A Ucrânia está sozinha na defesa da agressão russa, mas as consequências políticas desta guerra podem bem transbordar o seu território. Em Bruxelas, o alargamento da União Europeia a leste está transformado num dilema. E nos chamados Balcãs Ocidentais — palco da última grande guerra na Europa —, há receios de instabilidade e do regresso de velhos fantasmas
A guerra na Ucrânia pôs fim a um período de paz relativa na Europa que durava há pouco mais de 20 anos. Excetuando conflitos localizados nas fronteiras da Rússia — como o independentismo na região russa da Chechénia, a disputa entre arménios e azeris em torno de Nagorno-Karabakh ou as pretensões separatistas das repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul —, a última grande guerra no Velho Continente travou-se aquando do desmembramento da Jugoslávia.
O conflito foi grande em duração — dez anos (1991-2001) — e em função da quantidade de entidades políticas que envolveu, algumas com estreitas ligações à Rússia. Hoje, a questão coloca-se com naturalidade: pode a guerra na Ucrânia contribuir para nova desestabilização da região dos Balcãs?
“Os Balcãs Ocidentais não estão em guerra e o nível de conflitualidade permanece baixo, mas vivem aquilo a que podemos chamar ‘paz pela negativa’. Isso significa que há permanentemente tensões a diferentes níveis”, diz ao Expresso Florent Marciacq, codiretor do Observatório dos Balcãs, da Fundação Jean Jaurès, de Paris.
“Há muitos problemas em curso. E decerto a guerra na Ucrânia está a reforçar alguma instabilidade existente. Não podemos dizer que vai haver guerra nos Balcãs Ocidentais, mas veremos cada vez mais tensões e problemas”, prossegue o especialista.
GLOSSÁRIO
- Paz pela negativa: Ausência de guerra e de violência física direta
- Paz pela positiva: Eliminação das causas da guerra, designadamente da violência estrutural, e promoção de atitudes, instituições e estruturas que criem e sustentem sociedades pacíficas e integradas
O afastamento da perceção de ameaça na região balcânica assenta fundamentalmente em duas circunstâncias. “Por um lado, os Balcãs não são contíguos à Rússia (nem mesmo à Ucrânia) e não são, assim, alvo óbvio ou imediato de eventuais ambições territoriais russas ou dos fluxos de refugiados. Por outro lado, é uma região que não faz nem nunca fez parte da área de influência tradicional da Rússia (nem sequer da União Soviética no tempo da Guerra Fria), apesar da proximidade política, cultural e religiosa entre a Rússia e alguns Estados balcânicos (ou grupos nesses Estados)”, comenta ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense.
“Diria que, neste momento, essa perceção será sentida de forma mais vincada por Estados como as repúblicas bálticas [Estónia, Letónia e Lituânia] ou mesmo pela Polónia.”
Um dos países mais vulneráveis é a Sérvia, que aspira ao melhor de dois mundos aparentemente incompatíveis: relação próxima com a Rússia, assente numa matriz cristã ortodoxa, e adesão à União Europeia. Esta tentativa de equilibrismo faz parte da doutrina da Sérvia, mas “não pode durar para sempre”, diz Florent Marciacq.
“A pressão sobre a Sérvia para que se alinhe é muito alta agora e, quanto mais sanções são adotadas contra a Rússia, mais pressão há. O problema é que, internamente, a Sérvia sempre valorizou muito a amizade com a irmã Rússia e Vladimir Putin é extremamente popular no país. Para os políticos sérvios, qualquer sanção ou argumento contra a Rússia é uma completa contradição da relação que vêm construindo há décadas com a Rússia.”
2012
Em março deste ano,
a União Europeia reconheceu à Sérvia
o estatuto de “candidato” à adesão
Na votação de 2 de março, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em que a Rússia foi condenada de forma esmagadora pela invasão da Ucrânia, a Sérvia alinhou com a maioria e votou contra o país amigo.
Para Belgrado, a Rússia tem sido fundamental na batalha contra o reconhecimento da soberania do Kosovo. Esta antiga província sérvia de maioria albanesa declarou a sua independência em 2008 e é reconhecida por menos de metade dos países do mundo, o que tem sido um obstáculo à sua adesão às Nações Unidas. Na UE, cinco países — Espanha, Roménia, Eslováquia, Chipre e Grécia — ainda não reconhecem o Kosovo como Estado independente.
Neste contexto de invasão russa da Ucrânia, a questão do Kosovo pode afastar a Sérvia da Rússia, adianta Pascoal Pereira. “A Rússia tem sido um dos principais apoios internacionais de Belgrado na defesa da soberania sérvia sobre o Kosovo. Esse apoio está assente na defesa da integridade territorial e da inviolabilidade das fronteiras internacionais, que as forças aliadas ocidentais teriam violado gravemente com a intervenção militar [da NATO] de 1999 e da qual decorreu a posterior declaração unilateral de independência pelo Kosovo. Ora, os atos da Rússia na Ucrânia são contrários a todo esse quadro de defesa dos princípios do direito internacional.”
Igualmente, a agressão russa pode ser lida “de forma análoga aos ataques aéreos liderados pelos Estados Unidos na Sérvia em 1999”, explica o académico português, que detalha as razões para a comparação:
- Agressão a um Estado soberano por uma potência mais poderosa (EUA em 1999 vs. Rússia em 2022)
- Responsabilização política do governo que é atacado (Sérvia vs. Ucrânia) pela formação do regime político supostamente autoritário que o sustenta (Milosevic nacionalista vs. Zelensky apoiado por neonazis) e por violações de direitos humanos, sobretudo contra uma determinada minoria étnica (albaneses vs. russos)
- Impossibilidade de convivência interétnica (Kosovo vs. Donbas)
“Que quero dizer com isto? Subitamente, a Sérvia pode vir a estar ainda mais isolada internacionalmente do que até agora na sua oposição à independência do Kosovo”, conclui Pascoal Pereira.
Os fantasmas da Bósnia
Na região dos Balcãs, outro país com grande potencial de desestabilização é a Bósnia-Herzegovina, território soberano dividido em duas entidades políticas: a Federação da Bósnia-Herzegovina (de população sobretudo croata e muçulmana) e a República Srpska (de maioria sérvia).

A República Srpska aspira à secessão e é liderada por um próximo de Putin, Milorad Dodik, recebido no Kremlin, a 2 de dezembro passado. “Há uma convergência de narrativas”, comenta Marciacq. “E Dodik usa um pouco estes sentimentos antiocidentais da Rússia para legitimar a sua reivindicação à secessão”, que ecoa bem em Moscovo.
Em outubro passado, o líder sérvio-bósnio deu um passo nesse sentido ao anunciar a saída da República Srpska das forças de segurança, do sistema judicial e da administração tributária federais, prevista para junho próximo.
Outra data crítica é 3 de novembro próximo, quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas for chamado a renovar o mandato da EUFOR, a missão da UE de manutenção de paz na Bósnia. “A Rússia tem direito de veto”, recorda o francês. “Se disser não, coloca em risco a estabilidade de todo o país.”
Nos Balcãs Ocidentais, além da Sérvia, outros países já têm estatuto de candidato à UE: Macedónia do Norte (desde 2005), Montenegro (2010) e Albânia (2014). A Eslovénia e a Croácia já aderiram (em 2004 e 2013, respetivamente), o Kosovo celebrou um Acordo de Associação (2013) e a Bósnia-Herzegovina solicitou a adesão.
Na região, o sentimento pró-UE “é muito alto”, diz Marciacq, essencialmente pelo desejo de prosperidade e liberdade. “É mais baixo na Sérvia, mas fora isso é muito alto, e vai crescer ainda mais devido ao contexto de instabilidade e insegurança. É melhor estar com os Estados-membros da UE e da NATO do que sozinho. É o que mostra, infelizmente, o caso da Ucrânia”, que já motivou que Finlândia e Suécia cedessem na neutralidade e passassem a assistir às reuniões da Aliança Atlântica, admitindo aderir à mesma.
Para a UE, tudo isto — a que acrescem os pedidos de adesão de Geórgia, Moldávia e Ucrânia, formalizados já durante a guerra — coloca um dilema relativamente ao seu alargamento. “A adesão à UE não se faz de um ano para o outro, é um processo que demora anos, se não décadas (basta pensar na Turquia ou na Macedónia do Norte)”, recorda Pascoal Pereira. “Implica negociações muito duras e intensas, bem como um esforço de adaptação legislativa e reformas institucionais profundas.”
“Não se prevê que se crie um procedimento acelerado de adesão especial para a Ucrânia (que me pareceu um pedido de adesão mais declarativo do que substancial), nem as instituições europeias ou os Estados-membros receberam a candidatura de forma entusiástica. Mas, tendo em conta que qualquer adesão requer a unanimidade dos Estados-membros atuais, até que ponto algum deles (a Polónia, eventualmente, por ser dos países com mais afinidades históricas com a Ucrânia) não estariam dispostos a condicionar a adesão dos candidatos balcânicos por uma abertura de negociações (ou mesmo adesão simultânea) com a Ucrânia?”
A acontecer, não seria inédito na história da UE. Por alturas do alargamento a dez novos países, em 2004, a Grécia ameaçou vetar todo o processo se Chipre não fosse incluído no lote, o que veio a acontecer. Atendendo ao contexto atual, um pedido de adesão da Ucrânia à UE pode tornar-se um obstáculo no caminho dos que já têm a candidatura formalizada, nomeadamente balcânicos.
Caso os 27 optem por não esticar mais as fronteiras da União, Marciacq alerta para eventuais “custos” decorrentes dessa decisão. “Se a UE não se alargar para uma região da Europa como os Balcãs Ocidentais, cercada por Estados-membros, tal causará vulnerabilidades e instabilidade, porque atores terceiros, como a Rússia e a China, explorarão esses sentimentos antiocidentais e irão desestabilizar com sucesso a região, o que acabará por contaminar também a UE.”
Acresce que não alargar, ou fazer arrastar os processos sem decisão final — como aconteceu com a Turquia —, não significa que esses países não procurem soluções para entrarem no espaço europeu de outras formas. A Albânia viu 2,4% da sua população emigrar para a UE num único ano (2017).
“É um número enorme”, constata Marciacq. “Os países vão-se esvaziar de todos os jovens inteligentes, empreendedores, reformadores e progressistas e ficarão pessoas com filiação partidária, corruptas, etc. Os países ficarão cada vez mais vulneráveis. Se não dermos reposta a essa vontade de liberdade que têm, e que tentarão conseguir dirigindo-se à UE se a UE não se alargar para os seus países, não só teremos pessoas dos Balcãs Ocidentais a entrar na UE, como teremos Estados falhados ou corruptos cercados por membros da UE.”
(IMAGEM RECOM RECONCILIATION NETWORK)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2022. Pode ser consultado aqui