante Massud, que, entrincheirado no vale do Panjshir, apenas conseguiu atrasar uns dias a vitória total dos talibãs.

A inação das tropas governamentais expõe problemas de liderança, simbolizados na fuga do Presidente Ashraf Ghani para o estrangeiro, mas também na facilidade com que muitos soldados afegãos passaram para as hostes talibãs. Entre as suas motivações está um sentimento de abandono decorrente, por exemplo, de salários em atraso. Outra vulnerabilidade das forças armadas afegãs — cuja constituição foi a grande prioridade da missão da NATO — é terem sido criadas em função de lealdades tribais, e não em obediência a uma cadeia de comando funcional.

Mas algo mais escancarou as portas do poder aos talibãs: o processo negocial que decorreu com os Estados Unidos em Doha, a capital do Catar, onde os “estudantes” abriram escritório por volta de 2010. Essas conversações diretas culminaram na assinatura de um acordo de paz, a 29 de fevereiro de 2020, entre a Administração Trump e a liderança talibã — à revelia e sob protesto do Governo de Cabul.

Através desse entendimento, Washington obteve a garantia de que os talibãs não manteriam relações com a Al-Qaeda nem permitiriam que o seu território se tornasse albergue de organizações terroristas. Por seu lado, a fatura apresentada pelos talibãs foi a retirada de todas as tropas estrangeiras do país.

Que mudou Joe Biden?

Com Joe Biden na Casa Branca, não só os Estados Unidos mantiveram a estratégia traçada pela equipa de Donald Trump — sem tentar sequer endurecer exigências — como anteciparam a data de saída do Afeganistão de 11 de setembro para 31 de agosto.

Esse adiantamento poupou os norte-americanos ao embaraço de verem coincidir o 20.º aniversário do 11 de Setembro com o regresso dos talibãs ao poder, mas não protegeu Washington de acusações de traição por parte de afegãos nem de uma imagem de humilhação, patente no caos em que decorreram os últimos dias da retirada, com 183 mortos num atentado do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) no aeroporto de Cabul (entre os quais 12 norte-americanos) e milhares de afegãos a escalarem aviões em tentativas desesperadas para saírem do país.

Sair ou ficar pode ser a diferença entre viver ou morrer. É o que se depreende das palavras ao Expresso de um afegão que tem a cabeça a prémio, por ter colaborado com os Estados Unidos: “Os talibãs têm muito dinheiro proveniente dos serviços alfandegários, mas não percebem nada de governação. Estão unidos a matar e matar. Não têm nenhuma humanidade, nenhuma dignidade.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

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