Corrupio diplomático para evitar a guerra

Há 140 mil militares russos estacionados junto à fronteira com a Ucrânia, mas a guerra não é inevitável. As conversações em curso procuram pontos de encontro que reduzam a tensão

Uma conferência de imprensa de dois dirigentes mundiais à meia-noite não é, por si só, algo digno de ficar na História. Mas pode indiciar a importância do assunto que a motivou. Foi o que aconteceu esta semana, em Moscovo, no término de uma conversa sem hora limite entre os presidentes da Rússia e da França. Na agenda de Vladimir Putin e Emmanuel Macron, um único assunto: a escalada da tensão junto à fronteira da Ucrânia, onde a Rússia tem estacionados 140 mil militares fortemente armados que, nas palavras do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, não estão ali “para tomar chá”.

“A diplomacia ainda pode fazer a diferença. As conversações em curso procuram pontos de encontro que facilitem os canais de diálogo e medidas concretas que possam diminuir a tensão”, afirma ao Expresso Maria Raquel Freire, professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “O sublinhar de medidas relativas a controlo de armamento, negociações de novos tratados nucleares e medidas de consolidação de confiança e transparência em matéria militar parece ganhar consistência no meio das posições irreconciliáveis da Rússia e do Ocidente no que toca ao alargamento da NATO.”

De Moscovo, Macron seguiu para Kiev, onde se reuniu com o homólogo ucraniano. Na próxima semana será o novo chanceler alemão a visitar estas duas capitais. Por estes dias, a tensão em torno da Ucrânia mobiliza a diplomacia de quatro países, e outros tantos líderes, em particular.

FRANÇA — Macron no papel de ‘sr. Europa’

Emmanuel Macron é o líder que mais se tem empenhado, de forma visível, em tentar inverter a escalada da situação entre a Rússia e a Ucrânia, com telefonemas tornados públicos e visitas aos principais protagonistas. “Podemos evitar algumas coisas a curto prazo. Mas não penso que venhamos a ter vitórias a curto prazo. Não acredito em milagres espontâneos. Há muita tensão e nervosismo”, disse o chefe de Estado francês, à partida para Moscovo.

Presidente do país que detém a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, Macron divide as suas atenções entre o perigo de novo conflito na Europa e o próximo dia 10 de abril, primeira volta das eleições presidenciais em França, apesar de ainda não ter anunciado a recandidatura. “Naturalmente os líderes aproveitam o momento político para ganhar votos, através do protagonismo que estas ações diplomáticas acarretam”, diz Raquel Freire. “Mas há uma genuína preocupação com a questão da segurança europeia, e da segurança ucraniana.”

ALEMANHA — Scholz embaraçado pelo ‘elefante na sala’

Há apenas dois meses à frente do Executivo alemão, Olaf Scholz realizou, esta semana, a sua primeira visita aos Estados Unidos. Na Casa Branca, Scholz e Joe Biden afirmaram a amizade e união entre os dois países, mas não conseguiram disfarçar o ‘elefante na sala’ que perturba a relação no atual contexto. Biden foi inequívoco ao dizer que, se a Rússia voltar a invadir a Ucrânia, “não haverá mais Nord Stream 2, vamos acabar com isso”. Este gasoduto de 1225 km garante o fornecimento direto de gás natural da Rússia à Alemanha, contornando países politicamente instáveis, como a Ucrânia. Questionado sobre a possibilidade de o Nord Stream 2 ser usado como sanção à Rússia, Scholz deu a resposta possível: “Faz parte do processo não falarmos de tudo em público”.

RÚSSIA — Putin negoceia em posição de força

A cimeira entre Putin e Macron não produziu resultados imediatos, mas, a atentar nas palavras do russo, há espaço para prosseguir com o diálogo. “É bem possível que várias das ideias e propostas [de Macron], sobre as quais provavelmente ainda é muito cedo para falar, possam ser a base de próximos passos conjuntos”, disse.

Raquel Freire admite que esta crise possa ter um desfecho sem confronto bélico. “Ainda acredito que sim, ponderando os ganhos e custos para a Rússia de uma possível invasão. A Rússia assumiu desde o início da escalada de tensão que só a partir de uma posição de força poderia negociar. E é o que tem feito. Conseguiu retomar as conversações ao mais alto nível, suspensas desde 2014, reunindo com Joe Biden, o secretário-geral da NATO e vários líderes europeus.”

Ao enumerar pretensões, Putin indica com clareza até onde está disposto a ir para garanti-las: “Se a Ucrânia aderir à NATO e recuperar a Crimeia pela via militar, os países europeus serão automaticamente arrastados para um conflito com a Rússia”, afirmou, com Macron ao lado.

UCRÂNIA — Zelensky quer ações e não palavras

Na presença de Macron, com quem se reuniu na terça-feira em Kiev, o Presidente ucraniano comentou a abertura de Putin para reduzir a tensão. “Não confio em palavras”, disse Volodymyr Zelensky. “Acredito que todo o político pode ser transparente tomando medidas concretas.”

Mas nesta crise, também Moscovo espera ação de Kiev, desde logo a aplicação dos Acordos de Minsk (2014). Mediados por França e Alemanha, visam um cessar-fogo permanente em Donbass, no leste da Ucrânia, onde forças ucranianas e separatistas pró-Rússia travam uma guerra há oito anos que já fez 14 mil mortos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de fevereiro de 2022

Presentes, mas distantes: assim estiveram Putin e Macron enquanto conversaram sobre a Ucrânia

O Presidente francês chamou a si os esforços para tentar inverter a escalada da tensão entre a Rússia e a Ucrânia e, esta segunda-feira, reuniu-se com o homólogo russo, Vladimir Putin, em Moscovo. Esta terça-feira, viajará para Kiev, para tomar o pulso à sensibilidade ucraniana, sem “acreditar em milagres espontâneos”

Se o protocolo russo não descurou nenhum pormenor nos preparativos para o encontro entre Vladimir Putin e Emmanuel Macron, esta segunda-feira, no Kremlin, então a longa mesa a que se sentaram os chefes de Estado russo e francês tem implícita uma grande distância entre ambos.

O Presidente da França — país que detém a presidência rotativa do Conselho da União Europeia — tem assumido os principais esforços diplomáticos visando uma inversão na escalada da tensão que se faz sentir junto à fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Esta segunda-feira, Macron reuniu-se com Putin em Moscovo, na que foi a primeira deslocação à Rússia de um líder ocidental desde a forte mobilização de tropas russas na direção da Ucrânia.

Querido Emmanuel…

Num relato reproduzido no jornal russo “The Moscow Times”, sentados à mesa, o Presidente francês disse que ali estava para abordar a “situação crítica” na Europa. “Esta discussão pode começar na direção em que precisamos ir, que é uma desescalada”, disse Macron, solicitando “uma resposta que seja útil tanto para a Rússia como para toda a restante Europa”.

Putin dirigiu-se ao homólogo como “querido Emmanuel” e afirmou que os dois países “partilham preocupações sobre segurança na Europa”. Saudou também “o esforço que a atual liderança francesa está a fazer” por resolver as preocupações.

Baixas expectativas

Antes de partir para Moscovo, Macron desdobrou-se em declarações em relação ao que ia, descartando qualquer solução “a curto prazo”. “Devemos tentar eliminar todas as incertezas de ambos os lados e reduzir o campo de ambiguidades, para ver onde estão os pontos de desacordo e os possíveis pontos de convergência”, defendeu. No imediato, “temos que construir os termos de uma equação que possibilite a desescalada a nível militar”. Já em Moscovo, declarou: “Estou razoavelmente otimista, mas não acredito em milagres espontâneos”.

Também o Kremlin, antes do encontro, baixara as expectativas, dizendo que a cimeira Putin-Macron era “muito importante”, mas que não seria de esperar avanços significativos. “A situação é demasiado complexa para que haja avanços decisivos num único encontro”, frisou o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

Paris-Moscovo-Kiev

De Moscovo, Macron parte para o outro lado do conflito, a Ucrânia, onde tem encontro marcado esta terça-feira com o homólogo Volodymyr Zelensky. Na próxima semana, será a vez de o chanceler alemão, Olaf Scholz — que esta segunda-feira foi recebido por Joe Biden em Washington — se deslocar a Moscovo e a Kiev para se reunir com Putin e Zelensky.

Em antecipação à cimeira desta segunda-feira, o diário francês “Le Monde” qualificou a missão diplomática de Macron de “arriscada”. Em causa está a probabilidade de regressar de mãos vazias desta tentativa de mostrar liderança, a dois meses das eleições presidenciais francesas. O atual inquilino do Palácio do Eliseu ainda não anunciou a recandidatura.

FOTO: Vladimir Putin (à esq.) e Emmanuel Macron, reunidos no Kremlin, esta segunda-feira SPUTNIK / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um boicote olímpico para Xi Jinping ver

Vários países decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim, que arrancam hoje. Com que eficácia?

Há oito anos, por esta altura, o mundo temia que a Rússia invadisse a Ucrânia. Para desanuviar a tensão, a 28 de janeiro de 2014 União Europeia e Rússia reuniram-se numa cimeira, em Bruxelas, que terminou com um aperto de mão entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. A trégua era aparente: passado menos de um mês, tropas russas entravam em território ucraniano e a 18 de março seguinte a Crimeia era anexada.

De permeio, a Rússia esbanjou capacidade e organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. “Penso que Putin aceitou participar na cimeira de Bruxelas porque queria assegurar que os Jogos se realizassem sem boicotes e constituíssem uma vitrina diplomática”, diz ao Expresso Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho. “Putin organizou os seus Jogos e assentou a sua imagem como parte de um clube. Instrumentalizou muito bem os Jogos de Sochi.”

O evento não escapou a polémicas, com protestos em todo o mundo contra a perseguição à comunidade LGBT russa, mas nenhum país o boicotou. Oito anos depois, é o Presidente chinês, Xi Jinping, que está confrontado com o êxito de uns Jogos Olímpicos em contexto de grande pressão política.

Direitos humanos no centro

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno que começam hoje em Pequim. Justificam-no com violações dos direitos humanos pelo regime chinês — da questão do Tibete à vigilância draconiana da população, de Hong Kong à repressão da minoria uigure. Putin confirmou a sua presença em Pequim.

“Este boicote diplomático acontece num momento de grande tensão entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, não é assim tão diferente dos boicotes históricos da Guerra Fria”, afirma Sandra Fernandes. Assinala a relação de poder entre “uma China expansionista, muito segura de si, e países que tentam mostrar que há oposição a essa assertividade”. Por outro lado, “na atualidade, a agenda dos direitos humanos e dos valores universalistas é central”, com grande exposição de violações dos direitos humanos nas redes sociais.

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas

Um boicote político neste contexto significa que os países que o aprovam não se farão representar nas cerimónias de abertura e de encerramento, ainda que enviem atletas para competir. Mancha o evento, mas não compromete desportivamente os segundos Jogos Olímpicos na China em 14 anos.

A interrogação é, pois, legítima. Que eficácia têm, na verdade, boicotes e sanções materiais (económicas, financeiras ou comerciais)? Tomemos como exemplo a Coreia do Norte, país isolado do mundo e castigado com várias sanções internacionais.

“A Coreia do Norte guia-se por um modelo de autossuficiência [doutrina Juche] que a leva, em certas alturas, a rejeitar assistência da comunidade internacional, apesar de referências a dificuldades económicas pelo próprio regime, às quais atualmente acresce a pandemia”, diz ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “O facto de ser um país muito fechado resulta de conjunturas internas que o impedem de procurar algo melhor, mas também é reforçado pelas sanções económicas, que o isolam ainda mais.”

Sanções sem efeito

As sanções a Pyongyang têm como principal objetivo forçar o regime a abdicar do armamento nuclear. “Estando uma intervenção na península coreana fora de questão, aplicar sanções tornou-se meio preferencial para lidar com este país e as suas ambições nucleares.” O peso que o regime de Kim Jong-un lhes atribui está exposto: sempre que se perspetivam negociações, o levantamento das sanções surge como principal exigência norte-coreana para fazer cedências. O mesmo acontece com o Irão.

Porém, demonstrações bélicas como a de domingo passado, quando a Coreia do Norte testou um míssil balístico Hwasong-12, de médio e longo alcance — foi o quinto lançamento de mísseis só em janeiro —, provam que as sanções não surtem efeito e podem até estar a provocar um efeito contrário ao desejado. “Ao invés de levarem à desnuclearização da Coreia do Norte, promovem maior apego ao programa, reforçando a ideia, a nível interno, de que a ameaça americana e da comunidade internacional é real, logo a aposta no desenvolvimento do nuclear torna-se necessária para fazer face ao ‘inimigo’”, diz Durão. Para Pyongyang, “as sanções são exemplo da ‘atitude hostil’ de Washington e seus aliados”.

No “quintal” dos Estados Unidos, também a Venezuela é pressionada de fora, visando uma mudança de regime. “As sanções internacionais, sobretudo dos Estados Unidos, não são eficazes quando há apoio de outros poderes, como a Rússia, Irão e outros menos formais, mas muito bem organizados, como a criminalidade”, explica ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa. “As sanções provocaram uma mudança económica — o dólar passou a circular livremente, empresas públicas estão a ser privatizadas —, mas não política. O Governo de Nicolás Maduro continua a controlar as instituições, meios de comunicação e Forças Armadas.”

Não muito longe, Cuba sofre há décadas um embargo dos Estados Unidos. “A ditadura dura há mais de 60 anos, primeiro com apoio da ex-União Soviética e depois do Governo venezuelano”, acrescenta. “Vemos mudanças no modelo económico, mas pouco ou muito pouco a nível político.”

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas. “Procuram outro tipo de alianças, se possível”, conclui Sandra Fernandes. “No contexto atual, em que os Estados Unidos perdem a sua posição hegemónica, ou pelo menos a partilham com outros, isso é cada vez mais real. A universalidade na adoção das sanções é cada vez mais difícil.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2022

Amnistia Internacional acusa Israel de “apartheid”, pela primeira vez: Estado hebraico trata palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”

Em causa está a forma como as autoridades israelitas tratam o povo palestiniano não só nos territórios ocupados como também dentro de Israel. “A Amnistia Internacional apela ao Tribunal Penal Internacional que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos”, diz a organização de defesa dos direitos humanos, num relatório divulgado esta terça-feira. Os factos relatados no documento não são novos — inéditos são os termos usados pela Amnistia para qualificar a atuação de Israel

ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF

A palavra é forte, mas a Amnistia Internacional (AI) é inequívoca ao usá-la para qualificar a forma como o Estado de Israel trata o povo palestiniano. Ao longo de um detalhado relatório de 280 páginas, divulgado esta terça-feira, a maior organização de defesa dos direitos humanos do mundo acusa Israel de apartheid. A embaixada israelita em Portugal repudia o conteúdo do documento.

“A totalidade das leis, políticas e práticas descritas neste relatório demonstra que Israel estabeleceu e manteve um regime institucionalizado de opressão e dominação da população palestiniana em benefício dos judeus israelitas — um sistema de apartheid — onde quer que tenha exercido controlo sobre a vida dos palestinianos desde 1948”, defende a AI. A entidade acusa o Estado hebraico de considerar e tratar os palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”, que é “sistematicamente privado dos seus direitos”.

 

É a primeira vez que a AI usa a palavra apartheid para descrever as ações de Israel. No ano passado, outra organização internacional — a Human Rights Watch — passou a usar o termo para rotular a atuação do país nos territórios palestinianos sob ocupação. E até em importantes organizações dos direitos humanos israelitas, como B’Tselem e Yesh Din, já adotaram a palavra. 

Para a Amnistia, está em causa a forma como “quase todas as autoridades militares e a administração civil de Israel” estão envolvidas “na aplicação do sistema de apartheid contra os palestinianos”, nas suas múltiplas realidades:

  • Os palestinianos de Israel: 1,9 milhões de pessoas (21% da população total)
  • Os palestinianos da Cisjordânia: 3 milhões (incluindo 870 mil refugiados)
  • Os palestinianos da Faixa de Gaza: 2 milhões (incluindo 1,4 milhões de refugiados)
  • Os palestinianos refugiados: 5,7 milhões (no total)

“Descobrimos que as políticas cruéis de segregação, expropriação e exclusão de Israel em todos os territórios sob o seu controlo equivalem claramente a apartheid. A comunidade internacional tem a obrigação de agir”, apela Agnès Callamard, secretária-geral da AI. 

“As autoridades israelitas devem ser responsabilizadas pela prática do crime de apartheid contra os palestinianos”, defende a organização. “A AI pede ao Tribunal Penal Internacional [TPI] que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos e pede a todos os Estados que exerçam jurisdição universal para levar os autores de crimes de apartheid à justiça.”

O Expresso analisou o relatório — intitulado “O Apartheid de Israel contra os Palestinianos: Sistema Cruel de Dominação e Crime contra a Humanidade” (PDF disponível aqui) —, apoiado no trabalho de dezenas de organizações israelitas, palestinianas e internacionais, e destaca cinco manifestações de segregação e opressão.

 

1. Cidadãos de segunda

Em face do edifício legal israelita, os palestinianos têm múltiplos estatutos. Os que vivem em Israel são cidadãos com direito a passaporte e a votar nas eleições. Em 2018, contudo, a Lei da Nacionalidade veio destruir qualquer pretensão de igualdade entre árabes e judeus, ao consagrar Israel como “Estado-nação do povo judeu” e o direito à autodeterminação como exclusivo “do povo judeu”. Ao mesmo tempo, deixou de considerar a língua árabe oficial, relegando-a para um “estatuto especial”. Para a AI, esta lei cristalizou “a essência do sistema de opressão e de dominação sobre os palestinianos”.

“Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos… [mas sim] o Estado-nação do povo judeu e somente deles” (Benjamin Netanyahu, ex-primeiro-ministro israelita, em março de 2019)

Relativamente aos palestinianos que vivem em Jerusalém Oriental — área que Israel ocupou na guerra de 1967 e anexou por uma lei de 1980 —, não têm cidadania israelita. Beneficiam de um frágil estatuto de residência permanente que é revogado não raras vezes, deixando milhares de palestinianos num limbo legal. Já os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza aspiram, no máximo, a um cartão de identificação emitido pelas autoridades militares israelitas.

Este sistema de fragmentação e segregação com base em diferentes regimes jurídicos “destina-se a controlar a população palestiniana e visa preservar uma maioria de judeus israelitas em áreas-chave em Israel e nos territórios palestinianos ocupados”, escreve a AI.

Restam os refugiados palestinianos, que exigem o direito de regresso às terras onde viviam antes da criação do Estado de Israel (1948), e que o veem negado por Israel. Vivem há décadas em campos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e países vizinhos (Jordânia, Líbano e Síria).

2. Apropriação de terras

É um dos principais pilares do sistema de apartheid que a AI denuncia, tão antigo quanto o próprio Estado israelita. Com o objetivo de libertar cada vez mais terras para judeus, Israel adota legislação e recorre a subterfúgios administrativos para negar autorizações de construção a palestinianos. 

Isso acontece, em especial, na região do Negev (sul de Israel), habitada sobretudo por populações beduínas. Mas também em Jerusalém Oriental, onde 38% das terras palestinianas foram expropriadas entre 1967 e 2017. E ainda nas áreas C da Cisjordânia (zonas sob total controlo israelita, que correspondem a 60% do território), onde os colonatos judeus não param de se expandir. São pelo menos 272 e ali vivem cerca de 450 mil judeus. 

Obrigados a obter licenças de construção que depois lhes são negadas, os palestinianos veem-se forçados a recorrer à construção ilegal, que, mais cedo ou mais tarde, será destruída pelos bulldozers municipais. “Desde 1948, Israel demoliu centenas de milhares de casas e outras propriedades palestinianas em todas as áreas sob a sua jurisdição e controlo efetivo”, acusa a AI. “Inversamente, as autoridades israelitas permitem livremente emendas aos planos de desenvolvimento onde estão a instalar cidades judaicas em Israel ou colonatos israelitas nos territórios ocupados palestinianos.”

Com os bulldozers (que destroem casas árabes) e as gruas (que constroem colonatos judeus) transformados em armas da ocupação israelita, as populações palestinianas vivem cada vez mais encurraladas em guetos. Diz o relatório: “Trinta e cinco aldeias beduínas, onde vivem 68 mil pessoas, são ‘não reconhecidas por Israel, o que significa que são privadas do fornecimento de eletricidade e água, e alvo de demolições repetidas. Como as aldeias não têm estatuto oficial, os seus residentes também enfrentam restrições ao nível da participação política e são excluídos dos sistemas de saúde e de educação. Estas condições coagiram muitos a deixar as suas casas e aldeias, naquilo que configura uma transferência forçada.”

3. Restrições de movimentos

Na Cisjordânia, uma rede de postos de controlo militares (checkpoints), bloqueios de estradas e cercas físicas condiciona — e controla — os movimentos quotidianos das populações palestinianas. “As severas restrições de movimentos têm um efeito particularmente prejudicial no sector agrícola” que, em tempos, chegou a empregar um quarto da mão de obra do território e a garantir um terço das suas exportações, alerta a AI.

“No seguimento da ocupação, as autoridades israelitas privaram os palestinianos e a sua economia de 63% das terras mais férteis e melhores para pastagem localizadas em áreas C, através da construção de colonatos e da cerca/muro. E impuseram restrições severas ao movimento dos palestinianos e à sua capacidade de aceder às suas terras.”

A cerca/muro referida é uma vedação em construção de mais de 700 km — com troços em betão e outros em arame — que isola mais de 10% da Cisjordânia e afeta 219 localidades. Algumas comunidades ficam ensanduichadas dentro de “zonas militares”, obrigando quem ali vive a solicitar autorizações especiais para entrar e sair das localidades, ou mesmo para ir de casa para os terrenos agrícolas.

Na Faixa de Gaza, a realidade é outra. Para os cerca de dois milhões de habitantes, a única via para entrar e sair do território sem ter de pedir autorização a israelitas ou egípcios é por túneis subterrâneos. “É quase impossível para os habitantes de Gaza viajar para o estrangeiro ou para outros territórios palestinianos ocupados”, diz a Amnistia. “São efetivamente segregados do resto do mundo.”

Neste retângulo de território de 40 km por 10 km, ganhar a vida é um exercício de criatividade. Mais de 35% das terras agrícolas e 85% das zonas de pesca estão inacessíveis aos palestinianos, por força da existência de uma “zona tampão” e de uma área marítima de acesso restrito.

“Desde a descoberta de petróleo e gás na costa de Gaza, Israel mudou repetidas vezes a demarcação da costa marítima de Gaza, por vezes reduzindo-a para apenas três milhas náuticas. A falta de acesso a água suficiente para pesca afeta cerca de 65 mil habitantes de Gaza e empobreceu quase 90% dos pescadores. Além disso, a marinha israelita usa força letal contra os pescadores de Gaza que trabalham na costa, e afunda e apreende os seus barcos.”

4. Detenções administrativas

Ocorrem tanto em Israel como nos territórios palestinianos. “Desde a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, as autoridades israelitas têm feito uso generalizado de detenções administrativas para prender milhares de palestinianos, incluindo crianças sem acusação ou julgamento sob ordens de detenção renováveis.”

Este é um método que visa, por exemplo, silenciar opositores da ocupação na Cisjordânia. Neste território, Israel aplica aos palestinianos o sistema judicial militar e aos colonos judeus, a lei civil. As detenções sem acusação ou julgamento podem durar meses ou anos. 

“Embora a detenção administrativa possa ser legal em certas circunstâncias, o seu uso sistemático por Israel contra palestinianos indica que é usada para perseguir palestinianos, e não como medida de segurança extraordinária e seletiva. Consequentemente, a AI considerou que muitos detidos administrativos são prisioneiros de consciência detidos como punição pelos seus pontos de vista de contestação às políticas da ocupação”.

5. Tortura e assassínios

“Durante décadas, a Agência de Segurança de Israel, os Serviços Prisionais de Israel e as forças militares israelitas torturaram ou maltrataram detidos palestinianos, incluindo crianças, durante a prisão, transferência e interrogatório”, denuncia a Amnistia.

O relatório particulariza os “métodos duros” usados pelos serviços secretos para obter informações e “confissões” e que passam, segundo relatos dos palestinianos, pelo uso de algemas e outros instrumentos dolorosos, imobilização em posições de stresse, privação de sono, ameaças, assédio sexual, períodos prolongados em confinamento solitário e abuso verbal.

“Tribunais israelitas admitiram provas obtidas com recurso à tortura de palestinianos, aceitando o argumento de ‘necessidade’” (Relatório da Amnistia Internacional)

Na Faixa de Gaza, os protestos populares inseridos na iniciativa “Grande Marcha do Regresso”, que visaram a fronteira com Israel em 2018 e 2019, ilustram esta denúncia. Semanalmente, milhares de pessoas exigiam o direito de retorno dos refugiados e o fim do bloqueio aplicado por Israel. Faziam-no junto à fronteira, diante de forte dispositivo militar que, não raras vezes, disparava. Até ao final de 2019, as forças israelitas tinham matado 214 civis em Gaza, incluindo 46 crianças.

“O assassínio ilegal de manifestantes palestinianos é talvez a ilustração mais clara de como as autoridades israelitas usam atos proibidos para manter o status quo”, acusa a AI. “À luz dos sistemáticos assassínios ilegais de palestinianos documentados no relatório, a AI também pede ao Conselho de Segurança da ONU que imponha um embargo de armas abrangente a Israel”, defende a organização. “O Conselho de Segurança também deve impor sanções específicas, como congelamento de bens, contra funcionários israelitas mais implicados no crime de apartheid.”

“A AI examinou cada uma das justificações de segurança que Israel cita como base para a forma como trata os palestinianos. O relatório mostra que, embora algumas das políticas de Israel possam ter sido projetadas para assegurar objetivos legítimos de segurança, foram aplicadas de maneira grosseiramente desproporcional e discriminatória, que não cumpre o direito internacional”, conclui a organização. “Outras políticas não têm absolutamente nenhuma base razoável ao nível da segurança e são claramente moldadas pela intenção de oprimir e dominar.”

Reação de Israel

Num comunicado enviado à imprensa após a divulgação do relatório, o embaixador de Israel em Portugal diz que o relatório da Amnistia é “falso, tendencioso e antissemita”. “É lamentável que enquanto Israel está ocupado a promover a paz com os seus vizinhos, organizações internacionais na Europa estejam ocupadas a promover puro ódio e mentiras”, lastima Dor Shapira. “O Estado de Israel é uma democracia forte e vibrante, que garante a todos os seus cidadãos direitos iguais, independentemente da religião ou raça.”

O comunicado diz que “o Estado de Israel rejeita absolutamente todas as falsas alegações que aparecem no relatório da Amnistia”, o qual “consolida e recicla mentiras, inconsistências e alegações infundadas provenientes de conhecidas organizações de ódio anti-israelitas, todas com o objetivo de revender ideias antigas em novas embalagens”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui