O direito internacional tem forma de julgar os responsáveis pelo massacre de Bucha. “Mas quem apanha Putin?”

Há genocídio em Bucha? E ilegalidades nos ataques russos, em plena guerra? Que tribunais podem julgar os russos? E haverá vontade? O difícil processo de levar os crimes de guerra russos à justiça

Na emoção de um encontro com refugiados ucranianos, durante a sua recente visita à Polónia, Joe Biden não se conteve nas palavras e chamou “carniceiro” a Vladimir Putin. O comentário gerou um efeito de bumerangue e o Presidente dos Estados Unidos foi duramente criticado, inclusive por alguns pares, como o homólogo francês. “Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o Presidente Putin”, disse.

Se o objetivo do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia, acrescentou Macron, “não podemos escalar nem em palavras nem em ações”. Este discurso mudou após a divulgação das imagens do massacre de Bucha, nos arredores de Kiev. “Hoje, há sinais muito claros de crimes de guerra”, admitiu agora o presidente francês.

Entre os observadores, a atribuição de responsabilidade a Moscovo é cada vez mais hegemónica. “A Rússia manifesta um completo desprezo pelas normas do direito internacional humanitário a que está obrigada. As Convenções de Genebra de 1949 obrigam a que se faça sempre a distinção entre civis e combatentes”, diz ao Expresso Maria Assunção Vale Pereira, professora de direito internacional. “Por outro lado, é preciso distinguir os objetivos militares dos bens de caráter civil, e os russos têm-no ignorado completamente, têm usado armas proibidas, como minas e munições de dispersão”. Porém, acrescenta, se “o direito tem as respostas, o problema é saber se a Rússia está disposta a aplicar o direito a que se comprometeu.”

Houve genocídio em Bucha?

Na Universidade do Minho, esta especialista leciona também direito internacional humanitário, prevenção de conflitos e manutenção da paz e tribunais internacionais. Na sua ótica, o caso de Bucha dificilmente configura um crime de genocídio, conforme o reclama o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e muitas outras vozes chocadas pela violência das imagens captadas na cidade. “O crime de genocídio tem como aspeto específico o facto de os crimes em causa serem praticados com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Não estou a ver que haja em Bucha um grupo específico com estas características.”

Mas nada diminui as acusações de que o Kremlin é alvo. Ainda que Moscovo alegue que as imagens de Bucha sejam produto de uma encenação profissional, a “simples” decisão de invadir um Estado soberano faz com que a Rússia venha acumulando ilegalidades desde o primeiro dia da guerra. “Toda esta intervenção é ilícita, porque o direito internacional proíbe o recurso à força”, continua a professora. “A única exceção em que um Estado, por sua iniciativa, pode recorrer à força é em legítima defesa. Ora a Rússia não foi atacada nem havia uma iminência de um ataque armado. Tudo isto é ilícito.”

À luz do direito internacional, a regulação do uso da força faz-se através da Carta das Nações Unidas, que prevê quando é lícito o recurso à força (o chamado jus ad bellum), e através do direito internacional humanitário, que surgiu no século XIX “com o intuito de humanizar a guerra”, explica a professora Maria Assunção Pereira. “Visa sobretudo preservar quem não participa diretamente nas hostilidades e, por outro lado, limitar meios e métodos de combate, atenuando o sofrimento de quem participa e não participa.”

Hoje, a aplicação de todo este ordenamento jurídico faz-se em especial em duas instâncias internacionais, de quem se espera, neste caso concreto, a responsabilização dos mandantes da agressão a um Estado soberano.

Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

É o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes. São eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, em votações simultâneas, mas separadas. Para ser eleito, um candidato tem de receber a maioria absoluta dos votos nos dois órgãos.

O TIJ apenas julga litígios entre Estados, ou seja, processos em que um Estado está contra outro Estado. “Neste momento, o TIJ aprecia um caso interposto pela Ucrânia que, inteligentemente, aproveitou a acusação que a Rússia lhe fez de estar a perseguir um crime de genocídio [no leste do país] e, a partir daí, encontrou bases de jurisdição para que o Tribunal pudesse julgar. À partida, o TIJ só julga se houver aceitação da sua jurisdição”, explica a professora. Boicotar as diligências do TIJ passa, por exemplo, por faltar às sessões. A Rússia fê-lo recentemente.

A 16 de março passado, os trabalhos em Haia — onde fica a sede do TIJ — foram uma demonstração de como não decorrem de forma totalmente imune às sensibilidades políticas em redor deste caso. Nesse dia, o TIJ aprovou uma posição exortando a Federação Russa a parar com a guerra e com todas as atividades militares na Ucrânia. A decisão foi aprovada por 13 juízes. Os dois que votaram contra foram os magistrados russo e chinês.

Tribunal Penal Internacional (TPI)

Ao contrário do TIJ, que aprecia casos entre Estados, o TPI só julga indivíduos. Nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma, que instituiu este tribunal, mas isso não constitui um entrave perante a vontade de ser desencadeada uma ação no TPI.

Isso pode ser feito através de uma remissão do Conselho de Segurança da ONU, o que neste caso não acontecerá em virtude do poder de veto de que a Rússia dispõe. Pode haver também Estados a denunciar a prática de crimes ou pode ser o procurador do TPI, por sua própria iniciativa e em posse de indícios que caibam no âmbito da competência do tribunal, a levar a cabo essa investigação. Se da investigação decorrer a formulação de uma acusação e se esta dor confirmada pelo Juízo de Instrução, é então emitido um mandado de captura internacional.

“Mas quem é que apanha o Putin?”, questiona Maria Assunção Pereira. “O TPI não julga à revelia, é preciso a presença do arguido. Além disso, é um tribunal, não tem forças de polícia. Putin está enfiado num bunker, ninguém sabe bem onde, e nunca mais vai sair da Rússia. É difícil que seja capturado para ser levado a tribunal. Os instrumentos existem, assim pudessem funcionar.”

Da mesma forma que o TPI está dependente das polícias nacionais (que não podem cruzar fronteiras) para executar mandados de detenção, também não tem prisões onde os condenados possam cumprir a sentença. “Mas há acordos celebrados com Estados, como por exemplo com a Holanda”, explica a docente. “Através desses acordos, a Holanda disponibiliza-se a receber um determinado número de pessoas para cumprir pena nas suas prisões.”

Recolher provas para levar a tribunal

Da recolha de provas até à emissão de um mandado de captura podem passar anos. Mas ceder à morosidade da justiça teria o mesmo efeito de uma rendição voluntária ao agressor.

A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan QC, anunciou a abertura de uma investigação oficial aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por um conjunto de países, atualmente 41. Para que o processo avance, “é preciso que o Estado da nacionalidade dos alegados responsáveis pelos crimes aceitem a jurisdição, o que não é possível, porque são russos e a Rússia não aceita, ou então que o Estado em cujo território tiveram lugar os crimes, a Ucrânia, aceite a jurisdição”, explica Maria Assunção Pereira.

Paralelamente, também a Procuradoria-Geral da Ucrânia está a recolher dados sobre crimes de guerra. Há um site no qual qualquer cidadão pode registar os seus achados. “Desde o início da guerra, registamos mais de 4000 crimes militares, crimes de guerra”, disse esta segunda-feira a procuradora-geral do país. O objetivo da iniciativa é documentar factos para poder apresentar provas diante dos tribunais ucranianos e também do TPI.

A procuradora Iryna Venediktova esclareceu que ainda não foram verificadas as denúncias referentes a Bucha (execuções sumárias e valas comuns) e Mariupol. Nesta cidade do sudeste da Ucrânia, onde se estima que 90% dos edifícios tenham sido destruídos, foi bombardeado um teatro onde estava instalado o maior abrigo antiaéreo da cidade e onde estavam refugiadas centenas de pessoas. No seu exterior, uma palavra escrita em russo, visível a partir do céu, alertava para a presença de civis no local: dizia “crianças”, mas não deteve o fogo russo.

Apesar de não ser signatária do TPI, a Ucrânia reagiu à ameaça russa à sua soberania e adaptou a sua posição em relação ao TPI. Através de uma declaração emitida em 2015, a Ucrânia passou a reconhecer a jurisdição do TPI em matéria de “alegados crimes” praticados pela Rússia no seu território desde 20 de fevereiro de 2014.

Neste dia, mais de 50 manifestantes antigoverno foram mortos na Praça Maidan, em Kiev, tomada pelo movimento Euromaidan, que defendia a aproximação da Ucrânia à União Europeia. Este massacre atribuído à polícia ucraniana precipitou a queda do governo pró-russo, a invasão e posterior anexação russa da Península da Crimeia e constituiu o tiro inicial para a guerra separatista no leste da Ucrânia.

As memórias (e o exemplo) de Nuremberga

A forma como, após a II Guerra Mundial, oficiais nazis e guardas dos campos de concentração conseguiram escapar aos julgamentos de Nuremberga e esconderem-se em múltiplos países é hoje apontado como uma vulnerabilidade que se pode repetir.

Recorda Maria Assunção Pereira: “Depois de Nuremberga, foram apontadas várias deficiências a esse tribunal. Logo em 1948, a Assembleia Geral [da ONU] convidou a Comissão de Direito Internacional, que era um órgão subsidiário, a ponderar o interesse da criação de um tribunal de natureza penal e de caráter permanente. Mas, apesar de tudo o que tinha sido reconhecido em Nuremberga, houve, por um lado, a Guerra Fria (que levou a que não houvesse entendimento) e, por outro lado, a ideia (enfatizada no princípio da proibição do uso da força, na Carta das Nações Unidas) de que qualquer tribunal que fosse criado tinha que ter competência para julgar o crime de agressão. Mas como isso tocava com as competências do Conselho de Segurança também não se conseguiu fazer nada. Foi preciso esperar pelo fim da Guerra Fria”.

A trágica década de 1990 daria motivos suficientes para a reorganização da justiça internacional. Em 1993, foi estabelecido, através de uma resolução do Conselho de Segurança, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, com competência para julgar os crimes mais graves aí ocorridos. Com o mesmo espírito, foi criado, no ano seguinte, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Só em 1998 é que foi adotado o Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional com os contornos hoje em vigor.

Existe o direito, existem instituições, mas pode faltar vontade política em que se faça justiça. Para além da Rússia, até países como os Estados Unidos, a China e Israel não assinaram ainda o Estatuto de Roma. “O TPI só pode julgar se considerar que não há vontade ou capacidade dos Estados para julgarem”, conclui Maria Assunção Pereira.

“Parece que alguém está a dizer: ‘Os meus não podem ser julgados porque mesmo no meu país não há garantias de que sejam julgados devidamente’. Nos Estados Unidos, por exemplo, há várias situações de indivíduos acusados de crimes de guerra a serem julgados em comissões administrativas. Isso não é um tribunal. Então no mandato de Donald Trump, foi uma hostilidade absolutamente paranóica contra o TPI.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui