A Rússia não está isolada no seu ataque à Ucrânia: estes são os seis países que estão solidários com Moscovo

A condenação generalizada à invasão russa de território da Ucrânia não teve repercussão num conjunto de países. A maioria deles é castigada, há anos, por sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos

BIELORRÚSSIA

A entrada de tropas russas na Ucrânia concretizou-se por três frentes, uma das quais a partir de território bielorrusso. O país liderado por Aleksandr Lukashenko, que está no poder desde 1994 — longevidade que lhe vale o epíteto de “o último ditador da Europa” —, é um sólido aliado da Rússia.

Entre 10 e 20 de fevereiro, a realização de exercícios militares entre forças russas e bielorrussas contribuiu fortemente para a escalada da tensão na região. E com razão, já que no dia depois de terminarem, Moscovo reconheceu a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, ao que se seguiu a invasão da Ucrânia.

A permanência das tropas russas em território bielorrusso terminadas as manobras militares conjuntas indiciava o pior. A Bielorrússia deve lutar pela “sua independência” e contra a “ditadura”, apelou então a líder da oposição Svetlana Tikhanovskaya — tida pelo Ocidente como a vencedora das presidenciais de 2020 e que vive exilada —, considerando que a soberania do seu país estava ameaçada pela presença militar russa.

No próximo domingo, poderá ser dado mais um passo no crescente domínio de Moscovo sobre Minsk. Os bielorrussos estão convocados para se pronunciarem num referendo sobre alterações à Constituição e entre os assuntos em questão está a possibilidade de o Presidente Lukashenko autorizar a instalação de armas nucleares russas naquela antiga república soviética.

VENEZUELA

“A Venezuela está com Putin e com a Rússia, está com as causas corajosas e justas do mundo, e vamo-nos aliar cada vez mais”, reagiu, de forma inequívoca, Nicolás Maduro, às notícias da invasão russa da Ucrânia. O Presidente venezuelano acrescentou que a NATO e os Estados Unidos querem acabar militarmente com a Rússia por estarem “habituados a fazer o que querem no mundo”.

Na semana passada, quando da passagem por Caracas do vice-primeiro-ministro russo Yuri Borisov, os dois países assinaram um acordo de cooperação militar. Maduro defendeu que este compromisso “confirmou o caminho para uma poderosa cooperação militar entre Rússia e Venezuela para defender a paz e a soberania”.

As relações entre Moscovo e Caracas estreitaram-se sobretudo com Hugo Chávez, o antecessor de Maduro que ocupou o Palácio de Miraflores entre 1999 e 2013. Então, o venezuelano aproveitou o boom do petróleo, de que a Venezuela é produtora, e comprou aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

Para a Venezuela, a Rússia é um mercado que permite contornar o efeito das sanções internacionais decretadas ao país. Este alinhamento entre os dois países já se fez sentir noutras crises. Em 2008, a Venezuela foi dos poucos países a reconhecer a independência das regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul, em território da Geórgia.

SÍRIA

O grande aliado da Rússia na conturbada região do Médio Oriente tornou-se o segundo Estado em todo o mundo a reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A decisão confirma a solidez da relação entre estes dois países.

É na Síria — em Tartus — que Moscovo tem a sua única base militar que lhe permite o acesso aos mares quentes (no caso o Mediterrâneo) e por isso navegáveis. A conservação deste local estratégico, num país que está em guerra desde 2011, justifica o apoio direto e incondicional da Rússia a Bashar al-Assad, que deve a Vladimir Putin a sua permanência no poder.

No atual contexto, foi a vez do regime sírio colocar-se ao lado das opções belicistas de Moscovo. “A Síria apoia a decisão do Presidente Vladimir Putin de reconhecer as repúblicas de Luhansk e Donetsk”, afirmou Faisal Mekdad, o ministro sírio dos Negócios Estrangeiros. “O que o Ocidente está a fazer contra a Rússia é igual ao que fizeram contra a Síria durante a guerra terrorista.”

À semelhança da Venezuela, também a Síria reconheceu, no passado, as ex-repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como Estados independentes.

NICARÁGUA

Daniel Ortega, na presidência da Nicarágua desde 2007, esteve com a Rússia desde a primeira hora desta crise. “O Presidente Putin deu hoje um passo com o qual o que fez foi reconhecer algumas repúblicas que, desde o golpe de 2014, não reconheceram os governos golpistas [na Ucrânia] e estabeleceram o seu governo e lutaram”, disse na segunda-feira, na sequência do reconhecimento russo da independência de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

Ao mencionar o golpe de 2014, Ortega referia-se à deposição do então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, na sequência das manifestações populares que duraram meses e que ficaram conhecidas como Euromaidan. Este protesto saiu, pela primeira vez, às ruas de Kiev na noite de 21 de novembro de 2013, após a decisão do Governo de suspender a assinatura de um Acordo de Associação entre a Ucrânia e a União Europeia (UE). Hoje, Yanukovych vive exilado na Rússia.

Para o líder da Nicarágua, a UE e os Estados Unidos “vêm cercando e ameaçando a Rússia” desde 2014. “A Ucrânia está a procurar uma maneira de entrar na NATO, e entrar na NATO é dizer: vamos à guerra com a Rússia. Isso explica porque a Rússia age do jeito que age. Está simplesmente a defender-se.”

A boa relação entre a Rússia e a Nicarágua decorre muito da experiência guerrilheira de Daniel Ortega, na década de 1980, nas fileiras da Frente Sandinista (marxista). Na cadeira do poder, continua a verbalizar a sua oposição à influência dos Estados Unidos na América Central e — como o revela o problema da Ucrânia — em todo o mundo.

Os EUA, por seu turno, consideraram fraudulentas as eleições presidenciais de 7 de novembro do ano passado, na Nicarágua — que oficialmente Ortega venceu com 76% dos votos — e impuseram sanções a representantes do Estado.

CUBA

É outro país castigado por sanções internacionais, que vive sob embargo dos Estados Unidos desde 1958. Já com a ofensiva russa sobre a Ucrânia em curso, uma delegação parlamentar da Rússia, encabeçada pelo presidente da Duma (Parlamento), Vyacheslav Volodin, realizou uma visita de dois dias à ilha que é governada pelo Partido Comunista há mais de 60 anos.

“A determinação dos Estados Unidos em impor a progressiva expansão da NATO até às fronteiras da Federação Russa constitui uma ameaça à segurança nacional deste país e à paz regional e internacional”, defendeu o Ministério cubano dos Negócios Estrangeiros, num comunicado divulgado pouco antes da chegada dos políticos russos. “Cuba defende uma solução diplomática através do diálogo construtivo e respeitoso.”

https://twitter.com/cubaminrex/status/1496694614954237958

A visita à ilha caribenha foi facilitada por uma decisão, esta semana, da câmara baixa da Duma, no sentido de adiar para 2027 o pagamento devido por Havana de algumas tranches da dívida cubana. Em causa está uma verba de 2300 milhões de dólares (2000 milhões de euros), concedidos pela Rússia a Cuba entre 2006 e 2019, para investimentos nas áreas da energia, dos metais e em infraestruturas de transportes.

NAURU

Antes de qualquer explicação, impõe-se localizar este país no mapa-mundo. Independente do Reino Unido desde 1968, Nauru é uma ilha do Pacífico que, em 1999, aderiu às Nações Unidas. Nesta organização, Nauru representa também os interesses da Ossétia do Sul, uma ex-república separatista da Geórgia que autoproclamou a sua independência em 2008, prontamente reconhecida pela Rússia.

A relação privilegiada entre Nauru e a Ossétia do Sul começou a ganhar forma em 2009 quando a pequena ilha seguiu a posição de Moscovo e também procedeu ao reconhecimento da soberania desse território, e também da Abecásia.

Hoje, esse precedente faz com que Nauru seja apontado como já tendo reconhecido a independência das regiões secessionistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, embora não haja conhecimento de qualquer declaração governamental nesse sentido.

A expectativa surge em função da relação próxima que Nauru tem desenvolvido com a Rússia. Para um território com poucos recursos, qualquer assistência económica é sempre bem-vinda e gera consequências políticas — foi o que aconteceu entre os dois países. O início desta proximidade terá sido uma conferência de doadores, em 2005, organizada pelas autoridades de Nauru para apresentação da sua Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e angariação de financiamento. A Rússia correspondeu como nenhum outro país.

A relação foi sendo sucessivamente alimentada com outros cheques. Segundo o jornal russo “Kommersant”, em 2009 — pouco antes da ilha reconhecer a independência das duas repúblicas do Cáucaso —, Moscovo desembolsou 50 milhões de dólares (45 milhões de euros) em ajuda humanitária a Nauru.

(FOTO Visita de Vladimir Putin e Bashar al-Assad, Presidentes da Rússia e da Síria, à Catedral Ortodoxa de Damasco, a 7 de janeiro de 2020, na Síria KREMLIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Novo acordo nuclear à vista

Viena acolhe há 10 meses negociações sobre o nuclear iraniano. O negociador-mor garante: “Aproximamo-nos do fim”

A bandeira do Irão numa bomba FREE*SVG

Que é feito do acordo sobre o programa nuclear iraniano?

Há negociações em curso com vista à sua reativação e um novo compromisso pode estar a dias de ser anunciado. “As conversações sobre o [acordo] nuclear em Viena estão a chegar a um ponto sensível e importante”, alertou, quarta-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Hossein Amirabdollahian. “Questionamo-nos se o lado ocidental pode adotar uma abordagem realista para avançarmos para os restantes pontos das conversações.” Enrique Mora, o coordenador dos trabalhos em nome do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, confirmou no Twitter a aproximação à meta. As conversações “estão num momento crucial. Aproximamo-nos do fim após 10 meses de negociações. O resultado é ainda incerto”.

O que se conhece do novo compromisso?

O objetivo é o mesmo de sempre — colocar o programa nuclear do Irão sob supervisão internacional —, mas as negociações estão a contemplar a associação de aspetos inéditos, como a libertação de ocidentais detidos no Irão. O levantamento das sanções é a principal contrapartida de Teerão, designadamente o descongelamento de sete mil milhões de dólares (€6200 milhões) em fundos que o Irão tem em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano.

Que dizem os detratores de um entendimento?

“Podemos ver um acordo em breve”, mas será “mais curto e mais fraco do que o anterior” e permitirá que Teerão construa uma enorme quantidade “de centrifugadoras avançadas sem restrições” quando o acordo expirar, profetizou esta semana Naftali Bennett, primeiro-ministro de Israel. Este país sempre disse que não permitiria que o Irão tivesse armas nucleares.

Os EUA participam no diálogo em Viena?

Participam indiretamente. Há representantes norte-americanos na capital austríaca, mas as reuniões com os iranianos estão restritas à Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha. As negociações decorrem em quatro hotéis (Palais Coburg, Vienna Marriott, Ritz-Carlton e Hotel Imperial), onde estão hospedadas as sete delegações. O regresso dos EUA ao acordo, do qual saíram em 2018, por iniciativa de
Donald Trump, é um objetivo de Joe Biden.

A crise na Ucrânia está a afetar as negociações?

Pode ser surpreendente, mas não, apesar de o diálogo envolver a Rússia e países que já anunciaram sanções a Moscovo após a decisão de reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A perspetiva da guerra avolumou preocupações sobre disrupções no fornecimento energético, o que está a atirar o preço do barril do petróleo para perto dos 100 dólares (€88). A perspetiva de, por força de um novo acordo, o Irão retomar as exportações de crude seria uma boa notícia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Donbass e Kosovo: descubra as diferenças

A turbulência à volta do reconhecimento russo da independência das regiões de Donetsk e Luhansk originaram comparações com o processo de emancipação do Kosovo em relação à Sérvia. O mais jovem país europeu fez, na semana passada, 14 anos

Às primeiras horas, se não minutos, do anúncio do reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk, feito por Vladimir Putin, outro país — além da Ucrânia e da Rússia — ganhou destaque nas discussões que dispararam nas redes sociais: o Kosovo.

Na habitual troca de argumentação entre “prós” e “antis”, não faltou quem recordasse a autoproclamação da independência daquela província sérvia de maioria albanesa para atribuir legitimidade às pretensões das repúblicas separatistas russófilas ucranianas. Independentemente dos argumentos apaixonados de um e outro lado, há semelhanças entre os dois processos.

INDEPENDÊNCIA UNILATERAL

A independência do Kosovo foi proclamada unilateralmente pelos líderes albaneses locais, através de uma declaração aprovada na Assembleia do Kosovo, a 17 de fevereiro de 2008. Esta posição fudamentou a sua legitimidade num referendo realizado em 1999, que apurou que 99,98% dos votantes desejavam viver num país soberano. Todo o processo contou com forte oposição da Sérvia — país aliado da Rússia —, que ainda hoje considera o Kosovo “parte integrante” do seu território.

No caso das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, a autoproclamação da independência ocorreu em 2014, na sequência de dois referendos — cujos resultados não foram reconhecidos por nenhum país — convocados com o intuito de legitimar a criação das duas repúblicas enquanto Kiev estava tomada por manifestações pró-Ocidente. Todo o processo decorreu à revelia da Ucrânia, que nunca deixou de reivindicar a região de Donbass, de que fazem parte Donetsk e Luhansk.

RECONHECIMENTO INTERNACIONAL

Um dia depois de o Kosovo declarar a sua independência, os Estados Unidos reconheceram o novo Estado e estabeleceram relações diplomáticas com ele. O então Presidente George W. Bush defendeu que um Kosovo independente “traria paz à região cicatrizada pela guerra” e que a posição de Washington era “irreversível”. Ela precipitou a de vários outros países, num processo político-diplomático desconcertado que foi particularmente penoso para a União Europeia. A França e o Reino Unido acompanharam os EUA no mesmo dia, Alemanha e Itália demoraram uns dias mais e Portugal uns meses (só reconheceu o Kosovo a 7 de outubro de 2008). Ainda hoje, cinco países da UE, a braços com diferendos territoriais internos, não reconhecem o Kosovo: Espanha, Grécia, Roménia, Eslováquia e Chipre.

Para Donetsk e Luhansk, o principal reconhecimento está conseguido, o da Rússia, mas com sanções internacionais a visarem os “novos Estados”. A dependência em exclusivo do vizinho gigante pode tornar-se um grande fardo para Moscovo. Pode acontecer com estes novos “Estados” o mesmo que às repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul, que a Rússia reconheceu como independentes em 2008, na sequência de uma guerra de onze dias entre a Geórgia e essas “regiões rebeldes”. Ao abrigo do direito internacional, estes territórios continuam a fazer parte da Geórgia, mas cinco países, além da Rússia, reconhecem-lhes soberania: Nicarágua, Venezuela, Síria, Nauru e Vanuatu.

DEFESA E SEGURANÇA

Filhos de um parto tão complicado, estes territórios tendem a crescer sob grande vulnerabilidade. No Kosovo, a NATO lidera no terreno, desde 1999, uma operação de apoio à paz, ali estabelecida na sequência dos 78 dias de bombardeamentos da Aliança Atlântica à Sérvia de Slobodan Milosevic. Estão no território 3750 militares de 28 países. Já em Luhansk e Donetsk, que de ora em diante passam a sentir-se como a nova fronteira de um braço de ferro Leste-Oeste que não se sabe onde se irá revelar a seguir, a maior segurança virá também do exterior, da vizinha Rússia.

Já no decurso da atual crise entre a Ucrânia e a Rússia, estes dois contextos intercetaram-se, não se sabe ainda se no domínio da realidade ou da conspiração. Sexta-feira passada, órgãos de informação russos noticiaram que o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov estava a investigar relatos relativos à presença de mercenários da Albânia, da Bósnia-Herzegozina e do Kosovo na região de Donbass, em apoio das forças ucranianas. O Governo kosovar rejeitou “categoricamente” as acusações, defendendo que a legislação do país “proíbe a participação dos seus cidadãos em guerras no estrangeiro”. Pristina acusou Moscovo de querer desestabilizar os Balcãs Ocidentais.

(MAPA EURASIA REVIEW)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

O líder foi morto, mas o Daesh ainda vive

Sem o território que já teve na Síria e no Iraque, o grupo tenta reagrupar-se e expandir influência para longe

Bandeira do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) WIKIMEDIA COMMONS

Nos últimos dez anos, três Presidentes dos Estados Unidos foram creditados com um reconhecimento quase universal ao anunciarem a morte do “terrorista mais procurado do mundo” às mãos de forças especiais norte-americanas. A 2 de maio de 2011, Barack Obama comunicou a morte de Osama bin Laden, o carismático líder da Al-Qaeda. A 27 de outubro de 2019, Donald Trump descreveu a execução do misterioso Abu Bakr al-Baghdadi, “califa” do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), “após entrar num túnel sem saída, a choramingar e a gritar”.

A 3 de fevereiro passado, foi Joe Biden a confirmar o óbito do desconhecido Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi, sucessor de Al-Baghdadi no Daesh. Este “terrorista horrível”, contou o Presidente, morreu durante “uma operação de contraterrorismo destinada a proteger o povo americano e os nossos aliados, e a tornar o mundo um lugar mais seguro”. Será mesmo?

“Penso que o Daesh está moribundo, em vias de ser erradicado definitivamente. Mas isso não quer dizer que não apareça outra afirmação de radicalismo islâmico”, diz ao Expresso Luís Saraiva, professor na Universidade Lusíada. “Aconteceu com a Al-Qaeda [no Iraque], que deu origem a este ‘Estado Islâmico’. Ainda existem resquícios da Al-Qaeda. O Daesh pode também originar uma evolução, decorrente até da perseguição que a comunidade internacional lhe faz.”

O Daesh é ‘um filho’ da guerra no Iraque, após a invasão americana de 2003. Tem na origem a Al-Qaeda no Iraque, que se alimentou da desintegração do Estado e da destruição do país para crescer. Em 2014, anunciou a criação de um “califado”, com a ambição de estender fronteiras da Índia à Península Ibérica. Embora longe de o concretizar, chegou a controlar um território comparável à Grã-Bretanha, que se estendia entre a Síria e o Iraque.

Em perda, mas capaz

Ao mesmo ritmo que o Daesh ganhou território, também o perdeu, pressionado pela guerra declarada pela coligação militar internacional. Em março de 2019, a conquista da localidade síria de Al-Baghuz pelas Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e apoiadas pelos EUA, foi considerada o fim do “califado”.

“Desde então, o Daesh tem adotado uma atitude mais discreta. O Daesh não é a mesma potência de 2014, mas não deixou de ser uma organização capaz”, diz ao Expresso Carolina Novo, investigadora independente na área do terrorismo e ideologia do Daesh. “Diria que o grupo atravessa mais uma das muitas reorganizações por que já passou. Não apenas ao nível dos seus membros e líder, mas de estratégia. Já não é um protoestado, mas uma organização insurgente.”

O Daesh atravessa mais uma de muitas reorganizações, ao nível de membros, líder e estratégia

Uma prova de resiliência reveladora do empenho do Daesh em reorganizar-se foi o assalto à prisão de Ghwayran, no nordeste da Síria, a 20 de janeiro, por mais de cem homens armados. Aquele que é o principal centro de detenção de jiadistas albergava, na altura, cerca de 3500 — estima-se que também 800 menores, alguns com nacionalidade estrangeira.

Numa demonstração do que é a Síria hoje, a prisão é controlada não pelas forças do Presidente Bashar al-Assad, mas pelos curdos, que só recuperaram o controlo do local após dias de troca de fogo. Este é considerado o maior ataque do Daesh desde a perda do califado, ainda que a maioria dos fugitivos tenha sido recapturada.

Território não é prioridade

“Penso que este episódio demonstra que o grupo não está moribundo, mas a reequipar-se. É importante notarmos que a sua aparente destruição já aconteceu antes. Muitas vezes já se tentou prever o fim do Daesh”, diz Carolina Novo, mestre em História e Relações Internacionais pela Universidade do Porto. “Foi durante um período em que parecia moribundo que o grupo se reergueu mais forte do que nunca e estabeleceu o ‘Estado Islâmico’. Não acredito que vá acontecer na mesma dimensão agora, mas penso que pode servir de lição.”

Contrariamente à estratégia passada, hoje a reinvenção do grupo jiadista não passa pela conquista de uma base territorial, antes “por favorecer a criação de grupos afiliados”, diz a investigadora. “Já o fez em África e na Ásia. Paralelamente, no Médio Oriente, continua a realizar ataques terroristas. Neste momento, a estratégia passa mais por uma atuação descentralizada.”

Franchising terrorista

Luís Saraiva, investigador no Instituto Universitário Militar, refere que os territórios férteis à expansão do Daesh são aqueles onde o controlo e a capacidade de segurança dos Estados evidenciam fragilidades. “Aí vemos aparecer uma espécie de franchising, com grupos radicalizados, islâmicos ou não, a tentarem usar o nome do ‘Estado Islâmico’ para terem alguma projeção internacional. São grupos regionais ou locais que aproveitam o apoio ideológico ou a bandeira do ‘Estado Islâmico’ para dizerem que têm relevância.”

A estratégia do grupo passa por favorecer a criação de grupos afiliados. Já o fez em África e na Ásia

Isso acontece, atualmente, na região moçambicana de Cabo Delgado e em vários outros países, como o Afeganistão. Há duas semanas, Washington anunciou uma recompensa de até 10 milhões de dólares (€8,8 milhões) por informações que conduzam à localização de Sanaullah Ghafari, chefe do Daesh-Khorasan, a designação do grupo no Afeganistão.

Na memória dos Estados Unidos está ainda o negro 26 de agosto passado, em que um único bombista suicida afeto ao Daesh-K matou 13 norte-americanos e pelo menos 170 afegãos no aeroporto de Cabul, quando as tropas internacionais regressavam definitivamente a casa, após uma missão de 20 anos, e milhares de afegãos tentavam, de forma caótica, apanhar boleia para fugir aos talibãs regressados ao poder.

A importância do líder

A história do Daesh, como a da Al-Qaeda, mostra, porém, que a eliminação dos líderes, mesmo os mais carismáticos, não significa a erradicação automática do grupo. Quando muito, dá origem a nova metamorfose.

“À medida que a natureza e estratégia do Daesh se alteram, o mesmo acontece com o papel do chefe. Ainda que seja sempre importante, o grupo depende dele de formas diferentes, consoante a fase em que se encontra”, diz a investigadora Carolina Novo. “Quando o grupo se apresentava, em 2014, como uma entidade estatal, a figura de um líder competente e experiente era crucial para controlar todos os aspetos quotidianos relacionados com o território. Hoje, tendo em conta que o grupo se encontra dividido e se tem dedicado essencialmente a operações de guerrilha e insurgência, uma estrutura de liderança não parece ser tão crucial.”

ONDE ESTÁ O DAESH?

SÍRIA E IRAQUE — Tenta reorganizar-se após ter perdido o “califado”. Os assaltos a prisões são um modus operandi prioritário

ÁFRICA OCIDENTAL — Os países mais permeáveis são Nigéria, Chade, Camarões, Mali, Níger e Burkina Faso. Beneficia do enfraquecimento do Boko Haram e da anunciada retirada das tropas francesas

ÁFRICA CENTRAL — Engloba nesta sua “província” dois países: a República Democrática do Congo, onde, este mês, um grupo ugandês leal ao Daesh invadiu uma prisão; e Moçambique, onde está ativo em Cabo Delgado

NORTE DE ÁFRICA — Outrora feudo da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, o Daesh está ativo na Líbia e no Egito (Península do Sinai). Na Argélia, está adormecido

ÁSIA ORIENTAL — Atua nas Filipinas, país cristão, através de grupos locais. A 27 de janeiro de 2019, reivindicou um ataque a uma igreja (18 mortos e 82 feridos). Também está ativo na Indonésia

IÉMEN — Está há oito anos neste país em guerra e onde tem sede o braço mais ativo da Al-Qaeda (na Península Arábica)

MALDIVAS — Estreou-se em 2020: incendiou cinco lanchas e dois botes,na ilha de Mahibadhoo

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de fevereiro de 2022

Seis razões (e cinco ilustrações) que justificam os apelos ao boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim

Um conjunto de dossiês polémicos, alguns dos quais duram há décadas, colocam a China sob permanente escrutínio internacional. Sempre que Pequim procura projetar prestígio, como acontece com a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, não falta quem recorde que há problemas que continuam por resolver. Da ocupação do Tibete à ameaça de invasão a Taiwan, da repressão da minoria uigur à falta de transparência em relação à origem da pandemia de covid-19

Ocasiões como os Jogos Olímpicos projetam os países que os organizam à escala planetária. Tornam-se montras de poder e de capacidade, mas podem contribuir também para virar os holofotes para situações que se quer manter discretas. É o que acontece com a China, anfitriã dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno até domingo próximo.

Alguns pesos pesados da política, e também do desporto, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim. À semelhança do que aconteceu na cerimónia de abertura, não se farão representar na festa de encerramento. 

O boicote não prejudicou o evento a nível desportivo, já que os mesmos países enviaram atletas para competir, mas beliscou o prestígio de Xi Jinping. Nos corredores políticos, significa uma reprovação tácita da atuação do Presidente chinês e, implicitamente, das lideranças que o antecederam, em problemas que se arrastam há anos.

OCUPAÇÃO DO TIBETE

Apelidada de “teto do mundo”, em virtude dos picos montanhosos que a caracterizam, a região do Tibete vive sob ocupação chinesa há sete décadas. A repressão do povo tibetano — que incluiu a destruição de cerca de 6000 mosteiros e templos budistas — atirou grande parte da população para um exílio forçado. Foi também o destino do líder espiritual Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1989, que acusa o regime chinês de “genocídio cultural”. 

“Estes 50 anos trouxeram sofrimento e destruição incalculáveis à terra e ao povo do Tibete. Hoje, a religião, a cultura, a língua e a identidade estão em vias de extinção. O povo tibetano é visto como um criminoso que merece ser morto”, afirmou em 2009, por altura do 50.º aniversário de uma tentativa de revolta tibetana, que foi reprimida e que o levou ao exílio na Índia. “No entanto, é uma conquista a questão do Tibete estar viva e a comunidade internacional interessar-se cada vez mais por ela. Não tenho dúvidas de que a justiça da causa do Tibete prevalecerá, se continuarmos a trilhar o caminho da verdade e da não-violência.”

Se fosse um país independente, o Tibete seria, em área, o 10.º maior do mundo. Para a China, esse imenso território — que faz fronteira com Myanmar, Butão, Nepal e Índia, nomeadamente com a conflituosa região da Caxemira — é parte inalienável da sua soberania. Para o povo tibetano, é a sua pátria ancestral e um Estado independente desde 1913 (após o fim da dinastia Qing), hoje sob ocupação ilegal.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Aquando dos Jogos Olímpicos (de verão) de Pequim de 2008, a campanha “Liberdade para o Tibete” motivou protestos em todo o mundo. O tradicional rito do transporte da tocha olímpica desde a Grécia até ao local dos Jogos transformou-se numa prova de obstáculos, com ativistas a tentarem romper o cordão de segurança à volta do estafeta para apagar a chama.

Em outubro passado, em vésperas de se repetir o ritual, dois ativistas foram detidos junto à Acrópole de Atenas, após desfraldarem uma bandeira do Tibete e uma tarja que dizia: “Revolução Hong Kong Livre”. Eram uma tibetana de 18 anos e um rapaz de 22, nascido em Hong Kong e a viver no exílio, outro dossiê quente que a China tem em mãos.

CERCO À DEMOCRACIA EM HONG KONG

Quando Hong Kong foi transferido do Reino Unido para a República Popular da China, em 1997, ficou acordado um período de transição de 50 anos, durante o qual a antiga colónia britânica conservaria a sua autonomia económica, bem como direitos e liberdades não extensivos à população da China Continental. 

Esse estatuto — ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” — tem sofrido erosão, com sucessivas leis a subordinarem crescentemente o quotidiano de Hong Kong à vontade de Pequim. A 30 de junho de 2020, a introdução de uma nova Lei da Segurança Nacional no território, na sequência de gigantescas manifestações populares pró-democracia, acentuou esse controlo político e o cerco à oposição democrática.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

A nova lei “limpou” as ruas de manifestantes, que passaram a correr o risco de terem de responder por crimes de “secessão, subversão, terrorismo”, e colocou uma mordaça no sector da comunicação social. Jornais independentes tiveram de fechar portas na sequência da prisão de jornalistas ou da apreensão de ativos. O último foi o “Zhongxin News”, em janeiro passado, e antes dele o “Stand News”, em dezembro. Um dos títulos mais populares, o “Apple Daily”, encerrou em junho de 2020. O seu proprietário, o milionário Jimmy Lay, foi preso e condenado a 14 meses de prisão por “organização de protestos ilegais”.

Na avaliação da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China surge como um dos “predadores” da liberdade de informação. No relatório de 2021, ocupa o 177º lugar (em 180), devido a “censura na Internet, vigilância e propaganda a níveis sem precedentes”. Há 78 jornalistas e 39 “jornalistas cidadãos” presos na China.

‘BIG BROTHER’ CHINÊS

À partida para Pequim, vários comités olímpicos nacionais sugeriram aos membros das respetivas delegações que usassem telemóveis provisórios durante a sua estada na China. Segundo o jornal holandês “De Volkskrant”, o Comité Olímpico dos Países Baixos proibiu mesmo os seus atletas de levarem smartphones e laptops pessoais.

Com o evento a decorrer em tempo de pandemia, a organização solicitou a atletas, dirigentes e jornalistas que instalassem a aplicação MY2020 para reportarem, diariamente, o seu estado de saúde. Esta medida desencadeou receios de espionagem digital.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Nos últimos anos, na China, um sistema de vigilância intrusivo tem ganho contornos cada vez mais Orwellianos. Uma das suas dimensões é o Sistema de Crédito Social, que consiste num mecanismo de pontuação dos cidadãos e que os recompensa ou penaliza em função de comportamentos. 

De iniciativa governamental, este projeto lançado em 2014 ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da China Continental — numa primeira fase, Macau e Hong Kong ficam de fora.

REPRESSÃO DOS UIGURES

A segregação e a violência com que as autoridades chinesas tratam a minoria uigur (muçulmana) têm-lhes valido acusações de “genocídio”. Segundo organizações internacionais dos direitos humanos, nos últimos anos, mais de um milhão de uigures foram enviados para “campos de reeducação” na província de Xinjiang, no noroeste da China. Há denúncias de trabalhos forçados, de esterilização à força de mulheres e relatos de tortura e abusos sexuais.

Pequim tem repetidamente negado maus tratos aos uigures e defende as suas ações em Xinjiang com a necessidade de combater o terrorismo. Dentro desta narrativa, os campos são considerados uma espécie de centros de formação vocacional cujo objetivo é manter os uigures longe da radicalização.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Quando anunciaram o boicote diplomático aos Jogos de Pequim, os Estados Unidos justificaram a posição com o “genocídio e os crimes contra a Humanidade em curso em Xinjiang e outras violações dos direitos humanos” pelo regime chinês.

Numa tentativa de limpar a imagem — ou de passar a mensagem de que não aceita lições em matéria de direitos humanos —, a China proporcionou um momento de grande simbolismo na cerimónia de abertura dos Jogos: um dos dois atletas escolhidos para acender a chama olímpica no interior do estádio foi um esquiador uigur.

ASSÉDIO’ A TAIWAN

Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, esta ilha situada a cerca de 180 km da costa chinesa é um Estado independente para apenas 15 países em todo o mundo (e funciona como tal, sob um regime democrático). Mas a disputa geopolítica em torno do seu futuro político é um desafio à paz mundial.

Para Pequim, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoísta em todo o território chinês e corporiza um projeto político alternativo que ameaça a política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado chinês soberano e Taiwan faz parte dele.

De tempos a tempos, a China manifesta o seu ascendente sobre a ilha fazendo incursões aéreas na área de defesa de Taiwan. Em finais de janeiro, Pequim bateu o recorde diário de intrusões, com 39 aviões de guerra a aproximarem-se da “província rebelde”. Este modus operandi tem valido à China condenações internacionais, mas para Pequim funcionam como simulações de uma eventual invasão de Taiwan no caso de falhar a reunificação por via pacífica, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

A ORIGEM DA COVID

Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19 — cujo vírus foi detetado, pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan —, a falta de explicações sobre como tudo começou origina desconfianças em relação à responsabilidade da China. “Infelizmente, o que vimos da República Popular da China, desde o início desta crise, é incumprimento das suas responsabilidades básicas em termos de acesso e partilha de informações”, acusou o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Entre 14 de janeiro de 10 de fevereiro de 2021 — quase um ano após ser declarada a pandemia —, uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) esteve por fim na China, para tentar apurar factos. Divulgado o relatório final, um conjunto de 14 países, entre os quais os EUA, Reino Unido, Japão e Israel, emitiu um comunicado conjunto dizendo que o relatório “foi significativamente atrasado e não continha acesso a dados e amostras completos e originais”.

Esta posição soou como crítica à influência da China dentro da OMS e à incapacidade da organização conduzir uma investigação independente, já que Pequim pôde vetar cientistas destacados para integrar a missão e impor limitações aos investigadores durante a visita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui