Manuel Valls ao Expresso. “A prioridade de França é reconciliar os franceses”

O antigo primeiro-ministro francês passou por Portugal em campanha eleitoral. Candidato pelo círculo da emigração nas legislativas deste mês, em representação dos franceses que vivem nomeadamente em Portugal, concedeu uma entrevista ao Expresso onde identificou os principais problemas de França, comentou a guerra na Ucrânia e explicou por que razão abandonou o Partido Socialista

Manuel Valls foi primeiro-ministro de França entre 2014 e 2016, durante o mandato presidencial de François Hollande. Então militante do Partido Socialista, o francês nascido na Catalunha abandonou essa histórica força política após ter perdido as primárias para as presidenciais de 2017 para Benoît Hamon, da ala esquerda. Agora que o PS aderiu à frente chefiada por Jean-Luc Mélenchon, Valls decreta a sua morte. Ele, que sempre foi centrista, aproveitou a dupla nacionalidade para ser candidato à Câmara Municipal de Barcelona em 2019, pelo partido centrista liberal Cidadãos. Não ganhou, mas foi vereador. Agora regressa à arena política francesa ao lado do Presidente, Emmanuel Macron, candidatando-se às legislativas de 12 e 19 de junho pela frente centrista e liberal do chefe de Estado, rebatizada de Renascimento. Aos 59 anos, concorre à Assembleia Nacional pelo círculo eleitoral que representa os franceses emigrados em Portugal, Espanha, Andorra e Mónaco. Esteve em Portugal no final de maio, em ações de campanha que o levaram de Braga ao Algarve.

ACREDITO QUE HOJE O PRINCIPAL PROBLEMA DE FRANÇA É A SUA DIVISÃO

Quais são hoje os principais problemas de França?
 A sua divisão. São as fraturas sociais, geracionais e geográficas demonstradas na primeira volta das presidenciais, com três grandes blocos: Macron, Le Pen, Mélenchon. Todas as sociedades democráticas vivem essa polarização. Temos em Espanha o fenómeno Vox. Em Portugal, pela primeira vez, há uma lista à direita da direita. Há movimentos na rua, como os “coletes amarelos”. A democracia representativa está em crise. A abstenção é muito alta, a sociedade está tensa, enquanto no plano económico a situação é boa: teríamos perspetiva de pleno emprego se não fosse a crise ucraniana. França resistiu à crise sanitária com investimento na ajuda às empresas, negócios, cultura, pessoas e famílias. Não obstante, há desigualdades, precariedade no trabalho. Cuidado: a economia é uma coisa, depois existem as pessoas que ficam de lado. Basicamente, a principal prioridade de França é reconciliar os franceses consigo mesmos.

É candidato pela maioria presidencial, que perdeu votos relativamente a 2017. Como vê a evolução eleitoral de Marine Le Pen?
Na primeira volta das presidenciais, Macron ganhou votos em relação a 2017. A segunda volta foi diferente, mas é normal. Teve, ainda assim, mais do que as sondagens previam, 58%. O fenómeno novo é a tripartição Macron-Le Pen-Mélenchon, e haver um hipercentro em torno do Presidente, de centro-esquerda e centro-direita: os republicanos, a social-democracia, os ecologistas também estão com Macron. Temos a ascensão da extrema-direita e aquilo a que chamo mélenchonismo, a união da esquerda que é totalmente contrária à história do Partido Socialista. Os extremos alimentam-se da raiva, do medo do futuro, da precariedade social, de pessoas que não se sentem consideradas. Hoje há esse sentimento junto de pessoas que, mesmo que ganhem bem a vida, estão muito preocupadas porque o custo da gasolina ou do aquecimento impossibilita o equilíbrio dos orçamentos familiares. É por isso que Macron precisa de uma forte maioria nas legislativas, porque o país está dividido, pode haver movimentos na rua, há reformas que têm de ser feitas. É preciso que a Assembleia o faça.

OS EXTREMOS [COMO MÉLENCHON E LE PEN] ALIMENTAM-SE DA RAIVA, DO MEDO DO FUTURO

Porque saiu do Partido Socialista?
Deixei-o há cinco anos, após primárias, porque, em 2017, o Partido optou por abandonar a cultura de Governo. Escolheu criticar. Não é que tudo tenha sido bem feito, mas colocou-se na oposição ao que havíamos feito durante cinco anos com François Hollande [Presidente de 2012 a 2017]. Rompeu com a social-democracia. Qual é a diferença entre [Olaf] Scholz, [António] Costa ou [Pedro] Sánchez e os socialistas franceses? É que uns querem governar e governam. Os socialistas franceses desistiram de governar, e eu previ-o. Agora não só renunciaram a governar, como renunciaram a ser o que eram, desde que aceitaram pela primeira vez submeter-se a um acordo eleitoral onde são marginalizados e, sobretudo, a uma submissão ideológica de projeto. Estão sujeitos não ao Partido Comunista, mas a Mélenchon e à sua visão populista, violenta, com um projeto que representa uma tripla rutura: com a União Europeia (UE) e a NATO, com os valores da República — têm uma visão muito comunitária, buscaram essencialmente o voto muçulmano — e com a seriedade económica. Fiz bem há cinco anos, infelizmente. A percentagem de votos do PS quando saí era de 6,5%, já não era muito. Hoje é de 1,5%. Acabou.

AO CONTRÁRIO DE SCHOLZ, COSTA OU SÁNCHEZ, O PS FRANCÊS DESISTIU DE GOVERNAR

Era primeiro-ministro em 2014, ano em que a Rússia anexou a Crimeia. A invasão da Ucrânia surpreendeu-o?
Há que ser honesto, a maioria dos especialistas ficou surpreendida com os objetivos de Vladimir Putin. Não tanto pela vontade de conquistar o Donbas ou fechar o Mar Negro ou o Mar de Azov. O que surpreendeu foram os objetivos iniciais, ou seja, a destruição da Ucrânia e do poder democrático em torno do Presidente Zelensky. Num artigo muito importante de cunho histórico, em julho de 2021, Putin escreveu que a Ucrânia não existe. Há que ler o que o ditador escreveu. E por isso há que ter muito cuidado. Felizmente, a Ucrânia resistiu. Houve uma reação da UE e da NATO que impediram consequências históricas maiores. O pedido de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia é uma mudança muito importante. Mas atenção, Putin foi impedido, mas ocupa a Crimeia e outras regiões que vai querer integrar na Federação Russa. E, um dia, vai querer unir os territórios russos, pelo que Odessa, a Transnístria, os territórios próximos da Roménia podem ser alvos. Por isso, a crise ucraniana, a tensão com a Rússia a nível diplomático, militar e económico vai durar.

Como avalia a resposta da União Europeia?
Foi forte. Caminhamos sobre arame, porque trata-se de ajudar a Ucrânia em termos financeiros e no plano militar, fornecer armas, com os norte-americanos, claro. Há sanções contra a Rússia, os efeitos nesta fase são limitados. Ao mesmo tempo, não estamos em guerra com a Rússia. Às vezes é difícil entender. Mas há que ser prudente, pois estão em causa potências nucleares — Rússia, Estados Unidos, França. O mais importante, como na crise pandémica, é que a Europa está consciente de que deve ser soberana e autónoma em muitos domínios, em particular no que diz respeito ao gás, o que abriu um grande debate na Alemanha. Outra estratégia energética para todo o continente diz respeito à Península Ibérica: a questão do gás argelino, a energia fotovoltaica, as energias solares renováveis. Portugal e Espanha podem estar na dianteira. Temos necessidade de outra estratégia energética, de outra estratégia militar, nos próximos meses e anos, o que é uma mudança considerável. Recordemo-nos que há dois ou três anos, dizia-se que a Europa estava acabada. A Europa está aí, é um mercado, uma democracia, uma moeda, pode ter uma defesa. Há muitas coisas a fazer para integrar ainda mais esta Europa.

A TENSÃO COM A RÚSSIA, A NÍVEL DIPLOMÁTICO, ECONÓMICO, MILITAR, VAI DURAR

É favorável à adesão da Ucrânia à UE a curto prazo?
Temos de enviar uma mensagem muito clara. Se a Ucrânia não entrar na Aliança Atlântica, o que basicamente é um pretexto por parte de Putin, já que não estava na agenda, por outro lado a entrada na família da União Europeia é inquestionável. Sabemos que por razões económicas e orçamentais, mas também devido ao funcionamento do Estado ucraniano, o país não está pronto. É provável que leve muitos anos. Há países como a Sérvia e a Albânia, sobretudo, que não são membros da UE e estão à espera. Isso significa que temos de encontrar uma Europa em várias velocidades, um velho debate, ou então o que Macron propõe, uma “comunidade política europeia”. De qualquer forma, deve haver muito rapidamente um gesto que mostre que a Ucrânia está a entrar num processo e que está protegida pela Europa. Há que encontrar a fórmula certa. Sou favorável a que se ajude este grande país de 40 milhões de habitantes, metade de cuja riqueza acaba de ser destruída. Sabemos que não faz muito sentido entrar na União Europeia, no mercado único ou na zona euro, mas há que criar uma amarra forte. O país merece. O seu povo merece a nossa união, ao abrigo de formas que devem ser inventadas muito em breve.

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui. A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui

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