O afiar de sabres alterna com os toques de telefone. Será possível evitar a guerra?
Não entrar em pânico nem fazer o jogo de Moscovo, ao mesmo tempo que se mostra firmeza, parecem ser palavras de ordem na Ucrânia. Por um lado, o Presidente do país assegurava anteontem que “os riscos [de invasão russa] não existem há apenas um dia, e não cresceram”. Volodymyr Zelensky defendeu que o que aumentou foi “o ruído à volta desses riscos”, enquadrando a concentração de militares russos na fronteira ucraniana — estima-se que mais de 100 mil — numa “guerra de nervos”.
“Agora o conflito está muito nas notícias, mas há que recordar que os ucranianos lidam com isto há anos. Não há medo, mas há grande cansaço”, conta ao Expresso Yehven Doloshytskyy, analista financeiro, de 28 anos, que chegou a Portugal com nove. “Todos já vimos a morte, é essa experiência que nos une”, corrobora o seu compatriota Yuriy Bilinskyy, que vive em Portugal há 22 anos. Partilha a fotografia de uma mulher que ostenta uma enorme espingarda na mão com a legenda: “Mãe de três filhos protege-se contra a ameaça da Rússia.” A tensão não o impede de viajar para a Ucrânia por estes dias, para ver um sobrinho que completa um ano de vida, e assegura que a vida segue o seu curso, apesar da tensão. “As pessoas vão ao cinema, ao teatro, ao café, juntam-se em casa de amigos. Já fomos invadidos há oito anos, não é um problema recente.”
Bilinskyy, que tem uma pequena agência de viagens em Lisboa, recorre à História: “Não há império russo sem a Ucrânia. A chave mestra é Kiev, berço da Igreja Ortodoxa, por isso o senhor que manda em Moscovo precisa de nós para o seu plano de reativar a ordem geoestratégica estabelecida em Ialta, a divisão do mundo. Mas Putin tem um problema: é que nós somos independentes.” Doloshytskyy concorda: “Não vamos voltar a Ialta, isso é para esquecer, e Putin sabe-o.”
Telefonema Macron-Putin
Evitar que guerras do passado se repitam no presente tem sido a prioridade da comunidade internacional, em rondas de negociações sucessivas, de que hoje se joga novo capítulo: o Presidente francês, Emmanuel Macron, falará ao telefone com o seu homólogo russo, Vladimir Putin. Este tem exigido um compromisso firme de que a NATO não se expandirá para leste e a retirada de efetivos ocidentais dos países que fazem fronteira com a Rússia. Do lado atlântico ouve-se a defesa da soberania da Ucrânia para decidir a que alianças aderir e reclama-se uma desmobilização das tropas russas.
Que peso terão vozes como a de Macron ou do chanceler alemão, Olaf Scholz, junto do Kremlin? O Expresso falou com Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, que aponta dissonâncias entre aliados europeus. “A Alemanha tem tido posição muito cética e muito cautelosa, já antiga, em relação a hostilizar Moscovo ainda mais.” Isso explica-se por razões de interdependência económica: “Há o projeto Nord Stream, a conduta de gás que, quando finalizada, vai ligar a Rússia diretamente à Alemanha, e é uma forma de os dois países comercializarem evitando o caminho através da Ucrânia e da Bielorrússia, vistas pela Rússia e pela Alemanha como Estados potencialmente instáveis.” Isso dá a Berlim, a seu ver, vontade de “mediar e procurar soluções diplomáticas”. Quais? “Não é evidente.”
Paris depende muito menos de Moscovo do ponto de vista geoestratégico. “Muito do seu gás natural vem do Magrebe”, lembra Fazendeiro, aludindo ainda à energia nuclear, usada por França e abandonada pela Alemanha. Macron pode, pois, ser uma voz “mais vincada e assertiva em relação à Rússia”, o que agradaria aos países da Europa de Leste, mormente aos Bálticos e à Polónia. O que isto demonstra é que “a União Europeia e os Estados da NATO não têm posição concertada e clara, como é típico da UE”.
“NÃO HÁ IMPÉRIO RUSSO SEM A UCRÂNIA. MAS PUTIN TEM UM PROBLEMA: SOMOS INDEPENDENTES”, DIZ UM UCRANIANO A VIVER EM PORTUGAL
Doloshytskyy, o ucraniano ouvido pelo Expresso, sente-se desiludido com a UE, que mesmo em 2014, quando um avião da Malaysia Airlines foi atingido por um míssil russo, “impôs sanções, fez uns comunicados, e mais nada”. Está ciente de que “os europeus não querem mandar os filhos morrer numa guerra lá longe”. Embora reconheça como legítima a expectativa russa de que a NATO não cresça para oriente, diz: “Um ucraniano olha para a República Checa, para a Polónia, para aquela espécie de nova Europa Central, e quer evoluir nesse sentido. Com a Rússia sempre a ameaçar, essa estrada está bloqueada.” “Parte significativa da população ucraniana encara com bons olhos não só a adesão à UE como até à NATO”, acrescenta Fazendeiro.
EUA: prioridade é a China
A Europa está, não pela primeira vez, pendente da posição americana. Esta semana, o Presidente, Joe Biden, ameaçou Putin com sanções pessoais e recusou-se a dar-lhe as garantias que reivindica. Para Fazendeiro, “o principal objetivo geoestratégico e geopolítico de Washington é a preocupação com a China”. As distrações europeias não são bem-vindas, por tanto, mas são incontornáveis. “Os Estados Unidos não querem parecer fracos em relação à Rússia, para não parecer, em relação à China, que podem ser facilmente chantageados a tomar ou mudar de posição”, explica o académico. Acresce o compromisso com a defesa da Ucrânia, “que aumentou significativamente depois de 2014”, ano em que a Rússia anexou a península da Crimeia.
O perito crê que a garantia de a NATO não acolher a Ucrânia poderia não chegar para Putin. Num ensaio redigido no verão passado, o líder russo “fala da Ucrânia e da Rússia como Estados inseparáveis, irmãos históricos, que é uma posição antiga russa”. Referindo o desagrado russo com uma nova lei ucraniana que promove a língua nacional em detrimento do russo (que é língua materna de 30% da população), remata: “Talvez a Rússia queira uma modificação muito mais profunda dentro da Ucrânia e não apenas alterar o posicionamento do país a nível geoestratégico.”
(MAPA WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo escrito com Ana França e Pedro Cordeiro.
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de janeiro de 2022













