No dia em que assinala três anos sobre a vitória eleitoral que o levou à presidência da Ucrânia, Volodymyr Zelensky dirige-se ao Parlamento português para mais um discurso mobilizador. Como Winston Churchill, referência na área da comunicação política, o ucraniano sabe que quando a situação no seu país deixar de estar no topo da agenda mediática, ele perde a guerra. Ao Expresso, um especialista em comunicação política defende que “Zelensky quer criar a lenda”
Volodymyr Zelensky era, até há bem pouco tempo, um líder relativamente desconhecido no mundo. Alguns teriam apenas presente o momento da sua eleição como Presidente da Ucrânia, a 21 de abril de 2019, quando foi notícia a vitória de um comediante, eleito nas fileiras de um partido com o mesmo nome da série televisiva que o notabilizou — Servo do Povo.
Hoje, Zelensky é um herói no Ocidente, fruto da inesperada resistência ucraniana à invasão russa, que se esperava rápida e fulgurante, e à frequência e qualidade com que discursa. “Sendo um homem da área do humor, sabe a importância que tem a comunicação naquilo que é a projeção de um político, sobretudo em tempos de guerra”, diz ao Expresso Alexandre Guerra, consultor em comunicação. “Zelensky está a utilizar todas as ferramentas que já dominava e muitas outras que aprendeu ou afinou para construir esse estatuto de herói.”
O especialista defende que, independentemente da estratégia montada pela máquina de comunicação que o rodeia, o Presidente ucraniano tem características inatas de um bom comunicador. “Não se consegue construir um estatuto de herói sem que haja características inatas para serem trabalhadas e aperfeiçoadas. Winston Churchill, [primeiro-ministro britânico por duas vezes (1940-45 e 1951-55) e referência na arte da comunicação política] dizia que ‘a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas cultivada’ e que ‘o aperfeiçoamento é encorajado pela prática’. Ou seja, nem tudo pode ser fabricado num líder, nem tudo é inato.”
Isto aconteceu com Churchill — que chefiou , motivou e mobilizou o Reino Unido durante a II Guerra Mundial — e está a suceder agora com Zelensky, que se agigantou com a invasão russa. “Churchill teve uma vasta carreira política antes da II Guerra Mundial, que nunca é citada. O mesmo acontece com Zelensky — há um antes e um depois desta guerra.”
Eleito Presidente faz esta quinta-feira três anos, Volodymyr Zelensky foi um líder que não só não se destacou, nos primeiros tempos, por particular brilhantismo, como se deixou arrastar para o lamaçal em que se tornou a política interna nos Estados Unidos.
Um telefonema entre Zelensky e Donald Trump, a 25 de julho de 2019, desclassificado meses depois por ordem do Presidente norte-americano para que se escutasse os seus pedidos a Zelensky para investigar as atividades do rival democrata Joe Biden e do seu filho Hunter no país, revelou um ascendente de Trump sobre o chefe de Estado ucraniano.
Depois de o americano o felicitar pela vitória nas legislativas, Zelensky desfez-se em elogios à figura de Trump. “Conseguimos uma grande vitória e trabalhamos no duro para isso. Mas quero confessar-lhe que aprendi consigo. Usamos algumas das suas habilidades e conhecimento”, admitiu. “Posso dizer-lhe o seguinte: da primeira vez telefonou-me para me parabenizar quando venci as presidenciais, e está a ligar-me agora, pela segunda vez, quando o meu partido ganhou as legislativas. Julgo que poderia candidatar-me mais vezes para que me telefonasse mais vezes e pudéssemos conversar mais vezes”.
Discursos diários para o país e o mundo
Desde 24 de fevereiro, quando os primeiros militares russos entraram em território ucraniano, Zelensky faz-se ouvir várias vezes ao dia. Dirige-se com regularidade ao povo ucraniano, participa por videoconferência em reuniões com dirigentes internacionais e já discursou para pelo menos 25 parlamentos estrangeiros. Esta quinta-feira, fala na Assembleia da República.
Correndo o risco de contribuir para uma ‘fadiga Zelensky’, o Presidente tem como prioridade manter o tema da guerra na agenda mediática internacional. “Zelensky sabe que o tempo corre contra si em duas pistas”, comenta Guerra, simultaneamente especialista em assuntos internacionais. “Por um lado, quanto mais tempo passa, mais guerra há e mais destruição de território e mais mortes se verificam. Por outro lado, mais probabilidades há de o assunto começar a despertar menos interesse junto das televisões e da opinião pública internacional.”
Nos seus discursos, o chefe de Estado ucraniano alterna palavras de agradecimento ao apoio recebido com tiradas mais crispadas para com os aliados europeus, por exemplo, para pressionar e manter o assunto aceso. “Zelensky sabe que, naquilo que é a sua estratégia de liderança e resistência à Rússia, o tema Ucrânia tem de estar no topo da agenda mediática. Se não, a partir desse momento, ele perde a guerra”, diz o consultor de comunicação.
“Esta necessidade permanente de comunicar, de criar fatores de notícia e de, muitas vezes, provocar serve precisamente para manter o assunto no topo da agenda. De outra maneira, torna-se um conflito congelado e, como tantos outros conflitos esquecidos, os países ficam entregues à sua sorte.”
Esquecimento desde 2014
A própria Ucrânia já provou desse esquecimento. Para qualquer ucraniano, a guerra em curso não começou há semanas, mas antes em 2014, quando a Rússia invadiu o país, anexou formalmente a península da Crimeia e forças separatistas pró-Moscovo assumiram o controlo sobre partes do território do Donbas, no leste. “A Ucrânia ficou por sua conta e risco, na gestão desses dois problemas, sem que houvesse grande mobilização internacional”, recorda Guerra.
Para Alexandre Guerra, é claro que Zelensky soube rodear-se de uma equipa de comunicação “muito profissional”, oriunda da televisão, do jornalismo e da consultoria de comunicação, e que tem revelado capacidade para trabalhar sob grande stresse. “Isso nota-se não só nas comunicações de Zelensky, como em toda a estratégia de comunicação a nível governamental, do poder local ou militar que está toda muito bem coordenada. A forma como a estrutura militar ucraniana controla a comunicação no terreno — mostrando o que quer e gerindo o acesso dos jornalistas aos locais — é de um enorme profissionalismo.”
O especialista destaca o trabalho desenvolvido entre o Governo de Kiev e entidades externas, por exemplo empresas de lóbi (como a Yorktown Solutions, de Washington), de relações públicas (como a Karv Communications, de Nova Iorque), personalidades individuais, como o advogado Andrew Mac (que dirige a Asters, firma de advogados ucranianos em Washington, e é assessor de Zelensky) e antigos políticos americanos que estão em contacto permanente com a presidência ucraniana e atuam como influencers junto de decisores políticos e órgãos de informação.
Também a forma como Zelensky se veste é, em si mesma, um instrumento de comunicação. O colete à prova de bala e o capacete que usa quando anda nas ruas assentam-lhe com naturalidade, ajudando a criar uma imagem de credibilidade e a cimentar a sua liderança militar.
Nos gabinetes, surge quase sempre de ‘mangas arregaçadas’ com uma t-shirt verde-tropa no corpo, que já se tornou uma imagem de marca. Quando o visitou, em Kiev, a 1 de abril passado, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, mostrou solidariedade replicando a indumentária.
Tudo contribui para a construção da imagem de um resistente heróico. “Faz tudo parte de um elemento cénico importante. Mesmo os pequenos gestos, tudo tem um propósito, sobretudo quando estamos em presença de pessoas com um sentido de comunicação muito apurado, ao nível político e da gestão de crises. E tudo aquilo que, aparentemente, é espontâneo tem ali um elemento intencional.”
Amigos portugueses…
No discurso que se projeta para a audiência portuguesa, que resulta de um convite endereçado por Portugal, não faltarão os apelos às emoções que pontuaram as intervenções anteriores. “Mais do que um discurso de circunstância, é uma arma que Dmytro Litvin, o speechwriter de Zelensky, lhe coloca nas mãos, uma arma de apelo ao sentimento e às emoções de determinado povo”, descodifica Guerra.
Previsivelmente, dada a proximidade da sessão com o 48º aniversário do 25 de Abril, é possível que Zelensky não se esqueça desse marco para fazer a apologia da liberdade. “Ficaria muito surpreendido se o discurso não tocasse no 25 de Abril, até porque é uma data que celebra a liberdade e a libertação do jugo autoritário. Tenho expectativa para ver se Zelensky irá um pouco mais longe e vá falar do ‘verão quente’ que implicou um confronto entre uma visão democrática e um projeto comunista, alinhado com Moscovo.”
Para Portugal, esta iniciativa é uma demonstração de solidariedade para com a Ucrânia, no principal órgão de soberania do país. Além desse lado simbólico, “Portugal abre mais uma janela comunicacional a Zelensky e deve tentar potenciar ao máximo essa comunicação para os países de língua oficial portuguesa através, por exemplo, da RTP Internacional. Portugal é uma boa plataforma de projeção para outros países. É pequeno mas tem uma capacidade de alcance internacional muito interessante, junto de públicos que até estão um pouco distantes desta guerra”, como em Áfica ou na América do Sul.
A ‘passagem’ de Zelensky por Lisboa será mais uma etapa de uma guerra paralela às hostilidades no terreno — a da comunicação — e na qual surge como a voz principal de uma população com mais de 44 milhões de pessoas. “A partir do momento em que entrou em modo de guerra, como qualquer bom homem da comunicação política, Zelensky quer criar a lenda. E um dos melhores exemplos disso aconteceu nos primeiros dias de guerra, quando foi noticiado que os Estados Unidos tinham oferecido a Zelensky a possibilidade de sair do país e que ele teria dado uma resposta que ficou célebre: ‘Não preciso de boleia, preciso de munições’.”
A citação surgiu, pela primeira vez, num artigo da agência Associated Press de 26 de fevereiro, dois dias após o início da invasão da Rússia. Escreveu a AP: “Zelensky respondeu: ‘A luta está aqui. Preciso de munições, não de uma boleia”, segundo um alto responsável dos serviços de informação norte-americanos com conhecimento direto da conversa”.
“Hoje, esta resposta já faz parte da lenda e não se sabe sequer quem a proferiu e para quem, nem se essa resposta foi sequer dada por alguém”, conclui Guerra. “A frase foi posta a circular de forma credível e define bem aquilo que é Zelensky nesta guerra: Vou ficar aqui até morrer!”
(FOTO Volodymyr Zelensky durante uma intervenção diante da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui