Os vários rostos dos oceanos

Os mares são verdadeiras autoestradas que aproximam povos e possibilitam o transporte de bens até ao outro lado do mundo. Também produzem alimento, sustentam comunidades e alimentam o planeta acolhendo plataformas de exploração energética. Permitem que entremos neles e nos deslumbremos com as suas maravilhas subaquáticas. Mas são também fonte de enorme preocupação. São nos oceanos que se manifestam algumas das mais galopantes evidências da degradação ambiental terrestre e são cada vez mais usados para preparar e lançar ataques bélicos. Várias facetas do mar em 25 imagens

SEGURANÇA. Um navio caça-minas da Marinha turca zela pela proteção da navegação e “varre” as águas junto a Erdek, na região de Mármara ALI ATMACA / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
ENERGIA. Uma estação e turbinas eólicas evidenciam uma aposta nas renováveis ao largo da Península de Shandong (China) GETTY IMAGES
ALIMENTO. Numa praia de Muanda (República Democrática do Congo), um grupo de pescadores prepara as redes para mais um dia na faina ALEXIS HUGUET / AFP / GETTY IMAGES
COMUNIDADE. Entre o povo Moken, chamado “ciganos do mar”, a pesca é subaquática, neste caso ao largo da ilha de Phuket (Tailândia) LILLIAN SUWANRUMPHA / AFP / GETTY IMAGES
DESCONTRAÇÃO. Na Faixa de Gaza, surfistas palestinianos preparam-se para apanhar as ondas do Mediterrâneo MAJDI FATHI / NURPHOTO / GETTY IMAGES
DEGELO. A fragmentação das calotas de gelo, como na Gronelândia, é uma das manifestações mais visíveis das alterações climáticas ULRIK PEDERSEN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
VULNERABILIDADE. Esta vista aérea sobre Funafuti, a capital do Tuvalu, revela a grande exposição do arquipélago à subida do mar MARIO TAMA / GETTY IMAGES
POLUIÇÃO. Um mar de lixo ao largo de Ortakoy, um bairro de Istambul SEBNEM COSKUN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
ÊXODO. Um barco com dezenas de migrantes é escoltado pela guarda costeira italiana, junto à cidade siciliana de Catânia FABRIZIO VILLA / GETTY IMAGES
RELAXE. Mar e praia, dois dos ecossistemas mais procurados nas férias de verão TAYFUN COSKUN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
DESASTRE. A praia de Mae Ramphueng (Tailândia) está interdita a banhos, após o derramamento de petróleo no mar ATHENS ZAW ZAW / GETTY IMAGES
TREINO. Duas embarcações participam no exercício militar “Escudo Protetor”, no Mar Negro, perto da Roménia MIHAI BARBU / AFP / GETTY IMAGES
VIDA. Uma tartaruga recém-nascida num centro de incubação da cidade de Chennai (Índia) “ganhou asas” e segue na direção do Golfo de Bengala ARUN SANKAR / AFP / GETTY IMAGES
INDÚSTRIA. Um drone capta uma piscicultura de atum, no Mar Egeu MAHMUT SERDAR ALAKUS / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
COMÉRCIO. Três porta-contentores, de outras tantas empresas de transporte marítimo internacional, atravessam o Mar do Norte JONAS WALZBERG / GETTY IMAGES
PRODUÇÃO. Vista aérea sobre barcos de pesca numa quinta de algas, na cidade portuária de Dalian (China) GETTY IMAGES
TURISMO. Uma fila de barcos de cruzeiro ancorados junto à cidade de Miami (Estados Unidos) JOE RAEDLE / GETTY IMAGES
CRENÇAS. Numa praia de Bali (Indonésia), devotos hindus lavam a cara com água do mar, durante uma cerimónia de purificação GARRY LOTULUNG / NUR PHOTO / GETTY IMAGES
EXPLORAÇÂO. Um mergulhador verifica o estado dos recifes de coral, nas Ilhas da Sociedade (Polinésia Francesa) ALEXIS ROSENFELD / GETTY IMAGES
COMPETIÇÃO. Prova de vela, nas águas da cidade de Kiel (Alemanha), junto ao Mar Báltico SASCHA KLAHN / GETTY IMAGES
ABASTECIMENTO. Um navio-tanque descarrega petróleo, num terminal do porto de Yantai (China) GETTY IMAGES
RECREAÇÃO. Um pescador solitário exibe a captura de um polvo, na baía de Akyaka (Turquia) ONUR DOGMAN / GETTY IMAGES
SOBREVIVÊNCIA. Nas Maldivas, ameaçadas pela subida do nível do mar, um grupo de mulheres antecipa adversidades futuras e aprende a nadar ALLISON JOYCE / GETTY IMAGES
TRABALHO. Em Izmir (Turquia), os mergulhadores são fundamentais à apanha do atum MAHMUT SERDAR ALAKUS / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
CENÁRIO. Onde quer que se localize, o mar é garantia de um pôr do Sol espetacular, como na ilha de Föhr (Alemanha), junto ao Mar do Norte CHRISTIAN CHARISIUS / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui

Israel vai para as quintas eleições em três anos. Será o regresso de Netanyahu?

Apoiada em oito partidos, a coligação governamental implodiu após um ano no poder

ILUSTRAÇÃO CHAIM V’CHESSED

1 Porque caiu o Governo?

Porque era formado por um conjunto de partidos com interesses conflituantes e, atualmente, era minoritário no Parlamento (Knesset). A 13 de junho de 2021, este Executivo foi aprovado por 61 deputados (em 120), mas hoje tinha o suporte de apenas 59, oriundos de oito forças políticas com agendas irreconciliáveis, da extrema-direita judaica aos árabes islamitas. O cimento que os uniu foi, tão somente, a vontade de correrem do poder o então primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Segunda-feira, ao anunciarem o início do processo de dissolução do Knesset, o atual chefe do Governo, Naftali Bennett (nacionalista), e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Yair Lapid (centrista, que deveria suceder-lhe no cargo, em regime de rotação), disseram ter “esgotado todos os esforços para estabilizar a coligação”.

2 Que assuntos originaram divisões?

Vários, como a questão do Estado palestiniano ou a relação entre religião e Estado. O último abalo foi provocado pela chamada Lei dos Colonos, rejeitada no Knesset a 6 de junho. Nos últimos 50 anos, esta lei, que decreta a aplicação da lei civil aos colonos judeus que vivem no território ocupado da Cisjordânia (aos palestinianos é aplicada a lei militar), tem sido renovada por ampla maioria. A rejeição de uma lei desta importância põe em evidência o mal-estar entre Governo e oposição. Com a dissolução do Knesset, a lei é automaticamente prorrogada por seis meses.

3 O que se segue à dissolução?

Confirmado o fim da legislatura, previsto para o início da próxima semana, Israel segue para novas eleições legislativas, as quintas desde abril de 2019. Em três dos quatro últimos escrutínios, o partido mais votado foi o Likud (direita), liderado por Netanyahu, o israelita que mais tempo exerceu o cargo de primeiro-ministro. ‘Bibi’, como é conhecido, liderou o país entre 1996 e 1999 e entre 2009 e 2021.

4 Netanyahu pode voltar ao poder?

Sim. No dia em que foi anunciada a dissolução do Knesset, o líder da oposição prometeu formar “um Governo nacional amplo, forte e estável”, que “traga de volta o orgulho nacional”. Três sondagens divulgadas no dia seguinte confirmaram a preferência dos israelitas por Netanyahu, ainda que nenhuma lhe atribua votos suficientes para formar uma coligação maioritária com os seus aliados tradicionais: a da televisão pública Kan dá-lhe 60 deputados e as dos Channel 12 e 13, 59. No Knesset, a maioria é de 61 deputados, uma fasquia inalcançável nos últimos anos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Os candidatos que atrapalham a Ucrânia

A Ucrânia tem pressa em aderir à UE. Mas cinco países já estão na corrida. Um deles há mais de 20 anos

Mapa da Ucrânia colorido com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

A Ucrânia está em acelerada aproximação à União Europeia (UE) e o seu Presidente parece estar já em posse do calendário. “A fase final da grande maratona diplomática, que deve terminar dentro de semana e meia, começou hoje”, disse Volodymyr Zelensky há cinco dias, depois de ter recebido em Kiev a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Nesta maratona estamos realmente com a UE, em equipa, e essa equipa tem de vencer. Estou certo de que em breve receberemos uma resposta sobre o estatuto de candidato para a Ucrânia.”

