Rédea curta na ‘vizinhança próxima’

A expansão da NATO para leste desafiou as pretensões de segurança da Rússia na sua fronteira. Quem olha para Ocidente, como a Ucrânia, paga caro

Nas relações internacionais, uma dicotomia que muito revela sobre as opções geopolíticas dos Estados é a que distingue países marítimos e continentais. Os primeiros projetam poder e influência através dos mares. Os segundos vivem numa insegurança permanente. Sem mar que os proteja, depositam a sua defesa na conquista de mais território para expandirem as suas fronteiras o mais longe possível. A Rússia é o exemplo perfeito de uma potência continental. E toda a tensão que se vive, atualmente, em redor da Ucrânia é sintoma dessa circunstância.

“A Rússia é uma grande massa continental”, que abarca 11 fusos horários. “É um grande enclave, que precisa de garantir pontos de acesso, nomeadamente aos mares quentes”, navegáveis. “Assim se explica, por exemplo, a aliança com a Síria e o apoio a Bashar al-Assad”, diz ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho. “Apesar de ser, hoje, o maior país do mundo, a Rússia nunca foi tão pequena desde a conquista da Sibéria, no século XVII. Isto tem um impacto mental, ao nível das perceções das ameaças, extremamente relevante.”

Desde o fim da Guerra Fria (1989), e em especial desde a desintegração da União Soviética (URSS), em 1991, que um complexo de cerco se acentuou na forma como a Rússia perceciona a sua “vizinhança próxima” — um termo cunhado, em 1993, pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros Andrei Kozyrev. Mais ainda após a expansão da NATO e da União Europeia (UE) para leste, à custa de territórios que faziam parte da URSS ou pertenciam à sua esfera de influência.

MAPA: EXPANSÃO DA NATO NA DIREÇÃO DA RÚSSIA

Durante a Guerra Fria, a rivalidade entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) originou a formação de duas alianças militares que se tocavam no Muro de Berlim. A NATO, fundada em 1949, era liderada pelos norte-americanos e o Pacto de Varsóvia, criado em 1955 e dissolvido em 1991, pelos soviéticos. Desde a queda do Muro (1989) que países da antiga esfera de influência soviética têm aderido à organização ocidental — para grande nervosismo da Rússia, herdeira do legado da URSS

“Os três países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia — eram repúblicas socialistas soviéticas que se demarcaram por completo da Rússia, viraram-lhe costas e aderiram à NATO e à UE. Os outros países continuaram a manter relações privilegiadas com a Rússia, não forçosamente por vontade, mas por necessidade”, diz a académica. E sempre que algum deles expressa o desejo de seguir o rasto dos Bálticos, a Rússia pressente-o como ameaça e reage.

“A Rússia moderna [pós-1991] vê-se com uma fronteira enorme, que é extremamente sensível para as suas pretensões de segurança. A Rússia sempre considerou a NATO um clube do qual não faz parte e, de certa forma, uma ameaça às suas fronteiras. Já era assim nos anos 90, mas agora a Rússia tem os meios de pressão para dizer que não quer mais um alargamento da NATO junto à sua fronteira”, prossegue Sandra Fernandes.

Ucrânia e Geórgia, os seguintes

Na fila para aderirem à NATO estão, desde 2008, dois países da “vizinhança próxima” da Rússia: Ucrânia e Geórgia. “Em 2008 houve uma grande campanha diplomática dos Estados Unidos. O Presidente George W. Bush queria deixar como legado a abertura da NATO a esses dois países. França e Alemanha foram mais cautelosas, perceberam que se tratava de uma linha vermelha para a Rússia. Então, foi oferecida a esses dois países uma perspetiva de adesão sem data.”

Precisamente em 2008, Moscovo utilizou a força armada em solo europeu pela primeira vez desde o fim da URSS, para pôr na ordem o Governo da Geórgia, liderado pelo recém-eleito Mikhail Saakashvili (pró-Ocidente e pró-NATO). Na sequência de cinco dias de guerra, Moscovo acabaria por reconhecer as regiões georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como estados independentes. O que se passa em torno da Ucrânia — liderada desde 2019 por Volodymyr Zelensky, antigo comediante pró-ocidental — é um novo capítulo de um conflito iniciado em 2014, que culminou na anexação da península da Crimeia pela Rússia, e que se insere na mesma estratégia de contenção.

Quarta-feira passada, em Kiev, durante uma visita “de solidariedade” à Ucrânia, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusou a
Rússia de planear aumentar as suas tropas junto às fronteiras da Ucrânia. Na véspera, Moscovo projetou um exercício militar com a Bielorrússia — também contígua à Ucrânia e liderada por Aleksandr Lukashenko, amigo de Putin —, que terá como cenário um hipotético ataque externo. Os receios de nova invasão russa da Ucrânia já levaram a Suécia a reforçar o seu dispositivo militar na ilha de Gotland, no Mar Báltico.

Um ataque cibernético contra sites do Governo ucraniano, sexta-feira passada, foi interpretado como manobra de desestabilização visando a escalada do conflito. Desde o início do ano que missões diplomáticas russas na Ucrânia têm vindo a retirar pessoal, sem que se perceba se é bluff ou preparativo para a guerra. Tudo acontece duas semanas após a Rússia ter enviado tropas para o Cazaquistão — com quem partilha quase 7000 quilómetros de fronteira —, em socorro do Governo acossado por manifestações de rua, que o Presidente cazaque Kasym-Zhomart Tokayev diz serem orquestradas por “forças externas”. “Não permitiremos a ocorrência das chamadas ‘revoluções coloridas’”, garantiu Vladimir Putin, justificando a ajuda militar.

Traumas não muito longínquos

Na mente do chefe de Estado russo estão revoltas populares que resultaram na substituição de governos pró-Moscovo por lideranças pró-ocidentais: a “revolução rosa” (Geórgia, 2003); a “revolução laranja” (Ucrânia, 2004); e a “revolução da tulipa” (Quirguistão, 2005). Ao conter nova “revolução colorida”, a Rússia expõe uma estratégia para a região. “As tropas russas foram enviadas para o Cazaquistão através da Organização do Tratado de Segurança Coletiva [fundada em 1992 pela Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão, Arménia, Quirguistão e Tajiquistão]. Em 2015, a Rússia criou a União Económica Euroasiática [com Cazaquistão, Bielorrússia e Arménia]. Tentou arrastar a Ucrânia, mas não conseguiu”, recorda Sandra Fernandes. Mais do que tentar recuperar a ex-URSS, “a Rússia tenta articular projetos alternativos à NATO e à UE”.

Mais de 30 anos após o fim da Guerra Fria, Washington e aliados continuam a ser o grande inimigo. Neste contexto, para Moscovo, falar-se de NATO ou UE é a mesma coisa. “Não era, mas passou a ser. A UE era uma oportunidade sobretudo de cooperação económica”, diz a investigadora do CICP. “Quando continuou com os alargamentos a leste, paralelos aos da NATO, a Rússia passou a vê-la como um ator geopolítico às suas portas que não serve os seus interesses.”

Há cerca de meio ano, a Rússia atualizou a sua Estratégia de Segurança Nacional. A nova doutrina revela “um país que se sente ameaçado e se vira para dentro, à procura de soluções. Um país que não vê os interesses servidos numa relação com o Ocidente e que está a isolar-se muito.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de janeiro de 2022. Pode ser consultado aqui

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