Negociações “substanciais” ou oportunidade para Putin ganhar tempo? “Perceber os russos é sempre muito complicado”

Russos e ucranianos deram uma hipótese à diplomacia e reuniram-se, frente a frente, em Istambul. A Ucrânia disse estar disposta a aceitar um estatuto de neutralidade, pediu que a porta da adesão à UE ficasse aberta e aceita remeter para negociações futuras o estatuto da Crimeia e do Donbas. Os russos disseram que vão entregar as propostas a Putin. Os especialistas admitem um passo em frente, o da via diplomática que finalmente se abre. Mas alertam que é cedo para respirar de alívio

Intervenção do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, diante de russos e ucranianos, a 29 de março de 2022, em IstambulREPUBLIC OF TÜRKIYE DIRECTORATE OF COMMUNICATIONS

A cidade turca de Istambul acolheu, esta terça-feira, uma ronda de negociações entre russos e ucranianos facto que, por si só, indicia uma evolução no processo de conversações ‘em parte incerta’ que as partes vinham mantendo quase desde o início da invasão.

Frente a frente, as duas delegações ouviram o Presidente da Turquia dizer, presencialmente, que “um cessar-fogo é benéfico para todos” e apelar à “obtenção de resultados concretos”. Segundo Recep Tayyip Erdogan, “uma paz justa não terá um derrotado”. Afirmações óbvias que, porém, ainda não conseguiram impor-se nos 34 dias que já dura a invasão russa da Ucrânia.

“A entrada em cena de Erdogan é reflexo do que se está a passar na guerra, e que força a Rússia a tentar encontrar alguma forma para sair do conflito sem perder totalmente a face”, diz ao Expresso Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “A aceitação da mediação turca é simbólica e demonstrativa dessa disposição para encontrar algum compromisso face ao impasse no terreno.”

Objetivos mínimos

São vários os indícios de que a Rússia está cada vez mais longe dos objetivos a que se propôs inicialmente:

— A “operação especial militar” na Ucrânia, previsivelmente rápida, já dura há mais de um mês.

— A “desnazificação” da Ucrânia, que passava pela entrada das tropas russas em Kiev e pela substituição do atual Governo por um Executivo pró-Kremlin, falhou.

— Mariupol, cuja conquista permitiria à Rússia o controlo sobre uma faixa terrestre entre a Rússia Continental e a península da Crimeia, anexada em 2014, continua a resistir.

“Face a tudo isto, e ao potencial desgaste que isto causa política e economicamente a longo prazo na Rússia, esta percebe que tem de arranjar solução. A Rússia foi derrotada ao nível daqueles que eram os seus objetivos iniciais”, diz Bernardo Teles Fazendeiro. “Queria impor esta nova ordem na Ucrânia e não conseguiu.”

Ucrânia aceita neutralidade

Mas de Istambul saíram indícios de que a posição negocial da Ucrânia está a ir ao encontro das pretensões russas. Segundo o negociador-chefe ucraniano, David Arakhamia, o seu país concordará com um estatuto de neutralidade se houver um “acordo internacional” que garanta a sua segurança.

Esse compromisso seria assinado por vários países, ao estilo de uma espécie de fiadores, que Arakhamia enumerou: Estados Unidos da América, China, França, Reino Unido (membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU), e também Turquia, Alemanha, Polónia e Israel.

“Queremos um mecanismo internacional de garantias de segurança onde esses países atuem de forma semelhante ao artigo 5.º da NATO, e ainda com mais firmeza”, acrescentou o ucraniano. Ao abrigo desse artigo, um ataque a um Estado membro é encarado como um ataque a toda a Aliança Atlântica.

Zelensky fala muito. E Putin, que quer?

Paralelamente, a Ucrânia exige que a Rússia deixe aberta a porta da adesão à União Europeia e está na disposição de “excluir temporariamente” de um acordo com a Rússia a península da Crimeia (anexada por Moscovo em 2014) e os territórios do Donbas (sob controlo de forças separatistas pró-Rússia). O estatuto da Crimeia, em específico, seria resolvido ao longo de conversações bilaterais que decorreriam por um período de 15 anos.

“Não sabemos detalhes. Mas subentende-se, entre linhas, que a Ucrânia pode desistir do Donbas como território ucraniano”, comenta ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho.

“Do lado russo, é mais difícil saber o que querem, porque não comunicam. Zelensky está sempre a falar, está sempre a aparecer e a ser muito claro sobre o que pretende. Do lado russo, não há essa comunicação. Mas é importante lembrar que Putin, ao contrário de Zelensky, não tem como primeira prioridade a questão da perda de vidas humanas. Os russos estão a perder muitos soldados, mas não é isso que vai motivar Putin a sentar-se à mesa das negociações. O que o motiva é a evolução no terreno, a dificuldade em atingir os seus objetivos de guerra.”

Os seis temas quentes entre Rússia e Ucrânia

  • Neutralidade da Ucrânia;
  • Desarmamento e garantias mútuas de segurança;
  • Processo a que a Rússia chama “desnazificação”;
  • Remoção de obstáculos à utilização generalizada da língua russa na Ucrânia;
  • Estatuto do Donbass, onde ficam os territórios separatistas de Donetsk e Luhansk;
  • Estatuto da Crimeia.

Em Istambul, pela voz do chefe da delegação e conselheiro presidencial, Vladimir Medinsky, a Rússia reconheceu ter havido “discussões substanciais” e que Kiev apresentou propostas “claras”, que serão “estudadas muito em breve e submetidas ao Presidente” Vladimir Putin.

Paralelamente, realçou a decisão do Ministério da Defesa russo, anunciada em paralelo às negociações — com o objetivo de “aumentar a confiança mútua e criar as condições necessárias para novas negociações” — de “reduzir radicalmente a atividade militar nas direções de Kiev e Chernihiv”, no norte da Ucrânia. “Não é um cessar-fogo, mas é essa a nossa aspiração, alcançar gradualmente uma desescalada do conflito, pelo menos nestas frentes.”

“Perceber os russos é sempre muito complicado”, nota Sandra Fernandes. “Dá a ideia de que querem negociar, até porque se percebe que a invasão está a patinar, mas não pára, o que causa imenso terror. Sexta-feira passada, declararam que iriam concentrar-se no Donbas, mas hoje estão a bombardear Mykolaiv [no sul, junto a Odessa] de forma brutal.”

Da imposição à aceitação

Ainda que a Rússia pareça ter passado de uma estratégia de imposição (da situação no terreno) para uma de aceitação (da negociação), há sempre outras leituras possíveis. “Penso que o principal objetivo de Putin é ganhar tempo”, diz a docente da Universidade do Minho.

“Ir para a mesa da negociação é sempre um ganhar de tempo face ao que são os objetivos, a eventual alteração dos objetivos e a preparação de novos objetivos. A Rússia ainda não está numa posição de força [ao nível do controlo territorial] e a Ucrânia também ainda não perdeu tudo. Estamos numa situação intermediária, entre dois momentos, e nesse sentido os dois estão a jogar com aquilo que conseguem.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

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