Zelensky aponta ao Conselho Europeu da próxima semana, em Bruxelas, que irá discutir a urgência ucraniana em aderir à UE. A invasão russa precipitou também pedidos de adesão da Geórgia e da Moldávia. Entre os 27, António Costa tem sido dos dirigentes que mais tem contrariado o apelo às emoções do Presidente ucraniano, que pressiona por uma integração rápida. Em entrevista ao “Financial Times”, o primeiro-ministro português defendeu, esta semana, que Bruxelas arrisca criar “falsas expectativas” à Ucrânia. Talvez tenha em mente a morosidade do processo de Portugal, que, sem a complexidade geopolítica da Ucrânia, demorou nove anos a entrar na então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Na maratona em que Zelensky transformou o processo ucraniano há já cinco atletas em prova: o oitavo país muçulmano mais populoso do mundo e quatro dos Balcãs Ocidentais. Três estão em fase de negociações e dois esperam — e desesperam — pelo início formal do processo.

SÉRVIA E MONTENEGRO: Sprint até à meta

Estes países, que resultaram do desmembramento da antiga Jugoslávia, têm o estatuto de candidato à UE há 10 e 12 anos, respetivamente. Ambos têm negociações abertas com Bruxelas, mas a Sérvia (sete milhões de habitantes) enfrenta obstáculos políticos. À cabeça, a questão do Kosovo, com potencial para bloquear o processo. Belgrado não reconhece a independência da sua antiga província de maioria albanesa, como não o fazem cinco membros da UE, incluindo Espanha e Grécia.

O atual contexto de guerra na Ucrânia veio acrescentar complexidade ao dossiê sérvio. Tradicional aliado da Rússia (ambos de matriz cristã ortodoxa), Belgrado resiste a aplicar sanções a Moscovo. “É nossa expectativa que essas sanções também sejam apoiadas por todos os que se veem como candidatos à adesão à UE”, alertou, há uma semana, o chanceler alemão, Olaf Scholz, de visita à Sérvia. “Não respondemos a pressões dessas, em que alguém nos ameaça e temos de fazer alguma coisa…”, respondeu-lhe o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic.

O processo do Montenegro (600 mil habitantes) é bem menos trabalhoso. Este país, que ascendeu à independência em 2006 (separando-se da Sérvia por referendo), já conseguiu abrir negociações em todos os 33 capítulos previstos, tendo encerrado três.

TURQUIA: O atleta cansado que ameaça desistir

O sonho europeu da Turquia remonta ao longínquo ano de 1987, quando pediu adesão à CEE. Em 1999 obteve o estatuto de candidato. Membro da NATO e parceiro estratégico da UE em matéria de migrações, segurança e contraterrorismo, este processo começou a baquear face à agenda turca em matéria de democracia, Estado de direito e direitos humanos. Em 2018 as negociações congelaram.

Se a adesão turca nunca foi consensual dentro da UE — desde logo pelo peso demográfico do país (84 milhões de habitantes), que o colocava ao nível da poderosa Alemanha, e pela sua matriz muçulmana —, o atual contexto de guerra veio afastar ainda mais Ancara e Bruxelas. Não pela equidistância turca em relação a Kiev e Moscovo, mas perante a resistência à entrada da Finlândia e Suécia na NATO.

MACEDÓNIA DO NORTE E ALBÂNIA: Sem esperança de apanhar os da frente

Como aconteceu com Portugal e Espanha, a UE entendeu que as adesões da Albânia (três milhões de habitantes) e da Macedónia do Norte (dois milhões) deviam correr em paralelo, ainda que os macedónios tenham abordado as autoridades europeias muito antes dos albaneses: o pedido da Macedónia data de 2004 e o da Albânia de 2009. São candidatos desde 2005 e 2014, respetivamente.

