Entrevista a Manuel Valls: “No período que vivemos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador”

Ausente do primeiro plano da política francesa há mais de cinco anos, o ex-primeiro-ministro Manuel Valls vai a votos nas eleições legislativas de 12 e 19 de junho. Disputa um lugar de deputado, em representação dos franceses residentes em Espanha, Portugal, Andorra e Mónaco. A candidatura trouxe-o a Portugal, para desenvolver contactos e participar em ações de campanha em Lisboa, Cascais, Porto, Braga, Tavira, Portimão e Setúbal

O ex-primeiro-ministro Manuel Valls disputa um lugar no Parlamento francês, onde já serviu durante 16 anos, entre 2002 e 2018 RUI OLIVEIRA

A menos de três meses de completar 60 anos de vida, o ex-primeiro-ministro francês Manuel Valls tem a atitude de um jovem apaixonado pelo mundo da política. Após 16 anos como deputado na Assembleia Nacional (2002-2018), dois anos como ministro do Interior (2012-2014) e outros dois como chefe do Governo (2014-2016), volta a candidatar-se a um assento no Parlamento de França.

Se for eleito, cumpre o mandato de deputado? Ou será opção para o próximo Governo, como ministro ou mesmo primeiro-ministro?
 Não. Já fui ministro e primeiro-ministro e o compromisso que assumi é o de estar na Assembleia Nacional para ajudar a maioria e o Presidente, alem de estar presente com os franceses em Espanha e Portugal e nos principados de Andorra e do Mónaco. Tenho [quase] 60 anos e cinco pela frente para fazer bem este trabalho. É fascinante, através deste círculo também tocamos em questões económicas, do Mediterrâneo, da relação com a América Latina, que conheço bem, e de África, através do papel de Espanha e Portugal. Há muito que fazer.

Que motivação tem agora para se candidatar a deputado, depois de ter sido primeiro-ministro?
 No período que vivemos em França e na Europa, com desafios consideráveis ligados à guerra na Ucrânia, com consequências económicas, as alterações climáticas, a transformação ecológica, os riscos terroristas, a crise da democracia representativa, a necessidade de reconciliar os franceses consigo mesmos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador ou comentador. Tenho energia e vontade, caso contrário ficaria tranquilamente na minha ilha de Menorca. Mas quero agir. Concordei com o Presidente da República que poderia voltar a ser útil à maioria presidencial. Para mim, a ação deve ter a legitimidade do voto. Como vivo entre Espanha e França, não ia regressar ao círculo eleitoral onde fui eleito 16 anos [Essonne], a sul de Paris. O círculo dos franceses que vivem no Mónaco, Andorra, Espanha e Portugal, foi natural para mim, porque tenho dupla cultura e as nacionalidades espanhola e francesa. Nasci em Barcelona, falo catalão e espanhol. Havia uma lógica, uma consistência.

Filho de pai espanhol e mãe italo-suíça, Manuel Valls nasceu na Catalunha e cresceu em França RUI OLIVEIRA

Que tipo de relação espera desenvolver com Portugal e com a comunidade francesa que aqui vive, se for eleito deputado?
 Devemos estar atentos às expectativas dos franceses que vivem aqui, no que diz respeito ao acesso aos documentos administrativos, passaportes, bilhetes de identidade, carta de condução, certificados de residência… Depois há as questões de acesso às escolas, o custo da matrícula nos liceus [franceses] do Porto e Lisboa. Há todas as questões relacionadas com pensões, os problemas fiscais dos franceses mais velhos que escolheram Portugal para terem uma vida doce.

E depois, há todo o tecido económico, sobretudo em Lisboa e Porto. Um antigo primeiro-ministro pode ser útil às empresas francesas e portuguesas. Já existem muitas câmaras de comércio, a Alliance Française, clubes de empresários, empresas francesas muito grandes em Portugal e muitos franceses que abriram pequenos comércios, mercearias, padarias, talhos, restaurantes, outros que trabalham na publicidade. É uma força incrível.

Há dois milhões de portugueses ou de origem portuguesa em França, há 40 a 50 mil franceses em Portugal, há descendentes de portugueses que começam a tentar ganhar a vida em Portugal… tudo isso cria uma rede, uma cooperação que deve ser estimulada enquanto elemento importante de uma relação muito bonita, muito apoiada na cultura, entre a França e Portugal, mas que precisa de encontrar mais força no plano económico. Estamos no ano da Temporada Cruzada Portugal-França e Emmanuel Macron virá este ano a Portugal, logo há muitas coisas para acompanhar.

Disse que tem dupla cultura. E já exerceu cargos políticos em França e em Espanha. Que ligação tem com estes dois países a nível sentimental? Sente-se mais francês ou espanhol?
 Sou profundamente francês na minha maneira de pensar e de ser. E sinto-me francês. Escrevi um livro cujo título é uma citação de um intelectual francês, um grande lutador da resistência, um amigo do general de Gaulle que se chamava Romain Gary: “Não tenho uma gota de sangue francês”. Usei-a para título [“Pas une goutte de sang français, mais la France coule dans mes veines” (Não tenho uma gota de sangue francês, mas a França corre-me nas veias), editora Grasset, 2021].

O meu pai é espanhol e a minha mãe é italo-suíça, mas a França corre nas minhas veias e na minha mente. O facto de ter dupla cultura, de falar catalão com a minha mãe, a minha irmã e a minha esposa [a empresária catalã Susana Gallardo], de falar castelhano e catalão na rua, de sonhar em ambas as línguas dá-me grande abertura, que vou pôr ao serviço dos franceses que vivem em Espanha e em Portugal, mas não só. Também na relação entre Espanha e Portugal, por um lado, e a França, por outro.

Estou muito feliz por estar em Portugal estes dias. Voltarei regularmente se for eleito, e se não for deputado também. Mas claro que espero voltar como deputado, porque há uma ligação, antes de tudo, a nível da língua e da cultura. França deve recuperar mais influência a nível cultural, especialmente agora que há muitos franceses a viver cá.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui. Na segunda parte da entrevista, publicada na edição impressa, nas bancas esta sexta-feira, Manuel Valls identifica os principais problemas de França, justifica o seu divórcio do Partido Socialista e comenta a guerra na Ucrânia

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *