Imagens de cadáveres de civis espalhados nas ruas de Bucha e de edifícios completamente destruídos e sem vida na cidade sitiada de Mariupol levantaram um coro de denúncias sobre crimes de guerra na Ucrânia. Como pode intervir o direito internacional?

1. A guerra desencadeada pela Rússia é legal?
Não, desde o seu primeiro minuto. A Carta das Nações Unidas — uma das pedras angulares do direito internacional, assinada a 26 de junho de 1945, no término da II Guerra Mundial — proíbe expressamente, no seu artigo 2º, “o recurso à ameaça ou ao uso da força [o chamado jus ad bellum], quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”. A única exceção em que um país pode, por sua iniciativa, recorrer à força é em situações de legítima defesa (artigo 51º). Ora, no caso da invasão russa da Ucrânia, nem a Rússia foi atacada nem havia uma iminência de ataque armado contra o país liderado por Vladimir Putin.
2. Que legislação é importante?
Além da Carta da ONU, a regulação do uso da força faz-se também através do direito internacional humanitário, que procura limitar o sofrimento provocado pela guerra. Surgiu no século XIX, com o intuito de humanizar a guerra, e assenta em quatro Convenções de Genebra. A primeira (1864) confere proteção aos soldados feridos e enfermos durante uma guerra terrestre. A segunda (1906) estende as obrigações do primeiro tratado às forças navais. A terceira (1929) define o tratamento dos prisioneiros de guerra. E a quarta (1949) outorga proteção aos civis, inclusive em território ocupado. A Rússia ratificou os quatro tratados.
3. Que tribunais são competentes?
Qualquer violação por Estados que tenham ratificado as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TIJ aprecia litígios entre Estados e é o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia-Geral. Quanto ao TPI, que tem sede em Haia, só julga indivíduos.
4. Vladimir Putin pode ser julgado?
Teoricamente, sim, no TPI. Mas, na prática, há uma infinidade de obstáculos até que isso se torne possível. Desde logo, há que recolher, no terreno, indícios e provas das atrocidades imputadas às forças russas, suscetíveis de implicar toda a cadeia de comando até chegar ao Presidente da Rússia. Esta fase pode demorar anos. Se a investigação do TPI resultar na formulação de uma acusação, é então emitido um mandado de captura internacional, dado que o tribunal apenas julga na presença do arguido, e não à revelia. Além disso, o TPI não dispõe de uma força policial que possa atravessar fronteiras nacionais para executar o mandado de detenção. A questão coloca-se: quem apanha Putin?
5. Há algum processo a decorrer no TPI?
Sim. A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan, anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por cerca de 40 países. Atualmente, no terreno, instituições como o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ONG como Amnistia Internacional e Human Rights Watch e ainda jornalistas, ativistas e cidadãos estão numa corrida contra o tempo na procura de registar e documentar o maior número de indícios de crimes de guerra possível. Nem a Rússia nem a Ucrânia assinaram o Estatuto de Roma (que instituiu o TPI), mas tal não constitui entrave a uma ação nesse tribunal.
6. A Ucrânia já acorreu à justiça?
Sim, de forma bastante inteligente. Dois dias após a Rússia ter iniciado a invasão da Ucrânia, argumentando com a urgência em proteger as populações ucranianas russófilas do leste do crime de genocídio, a Ucrânia instaurou um processo no TIJ, acusando a Rússia de manipular o conceito de genocídio para justificar a sua invasão ilegal. A Rússia tentou boicotar o caso faltando a algumas sessões. A 16 de março, ouviu o TIJ dar razão a Kiev e a instar Moscovo a parar imediatamente com as operações militares. A favor votaram 13 juízes e contra apenas dois: o magistrado chinês e o russo. Os veredictos do TIJ são vinculativos, mas o tribunal não tem forma de obrigar ao seu cumprimento.
7. O massacre de Bucha é genocídio?
A violência das imagens captadas naquela cidade dos arredores de Kiev ergueu muitas vozes, incluindo a do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, num coro de denúncias de uma situação de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Mas, à luz do direito internacional, a tragédia de Bucha dificilmente configura um crime desse tipo. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), genocídio consubstancia um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Esta especificidade, aparentemente, não é o caso de Bucha.
Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui