Receios 20 anos após a guerra

Invasão da Ucrânia pode reavivar problemas na antiga Jugoslávia. Sérvia e Bósnia são os países mais vulneráveis

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa travou-se nos Balcãs Ocidentais (1991-2001), desencadeada pelo desmembramento da Jugoslávia. Hoje, o nível de conflitualidade na região permanece baixo, mas subsistem problemas que tornam os receios de desestabilização reais. “Há muitos problemas em curso e a guerra na Ucrânia reforça alguma instabilidade existente. Não se pode dizer que vai haver guerra nos Balcãs Ocidentais, mas veremos cada vez mais tensões”, diz ao Expresso Florent Marciacq, codiretor do Observatório dos Balcãs, da Fundação Jean Jaurès (Paris).

No grupo dos países mais vulneráveis está a Sérvia, que aspira ao melhor de dois mundos incompatíveis: relação próxima com a Rússia, assente numa matriz cristã ortodoxa, e adesão à União Europeia — a Sérvia é candidata desde 2012. “A pressão para que a Sérvia se alinhe é muito alta, agora, e quanto mais sanções são adotadas contra a Rússia, mais pressão há. O problema é que, internamente, a Sérvia sempre valorizou muito a amizade com a irmã Rússia, e Vladimir Putin é muito popular no país. Para os políticos sérvios, qualquer sanção ou argumento contra a Rússia é uma total contradição da relação que vêm construindo há décadas.”

Moscovo tem sido um aliado fundamental de Belgrado na questão do Kosovo, a antiga província sérvia de maioria albanesa, que declarou a independência em 2008 e é hoje reconhecida por menos de metade dos países do mundo, o que constitui um obstáculo à sua adesão à ONU. Como explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense, a questão do Kosovo, no presente contexto de invasão russa da Ucrânia, pode levar a um afastamento da Sérvia em relação à Rússia.

Duas datas críticas

“Moscovo tem sido dos principais apoios de Belgrado na defesa da soberania sérvia sobre o Kosovo. Esse apoio assenta no princípio da integridade territorial e da inviolabilidade das fronteiras internacionais, que as forças aliadas ocidentais teriam violado gravemente com a intervenção militar [da NATO] de 1999, da qual decorreu a declaração unilateral de independência pelo Kosovo. Ora, os atos da Rússia na Ucrânia são contrários a esse quadro de defesa do direito internacio­nal”, diz o docente português. “A Sérvia pode ficar ainda mais isolada na sua oposição à independência do Kosovo.”

Outro país balcânico com potencial de desestabilização é a Bósnia-Herzegovina, dividida em duas entidades políticas: a Federação da Bósnia-Herzegovina e a República Srpska, esta última de maioria sérvia, com aspirações separatistas e liderada por um próximo de Putin. “Há uma convergência de narrativas”, comenta Marciacq. “E Milorad Dodik [líder sérvio bósnio] usa um pouco estes sentimentos antiocidentais da Rússia para legitimar a sua reivindicação de secessão”, que ecoa bem em Moscovo.

Em outubro passado, Dodik anunciou a saída da República Srpska das forças de segurança, do sistema judicial e da administração tributária federais, prevista para junho próximo. Outra data crítica será 3 de novembro, quando o Conselho de Segurança da ONU for chamado a renovar o mandato da EUFOR, a missão de manutenção de paz da UE na Bósnia. “A Rússia tem direito de veto”, conclui o francês. “Se disser não, coloca em risco a estabilidade de todo o país.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de março de 2022

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