País autocrático, repressivo e cleptocrático: eis a Rússia de Putin à luz dos relatórios internacionais

O maior país de todo o mundo não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. A constatação resulta da análise dos principais relatórios internacionais das áreas políticas e sociais. Da paz aos direitos humanos, da democracia à corrupção

Vladimir Putin é Presidente da Federação Russa desde 2012 WWW.KREMLIN.RU / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda a guerra na Ucrânia fervilhava apenas na cabeça de Vladimir Putin e o mundo debatia-se com duas emergências à escala global: os efeitos das alterações climáticas e a pandemia de covid-19. Na busca de respostas imediatas, os países esboçaram uma união de esforços e acorreram a participar em duas iniciativas.

Na frente climática, rumaram a Glasgow, na Escócia, para participarem na 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), considerada a última oportunidade para a obtenção de um compromisso sério que salve o planeta da irreversibilidade da degradação ambiental.

Na batalha da pandemia, sob o chapéu da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi gizado o mecanismo Covax, que possibilita o acesso gratuito de mais de 90 países subdesenvolvidos a vacinas para a covid-19. A Rússia não participou em nenhuma das duas.

COP-26 e Covax são apenas dois exemplos que revelam um posicionamento muito particular da Rússia no mundo. Aquele que é o maior dos países, em termos geográficos, não faz corresponder essa grandeza a atitudes exemplares e de liderança. Comprova-o uma análise a vários relatórios internacionais de áreas políticas e sociais.

A paz é uma miragem

A guerra na Ucrânia — que consiste na invasão de um Estado soberano por outro — é a demonstração mais recente da utopia que a paz global continua a ser. Revela também que, neste domínio, a Rússia contribui ativamente para que tal aconteça.

Segundo a última edição do “Índice Global da Paz”, compilado pela organização Vision of Humanity (Austrália), que se propõe “medir a paz num mundo complexo” com base em três critérios — ‘Conflitos em curso’, ‘Segurança e Proteção’ e ‘Militarização’ —, a Rússia surge em 154.º lugar, num total de 163 países. Numa classificação em que Portugal ocupa o 4.º lugar, a Rússia tem por companhia países como Afeganistão, Síria, Coreia do Norte e Venezuela.

A Rússia é “a nação menos pacífica da região [da Eurásia]” e “um dos países menos pacíficos do mundo”, lê-se no relatório, elaborado antes da presente invasão da Ucrânia. “No entanto, apesar da sua baixa classificação no Índice, a paz na Rússia melhorou nos últimos anos. Este é o segundo ano consecutivo em que a Rússia regista uma melhoria ao nível da paz. O país melhorou tanto ao nível dos ‘conflitos em curso’ como da ‘militarização’, mas registou uma deterioração quanto à ‘proteção e segurança’. Houve degradação em manifestações violentas e instabilidade política.”

Para tal, contribuem episódios de agitação social como as manifestações populares, reprimidas com violência pelas forças governamentais, que se seguiram ao envenenamento e posterior detenção do opositor ao regime Alexei Navalny. O relatório fala de mais de 8500 detenções.

No final de 2021, uma das organizações internacionais mais atentas aos conflitos no mundo, o International Crisis Group (Bélgica), elaborou um documento sobre “dez conflitos a ter em conta em 2022”. Num exercício quase premonitório, destacou em primeiro lugar a Ucrânia como país com maior potencial de conflito, numa altura em que já era assediada por um crescente número de tropas russas na sua fronteira.

“Apesar da ameaça do Presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia, os Estados raramente entram em guerra uns com os outros”, lê-se no documento. Até para os olhos mais habituados a antecipar conflitos, a invasão russa da Ucrânia foi uma surpresa, ainda que o International Crisis Group admita, na sua análise, que “descartar a ameaça [russa à Ucrânia] como um bluff seria um erro”. Como se está a ver.

Democracia nem no papel

“Os líderes da China, Rússia e de outras ditaduras conseguiram mudar os incentivos globais, comprometendo o consenso de que a democracia é o único caminho viável para a prosperidade e a segurança, ao mesmo tempo que encorajam abordagens de governação mais autoritárias.”

Esta constatação está expressa no relatório “Liberdade no Mundo 2022”, produzido pela organização Freedom House (Estados Unidos), com o subtítulo “A expansão global dos regimes autoritários”.

À semelhança do “Índice Global da Paz”, também no “Índice da Democracia”, elaborado pela Economist Intelligence Unit (Reino Unido), a Rússia está nos últimos lugares: surge na posição 124, numa lista com 167 países (Portugal é 28.º).

A lista assenta em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo (onde a Rússia obtém a avaliação mais fraca), funcionamento do Governo, cultura política, liberdades civis e participação política (onde a Rússia tem melhor registo).

Neste relatório, que divide os regimes políticos em “democracias completas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários”, a Rússia é um exemplo da última categoria. Igual rótulo é aplicado à Rússia no “Relatório Global sobre o Estado da Democracia”, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Suécia), que defende que o país regrediu de uma “democracia retrógrada” para um “regime autoritário”.

Dois factos recentes sustentam a caracterização da Rússia como “regime autoritário”. Por um lado, a realização de um referendo constitucional, entre 25 de junho e 1 de julho de 2020, que garantiu a Putin a possibilidade de se deixar ficar no poder até 2036. Seguiu-se-lhe uma campanha de repressão dos dissidentes, que incluiu a detenção do crítico mais vocal do Kremlin: Alexei Navalny, a 17 de janeiro de 2021.

Por outro lado, a 23 de dezembro de 2020, foi aprovada uma alteração legislativa, na câmara baixa do Parlamento (Duma), para silenciar opositores, jornalistas, bloggers, ativistas e outras vozes críticas de Putin, rotulados de “agentes estrangeiros”.

Noticiar só o que é possível

Uma das áreas diretamente visadas pela legislação “dos agentes estrangeiros” é a da informação. Essa designação passou a penalizar repórteres como os que cobriram as grandes manifestações de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, entre julho de 2020 e setembro de 2021, em solidariedade com o governador local, que fora preso.

Muitas vezes, os jornalistas são presos e obrigados a pagar multas pesadas. O caso de Ivan Golunov, que investiga casos de corrupção, revela outra dimensão do cerco à imprensa: em junho de 2019, foi preso pela polícia de Moscovo e acusado de “produção ou venda ilegal de drogas”. O caso tornou-se mediático, originou protestos de rua e tornou-se um exemplo dos abusos da polícia. O repórter acabaria por ser libertado e cinco ex-polícias foram acusados de terem forjado a sua incriminação.

No último “Índice Mundial sobre a Liberdade de Imprensa”, dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF, França), a Rússia surge no 150.º lugar, num total de 180 países. O relatório descreve uma “atmosfera sufocante para jornalistas independentes”, com “leis draconianas, o bloqueio de sites, cortes na Internet e os principais meios de comunicação controlados ou estrangulados”.

Em partes do território russo, como a Crimeia (península ucraniana anexada pela Rússia em 2014) ou a Chechénia (república no Cáucaso cujas ambições de independência foram esmagadas pela Rússia em guerras recentes) são autênticos “buracos negros” em matéria informativa.

A guerra na Ucrânia e o crescente isolamento a que a Rússia está sujeita vieram dar relevância a um objetivo já anunciado do Kremlin: soberania digital, ou seja, criar uma Internet paralela que permita à Rússia desligar-se da rede global. Uma lei federal de 13 de março de 2019 — a Lei da Internet Soberana — não só dá cobertura legal a ações de vigilância digital como atribui competências ao Governo para separar a Rússia da Internet global.

“Como os principais canais de televisão continuam a inundar os telespectadores com propaganda, o clima tornou-se muito opressivo para quem questiona o novo discurso patriótico e neoconservador, ou para quem apenas tenta manter um jornalismo de qualidade”, lê-se no relatório dos RSF.

Esse espírito repressivo está presente numa nova lei, aprovada a 4 de março, já com a invasão da Ucrânia em curso, segundo a qual a publicação de informação “falsa” ou “mentirosa” sobre as forças armadas russas é punível com pena de até 15 anos de prisão. Pertencendo ao Kremlin o critério sobre o que é informação verdadeira ou falsa, sobra muito pouco espaço para os media independentes.

Há duas semanas, o popular canal televisivo Dozhd anunciou a suspensão das suas emissões por tempo indeterminado justificando a decisão com a pressão sentida relativamente à cobertura da guerra na Ucrânia. A decisão foi tomada numa reunião dos funcionários. É apenas um caso.

Corrupção endémica

Na Rússia, o combate à corrupção, como a mera denúncia de casos por órgãos de informação, tornou-se ainda mais perigoso desde a adoção da lei dos “agentes estrangeiros”. “As autoridades invadiram casas e escritórios de jornalistas e ativistas que investigavam a corrupção do Governo e declararam-nos ‘agentes estrangeiros’ sujeitos a relatos financeiros onerosos e restrições de publicação”, denuncia o último “Índice de Perceção de Corrupção”, da organização Transparência Internacional (Alemanha).

Nesse relatório, a Rússia surge na 136.ª posição, em 180 países. É o país europeu mais abaixo no ranking. Portugal está no 62º lugar. Segundo a Transparência Internacional, “a corrupção é endémica na Rússia”, onde “as instituições públicas estão quase completamente nas mãos do Governo, o que faz falhar a responsabilização de quem tem o poder”.

Quando a guerra na Ucrânia rebentou, a organização tomou posição, recordando a cumplicidade das economias desenvolvidas no crescimento da cleptocracia russa. “Não devia ter sido necessária uma tragédia desta escala para levar os governos do Ocidente a despertarem para os perigos de permitirem a cleptocracia”, defendeu a Transparência.

“Estamos a ver as suas consequências devastadoras, agora na Ucrânia. Para evitar sofrimento futuro, os decisores nas economias avançadas precisam de acelerar com urgência políticas anticorrupção importantes. Muitas deveriam ter sido adotadas há muito tempo.”

Ordem para perseguir

Em regimes autocráticos, como a Rússia, os direitos humanos estão entre as primeiras vítimas da repressão associada ao seu modus operandi. Um dos casos mais recentes do cerco à luta pelos direitos humanos no país foi a dissolução da organização não-governamental Memorial International, decretada pelo Supremo Tribunal.

Fundada na década de 1980, na era da perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência), impulsionadas pelo Presidente soviético Mikhail Gorbachev, a Memorial teve entre os seus fundadores o dissidente Andrei Sakharov (prémio Nobel da Paz em 1975). Era a organização de direitos humanos mais antiga da Rússia.

Nos relatórios de organizações globais, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional, outras denúncias contribuem para um retrato negro da Rússia na área dos direitos humanos.

“Em 2021, as autoridades continuaram a empregar uma variedade de instrumentos para assediar defensores dos direitos humanos e impedir o seu trabalho”, lê-se no relatório da Human Rights Watch.

O documento descreve dezenas de casos envolvendo sobretudo advogados de defesa de participantes em protestos ou que litigam casos contra a Rússia em instâncias jurídicas internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Cidadãos estrangeiros a trabalhar na área, tornados ameaças à segurança nacional, recebem muitas vezes ordem de expulsão do país. Algumas organizações são consideradas “extremistas” e encerradas.

A 5 de outubro de 2021, a ONG Mães de Soldados de São Petersburgo, que defende os direitos dos recrutas no exército russo há mais de duas décadas, encerrou atividades alegando “sérias restrições” impostas pelas autoridades. A decisão seguiu-se à divulgação de uma lista de 60 tópicos que passou a ser proibido abordar em público, por exemplo, divulgar informação sobre o estado de espírito dos militares.

relatório da Amnistia detalha outros problemas com grupos da sociedade alvo de leis e das forças da ordem: discriminação contra a comunidade LGBTI, aumento da perseguição a Testemunhas de Jeová, inação legislativa perante o aumento de casos de violência doméstica, tortura e maus-tratos (com impunidade para os agressores).

A Amnistia destaca ainda o aproveitamento da pandemia de covid-19 como pretexto para abortar manifestações de rua, incluindo os protestos solitários, de uma pessoa só, um tipo de protesto a que os russos recorrem para contornar a dificuldade em obter autorizações para se manifestarem.

Já durante a guerra na Ucrânia, foi notícia a detenção de Yelena Osipova, conhecida artista e ativista russa que sobreviveu ao cerco nazi a Leninegrado, durante uma manifestação contra a guerra, na mesma cidade, que hoje se chama São Petersburgo. Tinha 77 anos e visíveis dificuldades de locomoção.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2022. Pode ser consultado aqui. A tradução do artigo para língua russa pode ser consultada aqui

Receios 20 anos após a guerra

Invasão da Ucrânia pode reavivar problemas na antiga Jugoslávia. Sérvia e Bósnia são os países mais vulneráveis

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa travou-se nos Balcãs Ocidentais (1991-2001), desencadeada pelo desmembramento da Jugoslávia. Hoje, o nível de conflitualidade na região permanece baixo, mas subsistem problemas que tornam os receios de desestabilização reais. “Há muitos problemas em curso e a guerra na Ucrânia reforça alguma instabilidade existente. Não se pode dizer que vai haver guerra nos Balcãs Ocidentais, mas veremos cada vez mais tensões”, diz ao Expresso Florent Marciacq, codiretor do Observatório dos Balcãs, da Fundação Jean Jaurès (Paris).

No grupo dos países mais vulneráveis está a Sérvia, que aspira ao melhor de dois mundos incompatíveis: relação próxima com a Rússia, assente numa matriz cristã ortodoxa, e adesão à União Europeia — a Sérvia é candidata desde 2012. “A pressão para que a Sérvia se alinhe é muito alta, agora, e quanto mais sanções são adotadas contra a Rússia, mais pressão há. O problema é que, internamente, a Sérvia sempre valorizou muito a amizade com a irmã Rússia, e Vladimir Putin é muito popular no país. Para os políticos sérvios, qualquer sanção ou argumento contra a Rússia é uma total contradição da relação que vêm construindo há décadas.”

Moscovo tem sido um aliado fundamental de Belgrado na questão do Kosovo, a antiga província sérvia de maioria albanesa, que declarou a independência em 2008 e é hoje reconhecida por menos de metade dos países do mundo, o que constitui um obstáculo à sua adesão à ONU. Como explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense, a questão do Kosovo, no presente contexto de invasão russa da Ucrânia, pode levar a um afastamento da Sérvia em relação à Rússia.

Duas datas críticas

“Moscovo tem sido dos principais apoios de Belgrado na defesa da soberania sérvia sobre o Kosovo. Esse apoio assenta no princípio da integridade territorial e da inviolabilidade das fronteiras internacionais, que as forças aliadas ocidentais teriam violado gravemente com a intervenção militar [da NATO] de 1999, da qual decorreu a declaração unilateral de independência pelo Kosovo. Ora, os atos da Rússia na Ucrânia são contrários a esse quadro de defesa do direito internacio­nal”, diz o docente português. “A Sérvia pode ficar ainda mais isolada na sua oposição à independência do Kosovo.”

Outro país balcânico com potencial de desestabilização é a Bósnia-Herzegovina, dividida em duas entidades políticas: a Federação da Bósnia-Herzegovina e a República Srpska, esta última de maioria sérvia, com aspirações separatistas e liderada por um próximo de Putin. “Há uma convergência de narrativas”, comenta Marciacq. “E Milorad Dodik [líder sérvio bósnio] usa um pouco estes sentimentos antiocidentais da Rússia para legitimar a sua reivindicação de secessão”, que ecoa bem em Moscovo.

Em outubro passado, Dodik anunciou a saída da República Srpska das forças de segurança, do sistema judicial e da administração tributária federais, prevista para junho próximo. Outra data crítica será 3 de novembro, quando o Conselho de Segurança da ONU for chamado a renovar o mandato da EUFOR, a missão de manutenção de paz da UE na Bósnia. “A Rússia tem direito de veto”, conclui o francês. “Se disser não, coloca em risco a estabilidade de todo o país.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de março de 2022

ONU estabelece relações formais com o Governo talibã do Afeganistão

Uma resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas garante a continuidade da missão de assistência da ONU em território afegão. Não se cumpriram os receios de que a Rússia pudesse usar o direito de veto, em retaliação pelas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, esta quinta-feira, por larga maioria, uma resolução que formaliza a futura relação entre a organização e as autoridades talibãs do Afeganistão.

O documento, proposto pela Noruega, “redesenha as relações do organismo global com Cabul para corresponder à tomada do poder pelos talibãs, no ano pasado”, escreve a emissora Al-Jazeera, do Catar.

A Resolução 2626 garante também a continuidade das Nações Unidas em território afegão, ao prorrogar por um ano o mandato da Missão de Assistência das Nações Unidas ao Afeganistão (UNAMA), até 17 de março de 2023.

“Esta resolução envia uma mensagem clara de que o Conselho de Segurança está firmemente por trás do apoio contínuo da ONU ao povo afegão, que enfrenta desafios e incertezas sem precedentes”, regozijou-se a missão da Noruega na ONU, num post publicado no Twitter.

Os receios de que a Rússia poderia usar o seu poder de veto — por ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança —, em retaliação pelas pesadas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia, não se confirmaram. Dos 15 votos, 14 foram favoráveis à resoluão e só um país, precisamente a Rússia, se absteve.

Esta posição da ONU constitui o primeiro reconhecimento diplomático internacional do Governo talibã. Apesar de delegações do grupo extremista religioso já terem sido recebidas em vários países, até ao momento nenhum país estabeleceu relações diplomáticas, a nível bilateral, com o novo Governo de Cabul.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

A última guerra na Europa foi nos Balcãs. A região vive em paz, mas não está imune ao que se passa na Ucrânia

A Ucrânia está sozinha na defesa da agressão russa, mas as consequências políticas desta guerra podem bem transbordar o seu território. Em Bruxelas, o alargamento da União Europeia a leste está transformado num dilema. E nos chamados Balcãs Ocidentais — palco da última grande guerra na Europa —, há receios de instabilidade e do regresso de velhos fantasmas

A guerra na Ucrânia pôs fim a um período de paz relativa na Europa que durava há pouco mais de 20 anos. Excetuando conflitos localizados nas fronteiras da Rússia — como o independentismo na região russa da Chechénia, a disputa entre arménios e azeris em torno de Nagorno-Karabakh ou as pretensões separatistas das repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul —, a última grande guerra no Velho Continente travou-se aquando do desmembramento da Jugoslávia.

O conflito foi grande em duração — dez anos (1991-2001) — e em função da quantidade de entidades políticas que envolveu, algumas com estreitas ligações à Rússia. Hoje, a questão coloca-se com naturalidade: pode a guerra na Ucrânia contribuir para nova desestabilização da região dos Balcãs?

“Os Balcãs Ocidentais não estão em guerra e o nível de conflitualidade permanece baixo, mas vivem aquilo a que podemos chamar ‘paz pela negativa’. Isso significa que há permanentemente tensões a diferentes níveis”, diz ao Expresso Florent Marciacq, codiretor do Observatório dos Balcãs, da Fundação Jean Jaurès, de Paris.

“Há muitos problemas em curso. E decerto a guerra na Ucrânia está a reforçar alguma instabilidade existente. Não podemos dizer que vai haver guerra nos Balcãs Ocidentais, mas veremos cada vez mais tensões e problemas”, prossegue o especialista.

GLOSSÁRIO
  • Paz pela negativa: Ausência de guerra e de violência física direta
  • Paz pela positiva: Eliminação das causas da guerra, designadamente da violência estrutural, e promoção de atitudes, instituições e estruturas que criem e sustentem sociedades pacíficas e integradas

O afastamento da perceção de ameaça na região balcânica assenta fundamentalmente em duas circunstâncias. “Por um lado, os Balcãs não são contíguos à Rússia (nem mesmo à Ucrânia) e não são, assim, alvo óbvio ou imediato de eventuais ambições territoriais russas ou dos fluxos de refugiados. Por outro lado, é uma região que não faz nem nunca fez parte da área de influência tradicional da Rússia (nem sequer da União Soviética no tempo da Guerra Fria), apesar da proximidade política, cultural e religiosa entre a Rússia e alguns Estados balcânicos (ou grupos nesses Estados)”, comenta ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense.

“Diria que, neste momento, essa perceção será sentida de forma mais vincada por Estados como as repúblicas bálticas [Estónia, Letónia e Lituânia] ou mesmo pela Polónia.”

Um dos países mais vulneráveis é a Sérvia, que aspira ao melhor de dois mundos aparentemente incompatíveis: relação próxima com a Rússia, assente numa matriz cristã ortodoxa, e adesão à União Europeia. Esta tentativa de equilibrismo faz parte da doutrina da Sérvia, mas “não pode durar para sempre”, diz Florent Marciacq.

“A pressão sobre a Sérvia para que se alinhe é muito alta agora e, quanto mais sanções são adotadas contra a Rússia, mais pressão há. O problema é que, internamente, a Sérvia sempre valorizou muito a amizade com a irmã Rússia e Vladimir Putin é extremamente popular no país. Para os políticos sérvios, qualquer sanção ou argumento contra a Rússia é uma completa contradição da relação que vêm construindo há décadas com a Rússia.”

2012
Em março deste ano,
a União Europeia reconheceu à Sérvia
o estatuto de “candidato” à adesão

Na votação de 2 de março, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em que a Rússia foi condenada de forma esmagadora pela invasão da Ucrânia, a Sérvia alinhou com a maioria e votou contra o país amigo.

Para Belgrado, a Rússia tem sido fundamental na batalha contra o reconhecimento da soberania do Kosovo. Esta antiga província sérvia de maioria albanesa declarou a sua independência em 2008 e é reconhecida por menos de metade dos países do mundo, o que tem sido um obstáculo à sua adesão às Nações Unidas. Na UE, cinco países — Espanha, Roménia, Eslováquia, Chipre e Grécia — ainda não reconhecem o Kosovo como Estado independente.

Neste contexto de invasão russa da Ucrânia, a questão do Kosovo pode afastar a Sérvia da Rússia, adianta Pascoal Pereira. “A Rússia tem sido um dos principais apoios internacionais de Belgrado na defesa da soberania sérvia sobre o Kosovo. Esse apoio está assente na defesa da integridade territorial e da inviolabilidade das fronteiras internacionais, que as forças aliadas ocidentais teriam violado gravemente com a intervenção militar [da NATO] de 1999 e da qual decorreu a posterior declaração unilateral de independência pelo Kosovo. Ora, os atos da Rússia na Ucrânia são contrários a todo esse quadro de defesa dos princípios do direito internacional.”

Igualmente, a agressão russa pode ser lida “de forma análoga aos ataques aéreos liderados pelos Estados Unidos na Sérvia em 1999”, explica o académico português, que detalha as razões para a comparação:

  • Agressão a um Estado soberano por uma potência mais poderosa (EUA em 1999 vs. Rússia em 2022)
  • Responsabilização política do governo que é atacado (Sérvia vs. Ucrânia) pela formação do regime político supostamente autoritário que o sustenta (Milosevic nacionalista vs. Zelensky apoiado por neonazis) e por violações de direitos humanos, sobretudo contra uma determinada minoria étnica (albaneses vs. russos)
  • Impossibilidade de convivência interétnica (Kosovo vs. Donbas)

“Que quero dizer com isto? Subitamente, a Sérvia pode vir a estar ainda mais isolada internacionalmente do que até agora na sua oposição à independência do Kosovo”, conclui Pascoal Pereira.

Os fantasmas da Bósnia

Na região dos Balcãs, outro país com grande potencial de desestabilização é a Bósnia-Herzegovina, território soberano dividido em duas entidades políticas: a Federação da Bósnia-Herzegovina (de população sobretudo croata e muçulmana) e a República Srpska (de maioria sérvia).

A República Srpska aspira à secessão e é liderada por um próximo de Putin, Milorad Dodik, recebido no Kremlin, a 2 de dezembro passado. “Há uma convergência de narrativas”, comenta Marciacq. “E Dodik usa um pouco estes sentimentos antiocidentais da Rússia para legitimar a sua reivindicação à secessão”, que ecoa bem em Moscovo.

Em outubro passado, o líder sérvio-bósnio deu um passo nesse sentido ao anunciar a saída da República Srpska das forças de segurança, do sistema judicial e da administração tributária federais, prevista para junho próximo.

Outra data crítica é 3 de novembro próximo, quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas for chamado a renovar o mandato da EUFOR, a missão da UE de manutenção de paz na Bósnia. “A Rússia tem direito de veto”, recorda o francês. “Se disser não, coloca em risco a estabilidade de todo o país.”

Nos Balcãs Ocidentais, além da Sérvia, outros países já têm estatuto de candidato à UE: Macedónia do Norte (desde 2005), Montenegro (2010) e Albânia (2014). A Eslovénia e a Croácia já aderiram (em 2004 e 2013, respetivamente), o Kosovo celebrou um Acordo de Associação (2013) e a Bósnia-Herzegovina solicitou a adesão.

Na região, o sentimento pró-UE “é muito alto”, diz Marciacq, essencialmente pelo desejo de prosperidade e liberdade. “É mais baixo na Sérvia, mas fora isso é muito alto, e vai crescer ainda mais devido ao contexto de instabilidade e insegurança. É melhor estar com os Estados-membros da UE e da NATO do que sozinho. É o que mostra, infelizmente, o caso da Ucrânia”, que já motivou que Finlândia e Suécia cedessem na neutralidade e passassem a assistir às reuniões da Aliança Atlântica, admitindo aderir à mesma.

Para a UE, tudo isto — a que acrescem os pedidos de adesão de Geórgia, Moldávia e Ucrânia, formalizados já durante a guerra — coloca um dilema relativamente ao seu alargamento. “A adesão à UE não se faz de um ano para o outro, é um processo que demora anos, se não décadas (basta pensar na Turquia ou na Macedónia do Norte)”, recorda Pascoal Pereira. “Implica negociações muito duras e intensas, bem como um esforço de adaptação legislativa e reformas institucionais profundas.”

“Não se prevê que se crie um procedimento acelerado de adesão especial para a Ucrânia (que me pareceu um pedido de adesão mais declarativo do que substancial), nem as instituições europeias ou os Estados-membros receberam a candidatura de forma entusiástica. Mas, tendo em conta que qualquer adesão requer a unanimidade dos Estados-membros atuais, até que ponto algum deles (a Polónia, eventualmente, por ser dos países com mais afinidades históricas com a Ucrânia) não estariam dispostos a condicionar a adesão dos candidatos balcânicos por uma abertura de negociações (ou mesmo adesão simultânea) com a Ucrânia?”

A acontecer, não seria inédito na história da UE. Por alturas do alargamento a dez novos países, em 2004, a Grécia ameaçou vetar todo o processo se Chipre não fosse incluído no lote, o que veio a acontecer. Atendendo ao contexto atual, um pedido de adesão da Ucrânia à UE pode tornar-se um obstáculo no caminho dos que já têm a candidatura formalizada, nomeadamente balcânicos.

Caso os 27 optem por não esticar mais as fronteiras da União, Marciacq alerta para eventuais “custos” decorrentes dessa decisão. “Se a UE não se alargar para uma região da Europa como os Balcãs Ocidentais, cercada por Estados-membros, tal causará vulnerabilidades e instabilidade, porque atores terceiros, como a Rússia e a China, explorarão esses sentimentos antiocidentais e irão desestabilizar com sucesso a região, o que acabará por contaminar também a UE.”

Acresce que não alargar, ou fazer arrastar os processos sem decisão final — como aconteceu com a Turquia —, não significa que esses países não procurem soluções para entrarem no espaço europeu de outras formas. A Albânia viu 2,4% da sua população emigrar para a UE num único ano (2017).

“É um número enorme”, constata Marciacq. “Os países vão-se esvaziar de todos os jovens inteligentes, empreendedores, reformadores e progressistas e ficarão pessoas com filiação partidária, corruptas, etc. Os países ficarão cada vez mais vulneráveis. Se não dermos reposta a essa vontade de liberdade que têm, e que tentarão conseguir dirigindo-se à UE se a UE não se alargar para os seus países, não só teremos pessoas dos Balcãs Ocidentais a entrar na UE, como teremos Estados falhados ou corruptos cercados por membros da UE.”

(IMAGEM RECOM RECONCILIATION NETWORK)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

“Há duas semanas, acordamos numa Europa diferente.” A UE já tem um plano para acabar com a dependência da Rússia

Reunidos durante dois dias, no Palácio de Versalhes, chefes de Estado e de Governo da União Europeia adotaram medidas com vista ao fim da dependência energética em relação à Rússia. O anfitrião Emmanuel Macron considerou a guerra na Ucrânia “um ponto de viragem do projeto europeu”

Há uma nova data no horizonte da União Europeia (UE): 2027. Por essa altura, os 27 Estados membros querem declarar o fim da atual dependência energética em relação à Rússia e afirmarem a soberania do projeto europeu.

“Nós podemos cooperar, queremos estar abertos ao mundo, mas queremos escolher os nossos parceiros e não ficarmos dependentes de ninguém. É isto que entendemos por soberania. Não se trata de protecionismo, nem de fechar a porta a ninguém”, defendeu esta sexta-feira o Presidente francês.

Emmanuel Macron falou no fim de um Conselho Europeu, realizado no Palácio de Versalhes, inicialmente convocado para se dedicar à recuperação económica europeia e que acabou por ser muito condicionado pela guerra na Ucrânia e suas consequências, designadamente ao nível energético.

“É nosso dever continuarmos a assegurar o fornecimento de energia fiável, segura e acessível aos consumidores europeus”, acrescentou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “A médio prazo, isto significa livrarmo-nos da nossa dependência do gás russo, através da diversificação do fornecimento e de um investimento massivo em renováveis.”

A alemã desvendou um plano da Comissão Europeia para o sector energético, designado “REPower EU”. “Em meados de maio, apresentaremos uma proposta para eliminar gradualmente a nossa dependência do gás, petróleo e carvão russos até 2027.”

Energia, defesa e economia

Esta foi uma das principais conclusões da reunião dos 27 chefes de Estado e de Governo, na quinta e sexta-feiras. Os líderes aprovaram formalmente a Declaração de Versalhes, que assenta em três pilares principais:

  1. Energia. Para além da estratégia de redução de dependência da Rússia, os líderes europeus abordaram a subida abrupta dos preços da energia e comprometeram-se com uma otimização dos mercados de eletricidade no sentido de um apoio à transição verde. Foram adotadas medidas a curto prazo para aliviar os gastos de cidadãos e comerciantes e foi desencadeado um plano de reabastecimento do território europeu a pensar no próximo inverno.
  2. Defesa e segurança. Os líderes concordaram que a invasão russa da Ucrânia realçou a urgência em investir na defesa europeia. Está já em curso uma estratégia operacional visando indentificar ações e investimentos necessários e tudo será feito em coordenação com a NATO, a mais forte aliança militar do mundo.
  3. Consolidação da base económica da UE. Este pilar assenta na promoção da paz, da segurança e da prosperidade como um pilar económico da região europeia.

A Declaração de Versalhes “permanecerá nos anais dos projetos europeus”, disse o presidente do Parlamento Europeu, Charles Michel. “Já há algum tempo entendemos que é essencial adotar uma agenda de soberania, de autonomia estratégica para a UE”, que traduz a ambição do bloco europeu, mas também procura corrigir e fortalecer as suas fragilidades.

A “guerra de Putin”

Este foi um Conselho Europeu profundamente marcado pela guerra na Ucrânia. “Desde há 15 dias que a escolha do Presidente Putin foi fazer regressar a guerra à Europa”, disse Emmanuel Macron. “Temos plena consciência que é um ponto de viragem para as nossas sociedades, para os nossos povos e para o nosso projeto europeu.”

Os responsáveis europeus elogiaram a resposta unida, sólida e robusta da UE na adoção de sanções “sem precedentes” à Rússia. Na conferência de imprensa, a presidente da Comissão Europeia anunciou um quarto pacote de sanções em breve que “isolará ainda mais a Rússia” e acentuar “os custos da invasão” da Ucrânia.

Emmanuel Macron disse que outras sanções seguirão e que todas as opções estão sobre a mesa e que os líderes discutiram as possíveis consequências dessa decisão nas próximas semanas e meses. O Presidente francês defendeu que há que manter a “pressão” e um “diálogo exigente” com Moscovo para que seja alcançado um cessar-fogo na Ucrânia e “um rápido regresso à paz”.

Ucrânia, Geórgia e Moldávia na fila

À mesa do diálogo, os 27 não esqueceram os pedidos de adesão à UE expressos por Ucrânia, Geórgia e Moldávia. “Os nossos destinos estão ligados. A Ucrânia é membro da família europeia. A agressão de Vladimir Putin contra a Ucrânia é um ataque contra todos os princípios que nos são queridos, um ataque contra a democracia, soberania de Estados, contra a liberdade das pessoas escolherem o seu destino e desenharem o seu futuro”, complementou Ursula von der Leyen.

A presidente da Comissão saudou o aumento com os gastos nacionais com a Defesa anunciados por alguns Estados membros e referiu-se ao conflito na Ucrânia como “a guerra de Putin”.

(FOTO Foto de família do Conselho Europeu, em Versalhes, França LUDOVIC MARIN / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de março de 2022. Pode ser consultado aqui