A UE exigiu trabalho extra à Albânia, nomeadamente em áreas como o sistema judi­cial, a Administração Pública, os serviços de informação e o combate à corrupção e ao crime organizado.

Skopje foi solidária com Tirana e esperou. O inverso coloca-se agora, com o dossiê macedónio a marcar passo devido a objeções da Bulgária, que inviabiliza a unanimidade no Conselho. Já em 2019 a mudança de nome — de Antiga República Jugoslava da Macedónia para República da Macedónia do Norte — visou apaziguar a Grécia, que tem uma região chamada Macedónia.

Estão em causa obstáculos de natureza identitária relacio­nados com o reconhecimento mútuo de línguas, factos históricos que Macedónia e Bulgária reivindicam e a nacionalidade de alguns heróis. Em outubro, o Presidente búlgaro, Rumen Radev, disse que o seu país pode viabilizar a adesão se Skopje parar com o “apagamento subtil” da identidade dos macedónios búlgaros.

TRÊS PERGUNTAS A.. Isabel Santos

Eurodeputada, relatora do Parlamento Europeu para o processo de adesão da Albânia

A guerra deve tornar a adesão da Ucrânia prioritária?
Estamos a discutir a atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia quando há outros Estados que apresentaram candidatura, como a Moldávia e a Geórgia, e quando há expectativas criadas nos países que já têm esse estatuto. Alguns esperam há anos que seja marcada a primeira Conferência Intergovernamental (CIG), que é só o começo de um longo processo de negociações, de abertura e encerramento de diferentes dossiês, que levam a mudanças legislativas e reformas nos países até que ocorra o ato de adesão. A Comissão reconheceu, no fim de 2019, que a Macedónia do Norte e a Albânia tinham cumprido todas as condições para agendar a CIG.

Dada a objeção búlgara à Macedónia, não se pode separar esse processo do albanês?
É possível. Houve um momento em que a Macedónia parecia mais bem posicionada do que a Albânia, e a Macedónia foi solidária. Agora é ao contrário. Tenta-se manter uma certa solidariedade. Não está fora de questão que no futuro se venha a separar os processos. A Bulgária tem tido uma posição muito renitente em relação à Macedónia do Norte, baseada em argumentos profundamente nacionalistas e até pouco racionais. A Albânia alcançou todas as metas que lhe foram exigidas para avançar. É uma situação injusta.

Esta guerra pode levar a UE a recear alargar-se para Leste?
Não deve. O alargamento tem sido um processo de garantia de estabilidade, paz e desenvolvimento. Devemos continuá-lo. Olhando para os Balcãs e a sua história trágica, percebemos quão importante é este alargamento para a região, mas também para a estabilidade europeia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

Dossiê nuclear estava à beira de novo acordo, mas acabou refém da guerra na Ucrânia

Há mais de um ano que sete países negoceiam, em Viena, uma segunda vida para o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. Quando parecia iminente um entendimento, a guerra na Ucrânia e as pesadas sanções a Moscovo condicionaram a posição da Rússia. Esta segunda-feira, a Agência Internacional de Energia Atómica debruça-se sobre relatórios internos que identificam vários incumprimentos por parte do Irão

A ambição do Irão em dotar-se de um programa nuclear tem um potencial incendiário tal que, de tempos a tempos, coloca o mundo à beira de um ataque de nervos. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da Agência Internacional de Energia Atómica avalia a resposta que a República Islâmica tem dado aos compromissos assumidos no âmbito do acordo internacional de 2015.

Este balanço acontece numa altura em que mais de um ano de negociações em Viena, envolvendo os mesmos sete países que patrocinaram o acordo de há sete anos, não conseguiu ainda dar nova vida a esse entendimento, ferido em 2018 pela saída dos Estados Unidos. E coincide com a guerra na Ucrânia, que motivou uma alteração do posicionamento da Rússia no dossiê iraniano.

Enquanto não se percebe em que sentido evolui este dossiê, o Expresso apresenta quatro perguntas e respostas para melhor compreender o que está em causa e o contexto geopolítico que rodeia um dos maiores desafios políticos da atualidade.

Como olha a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para o Irão?

Presentemente, com alguma desconfiança. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da organização discute o cumprimento pelo Irão dos compromissos assumidos no acordo de 2015, com base em relatórios recentes — penalizadores para Teerão — do diretor-geral da AIEA.

Entre as várias falhas apontadas pela Agência, estão:

  • a falta de resposta das autoridades iranianas a perguntas da Agência relativamente à origem de partículas de urânio encontradas numa instalação nuclear antiga, mas não declarada;
  • o aumento das reservas de urânio enriquecido para 3809,3 kg, um número mais de 18 vezes superior ao limite fixado pelo acordo de 2015, que era de 202,8 kg;
  • a dificuldade de acesso às gravações das câmaras de vigilância colocadas pela Agência em centrais iranianas.

“Suponho que deva abster-me de tirar uma conclusão final, pois ainda não finalizámos o processo, mas permitam-me que diga que estamos numa conjuntura muito difícil”, admitiu recentemente o diretor-geral da AIEA, o argentino Rafael Mariano Grossi, num discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos.

As dúvidas AIEA constituem fonte de tensão acrescida entre o Irão e os países ocidentais, envolvidos em negociações que visam a revitalização do acordo de 2015.

Que resta desse histórico compromisso internacional?

O acordo que colocou o arsenal nuclear do Irão sob supervisão internacional, em troca do levantamento de sanções, sobreviveu à saída unilateral dos Estados Unidos, ordenada pelo então Presidente Donald Trump. Contudo, foi perdendo eficácia, já que, após a reintrodução das sanções norte-americanas suspensas pelo acordo, o Irão não se achou mais obrigado em cumpri-lo no desenvolvimento das suas atividades nucleares.

Com a mudança de inquilino na Casa Branca, voltou a haver vontade política em Washington no sentido de um regresso ao acordo, mas tal não pode ser feito de forma automática. Os iranianos, sentindo-se traídos pela deserção dos norte-americanos, não abdicam de impor condições a esse regresso. Até porque não têm garantias de que as eleições presidenciais de 2024 não coloquem um republicano na Casa Branca, o que aumentaria a possibilidade de um compromisso com o Irão voltar a ser rasgado.

Desde abril de 2021 que decorrem negociações, em dois hotéis de luxo da capital da Áustria — o Grand Hotel Wien e o Palais Coburg —, com vista à reativação do acordo de 2015 (também conhecido pelo acrónimo inglês JCPOA, de Joint Comprehensive Plan of Action). Na prática, isso passa por reintegrar os Estados Unidos e levar o Irão a reafirmar os compromissos assumidos.

Participam neste diálogo os mesmos sete países que assinaram o acordo de 2015: além do Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e ainda a Alemanha. Washington e Teerão — que não têm relações diplomáticas formais — não dialogam olhos nos olhos, mas de forma indireta.

Um diplomata espanhol, Enrique Mora, é o negociador-mor deste diálogo, em nome do Alto representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell.

Em meados de fevereiro, um compromisso parecia bem encaminhado. A 22, Mora escrevia no Twitter: “As conversações de Viena sobre o JCPOA estão num momento crucial. Estamos a aproximar-nos do fim após dez meses de negociações. O resultado ainda é incerto. Assuntos importantes precisam de ser resolvidos. Mas todas as delegações estão totalmente comprometidas. Trabalho intenso no Coburg”.

A sua publicação post seguinte, dois dias depois, seria de condenação à agressão da Rússia à Ucrânia, que contaminaria o processo iraniano.

De que forma a guerra na Ucrânia interfere nesta questão?

Se, em 2018, foram os Estados Unidos de Trump a abalar os alicerces do acordo sobre o nuclear iraniano (com a retirada unilateral), em 2022 é a Rússia de Vladimir Putin que torna o dossiê refém do conflito na Ucrânia.

Confrontado com um isolamento internacional em amplos domínios, justificado com a agressão à Ucrânia, o regime de Moscovo mudou a sua posição nas negociações internacionais com o Irão. No início de março, de forma inesperada, a Rússia exigiu aos Estados Unidos “garantias escritas” de que a sua relação comercial com o Irão, bem como a cooperação militar e os investimentos não seriam afetados pelas sanções à Rússia.

A possibilidade do colapso nas negociações chegou a Viena e as negociações pararam por tempo indeterminado. A 11 de março, o chefe da diplomacia da UE, Borrell confirmava: “É necessária uma pausa nas conversações de Viena, devido a fatores externos. Um texto final está essencialmente pronto e sobre a mesa”.

Para os países que tiraram lições da guerra na Ucrânia e querem acabar com a sua dependência energética em relação à Rússia, o levantamento das sanções ao petróleo e gás do Irão criaria mais abundância nos mercados internacionais e previsivelmente estabilizaria os preços da energia, inflacionados pela guerra na Ucrânia. Algo em que a pressionada Rússia não está interessada.

Como se posiciona o Irão perante tudo isto?

Para os iranianos, o impasse negocial significa a continuidade das sanções internacionais. Pelo acordo de 2015, Teerão obteve garantias de que as sanções seriam levantadas. Com isso não só conseguiria alívio ao nível das contas públicas como capitalizaria com a alta do preço do petróleo.

Só em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano, o Irão tem congelados 7000 milhões de dólares (€6500 milhões) em fundos.

Outro braço de ferro é a exigência do Irão para que os Estados Unidos retirem da lista de organizações terroristas os Guardas da Revolução, força de elite iraniana criada após a Revolução Islâmica de 1979, assim rotulada à época da Administração Trump.

Desde que há novo Presidente em Teerão — Ebrahim Raisi tomou posse em agosto de 2021 — e face às dificuldades num entendimento com o Ocidente, a Rússia tem surgido como parceiro preferencial e de futuro para o Irão. Raisi já visitou Putin no Kremlin e Hossein Amir-Abdollahian, o ministro iraniano dos Negócios estrangeiros, foi a Moscovo pelo menos sete vezes.

Ao quarto dia da invasão russa da Ucrânia, 300 empresários russos, de sectores como as indústrias química, farmacêutica e alimentar, chegaram a Teerão para desenvolver relações comerciais e, previsivelmente, trocar opiniões e experiências sobre como contornar o cerco internacional. Além das sanções, ambos os países estão excluídos do sistema internacional de pagamentos SWIFT.

Para os iranianos, o colapso destas negociações significará rédea livre para desenvolverem o seu programa nuclear na direção que entenderem — para fins civis, militares ou ambos.

Sexta-feira passada, a convite do primeiro-ministro de Israel, o diretor-geral da AIEA realizou uma curta visita ao país. Naftali Bennett deixou claro a Grossi que “embora Israel prefira a diplomacia para privar o Irão da possibilidade de desenvolver armas nucleares, reserva-se o direito de autodefesa e de ação contra o Irão para travar o seu programa nuclear”. O Médio Oriente arrisca-se a ter mais um capítulo na sua longa história de conflitualidade.

(IMAGEM O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi negociado pelo Irão e mais seis países BRUSSELS MORNING)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui

Manuel Valls ao Expresso. “A prioridade de França é reconciliar os franceses”

O antigo primeiro-ministro francês passou por Portugal em campanha eleitoral. Candidato pelo círculo da emigração nas legislativas deste mês, em representação dos franceses que vivem nomeadamente em Portugal, concedeu uma entrevista ao Expresso onde identificou os principais problemas de França, comentou a guerra na Ucrânia e explicou por que razão abandonou o Partido Socialista

Manuel Valls foi primeiro-ministro de França entre 2014 e 2016, durante o mandato presidencial de François Hollande. Então militante do Partido Socialista, o francês nascido na Catalunha abandonou essa histórica força política após ter perdido as primárias para as presidenciais de 2017 para Benoît Hamon, da ala esquerda. Agora que o PS aderiu à frente chefiada por Jean-Luc Mélenchon, Valls decreta a sua morte. Ele, que sempre foi centrista, aproveitou a dupla nacionalidade para ser candidato à Câmara Municipal de Barcelona em 2019, pelo partido centrista liberal Cidadãos. Não ganhou, mas foi vereador. Agora regressa à arena política francesa ao lado do Presidente, Emmanuel Macron, candidatando-se às legislativas de 12 e 19 de junho pela frente centrista e liberal do chefe de Estado, rebatizada de Renascimento. Aos 59 anos, concorre à Assembleia Nacional pelo círculo eleitoral que representa os franceses emigrados em Portugal, Espanha, Andorra e Mónaco. Esteve em Portugal no final de maio, em ações de campanha que o levaram de Braga ao Algarve.

ACREDITO QUE HOJE O PRINCIPAL PROBLEMA DE FRANÇA É A SUA DIVISÃO

Quais são hoje os principais problemas de França?
 A sua divisão. São as fraturas sociais, geracionais e geográficas demonstradas na primeira volta das presidenciais, com três grandes blocos: Macron, Le Pen, Mélenchon. Todas as sociedades democráticas vivem essa polarização. Temos em Espanha o fenómeno Vox. Em Portugal, pela primeira vez, há uma lista à direita da direita. Há movimentos na rua, como os “coletes amarelos”. A democracia representativa está em crise. A abstenção é muito alta, a sociedade está tensa, enquanto no plano económico a situação é boa: teríamos perspetiva de pleno emprego se não fosse a crise ucraniana. França resistiu à crise sanitária com investimento na ajuda às empresas, negócios, cultura, pessoas e famílias. Não obstante, há desigualdades, precariedade no trabalho. Cuidado: a economia é uma coisa, depois existem as pessoas que ficam de lado. Basicamente, a principal prioridade de França é reconciliar os franceses consigo mesmos.

É candidato pela maioria presidencial, que perdeu votos relativamente a 2017. Como vê a evolução eleitoral de Marine Le Pen?
Na primeira volta das presidenciais, Macron ganhou votos em relação a 2017. A segunda volta foi diferente, mas é normal. Teve, ainda assim, mais do que as sondagens previam, 58%. O fenómeno novo é a tripartição Macron-Le Pen-Mélenchon, e haver um hipercentro em torno do Presidente, de centro-esquerda e centro-direita: os republicanos, a social-democracia, os ecologistas também estão com Macron. Temos a ascensão da extrema-direita e aquilo a que chamo mélenchonismo, a união da esquerda que é totalmente contrária à história do Partido Socialista. Os extremos alimentam-se da raiva, do medo do futuro, da precariedade social, de pessoas que não se sentem consideradas. Hoje há esse sentimento junto de pessoas que, mesmo que ganhem bem a vida, estão muito preocupadas porque o custo da gasolina ou do aquecimento impossibilita o equilíbrio dos orçamentos familiares. É por isso que Macron precisa de uma forte maioria nas legislativas, porque o país está dividido, pode haver movimentos na rua, há reformas que têm de ser feitas. É preciso que a Assembleia o faça.

OS EXTREMOS [COMO MÉLENCHON E LE PEN] ALIMENTAM-SE DA RAIVA, DO MEDO DO FUTURO

Porque saiu do Partido Socialista?
Deixei-o há cinco anos, após primárias, porque, em 2017, o Partido optou por abandonar a cultura de Governo. Escolheu criticar. Não é que tudo tenha sido bem feito, mas colocou-se na oposição ao que havíamos feito durante cinco anos com François Hollande [Presidente de 2012 a 2017]. Rompeu com a social-democracia. Qual é a diferença entre [Olaf] Scholz, [António] Costa ou [Pedro] Sánchez e os socialistas franceses? É que uns querem governar e governam. Os socialistas franceses desistiram de governar, e eu previ-o. Agora não só renunciaram a governar, como renunciaram a ser o que eram, desde que aceitaram pela primeira vez submeter-se a um acordo eleitoral onde são marginalizados e, sobretudo, a uma submissão ideológica de projeto. Estão sujeitos não ao Partido Comunista, mas a Mélenchon e à sua visão populista, violenta, com um projeto que representa uma tripla rutura: com a União Europeia (UE) e a NATO, com os valores da República — têm uma visão muito comunitária, buscaram essencialmente o voto muçulmano — e com a seriedade económica. Fiz bem há cinco anos, infelizmente. A percentagem de votos do PS quando saí era de 6,5%, já não era muito. Hoje é de 1,5%. Acabou.

AO CONTRÁRIO DE SCHOLZ, COSTA OU SÁNCHEZ, O PS FRANCÊS DESISTIU DE GOVERNAR

Era primeiro-ministro em 2014, ano em que a Rússia anexou a Crimeia. A invasão da Ucrânia surpreendeu-o?
Há que ser honesto, a maioria dos especialistas ficou surpreendida com os objetivos de Vladimir Putin. Não tanto pela vontade de conquistar o Donbas ou fechar o Mar Negro ou o Mar de Azov. O que surpreendeu foram os objetivos iniciais, ou seja, a destruição da Ucrânia e do poder democrático em torno do Presidente Zelensky. Num artigo muito importante de cunho histórico, em julho de 2021, Putin escreveu que a Ucrânia não existe. Há que ler o que o ditador escreveu. E por isso há que ter muito cuidado. Felizmente, a Ucrânia resistiu. Houve uma reação da UE e da NATO que impediram consequências históricas maiores. O pedido de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia é uma mudança muito importante. Mas atenção, Putin foi impedido, mas ocupa a Crimeia e outras regiões que vai querer integrar na Federação Russa. E, um dia, vai querer unir os territórios russos, pelo que Odessa, a Transnístria, os territórios próximos da Roménia podem ser alvos. Por isso, a crise ucraniana, a tensão com a Rússia a nível diplomático, militar e económico vai durar.

Como avalia a resposta da União Europeia?
Foi forte. Caminhamos sobre arame, porque trata-se de ajudar a Ucrânia em termos financeiros e no plano militar, fornecer armas, com os norte-americanos, claro. Há sanções contra a Rússia, os efeitos nesta fase são limitados. Ao mesmo tempo, não estamos em guerra com a Rússia. Às vezes é difícil entender. Mas há que ser prudente, pois estão em causa potências nucleares — Rússia, Estados Unidos, França. O mais importante, como na crise pandémica, é que a Europa está consciente de que deve ser soberana e autónoma em muitos domínios, em particular no que diz respeito ao gás, o que abriu um grande debate na Alemanha. Outra estratégia energética para todo o continente diz respeito à Península Ibérica: a questão do gás argelino, a energia fotovoltaica, as energias solares renováveis. Portugal e Espanha podem estar na dianteira. Temos necessidade de outra estratégia energética, de outra estratégia militar, nos próximos meses e anos, o que é uma mudança considerável. Recordemo-nos que há dois ou três anos, dizia-se que a Europa estava acabada. A Europa está aí, é um mercado, uma democracia, uma moeda, pode ter uma defesa. Há muitas coisas a fazer para integrar ainda mais esta Europa.

A TENSÃO COM A RÚSSIA, A NÍVEL DIPLOMÁTICO, ECONÓMICO, MILITAR, VAI DURAR

É favorável à adesão da Ucrânia à UE a curto prazo?
Temos de enviar uma mensagem muito clara. Se a Ucrânia não entrar na Aliança Atlântica, o que basicamente é um pretexto por parte de Putin, já que não estava na agenda, por outro lado a entrada na família da União Europeia é inquestionável. Sabemos que por razões económicas e orçamentais, mas também devido ao funcionamento do Estado ucraniano, o país não está pronto. É provável que leve muitos anos. Há países como a Sérvia e a Albânia, sobretudo, que não são membros da UE e estão à espera. Isso significa que temos de encontrar uma Europa em várias velocidades, um velho debate, ou então o que Macron propõe, uma “comunidade política europeia”. De qualquer forma, deve haver muito rapidamente um gesto que mostre que a Ucrânia está a entrar num processo e que está protegida pela Europa. Há que encontrar a fórmula certa. Sou favorável a que se ajude este grande país de 40 milhões de habitantes, metade de cuja riqueza acaba de ser destruída. Sabemos que não faz muito sentido entrar na União Europeia, no mercado único ou na zona euro, mas há que criar uma amarra forte. O país merece. O seu povo merece a nossa união, ao abrigo de formas que devem ser inventadas muito em breve.

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui. A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui