Joe Biden foi ao Médio Oriente: sobressaíram 10 momentos

A ano e meio de mandato, o 46.º Presidente dos Estados Unidos viajou até ao Médio Oriente para uma estadia de quatro dias que o levou a Israel, à Cisjordânia ocupada e à Arábia Saudita. Dois objetivos predominaram: a necessidade de conter o Irão e de integrar Israel na região

Meses após usar a palavra “pária” para se referir à Arábia Saudita, Joe Biden foi ao reino promover uma aliança regional MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES

1. O ELEFANTE NA SALA

OIrão e a sua ambição nuclear foram uma sombra que seguiu Joe Biden do primeiro ao último minuto da deslocação ao Médio Oriente este mês. Em Israel, que olha para a República Islâmica como uma ameaça existencial, o Presidente dos Estados Unidos não conseguiu disfarçar uma discordância em relação ao seu mais sólido aliado na região.

Numa entrevista pré-gravada ao Channel 12 de Israel, divulgada no dia em que chegou ao país, Biden defendeu a reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano (a que Telavive se opõe), aceitando manter a opção militar sobre a mesa, “como último recurso”, se Teerão estiver na iminência de obter uma ogiva nuclear.

A apologia das negociações colide de frente com a posição de Israel em relação ao gigante persa. “A única coisa que poderá conter o Irão é saber que, se continuar a desenvolver o seu programa nuclear, o mundo livre usará a força”, disse o primeiro-ministro israelita, Yair Lapid, na conferência de imprensa conjunta com Biden. “A única maneira de detê-los é colocar uma ameaça militar credível sobre a mesa.”

“Continuo a acreditar que a diplomacia é o melhor caminho”, contrapôs Biden. Não ter ouvido da boca do amigo americano palavras mais intransigentes para com Teerão terá sido grande frustração para as autoridades de Israel.

2. NETANYAHU ATIVO NOS BASTIDORES

Um dos israelitas mais vocais na defesa de uma solução militar para o problema iraniano foi o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que governou entre 1996 e 1999 e, depois, entre 2009 e 2021.

O atual líder da oposição assistiu na pista do aeroporto Ben Gurion à aterragem do Air Force One e, logo ali, não enjeitou em comentar o assunto com a imprensa. “Para travar regimes como o Irão, não bastam as sanções económicas e políticas”, disse. “Não há como parar o Irão sem uma opção militar, sem uma ameaça militar credível, na esperança de o deter. Mas se não impedir, não há outra escolha a não ser ativá-la.”

Netanyahu teve direito a um encontro com Joe Biden — “caloroso e excelente”, como qualificou —, onde insistiu na abordagem bélica ao Irão. “Somos amigos há 40 anos, mas, para assegurarmos os próximos 40, temos de lidar com a ameaça iraniana”, afirmou, defendendo que não bastam sanções nem uma aliança defensiva entre Israel e países árabes amigos. “Tem de haver uma opção militar ofensiva credível.” Como “falcão” da política, prometeu: “É o que farei se ou quando regressar ao gabinete de primeiro-ministro.”

Netanyahu, que é o israelita que mais tempo foi primeiro-ministro, aposta todas as fichas nas eleições legislativas de 1 de novembro próximo para regressar à cadeira do poder. As sondagens dizem que é o político mais popular do país.

3. A PRESSÃO DAS ELEIÇÕES

O encontro entre Biden e o primeiro-ministro Lapid, quinta-feira de manhã, no Hotel Waldorf Astoria, em Jerusalém, foi protagonizado por dois líderes pressionados pelo calendário eleitoral.

O Presidente dos Estados Unidos pode ver esfumar-se a curta maioria democrata de que dispõe no Congresso, nas eleições agendadas para 8 de novembro. Já o primeiro-ministro israelita, líder do partido centrista Yesh Atid, tem na mira as legislativas de 1 de outubro, que serão as quintas no país em menos de quatro anos. Lapid está no cargo há menos de um mês, na sequência da mais recente crise na política israelita.

4. O SIONISTA QUE QUER UMA PALESTINA INDEPENDENTE

À chegada a Israel, naquela que foi a sua primeira visita enquanto 46.º Presidente dos Estados Unidos, Biden recordou a primeira visita ao país, em 1973, era ele senador pelo Delaware.

Desde então, Biden já foi oficialmente a Israel dez vezes, o que lhe possibilitou o “privilégio” de conhecer pessoalmente todos os primeiros-ministros desde Golda Meir (1969-1974). “Repito-o: não é preciso ser-se judeu para se ser sionista”, disse agora.

A confissão agradou aos israelitas e lançou desconfiança entre os palestinianos, expectantes em relação ao que ia dizer-lhes. “Israel deve permanecer um Estado judeu, democrático e independente. A melhor forma de o conseguir continua a ser uma solução de dois Estados para dois povos, ambos com raízes profundas e antigas nesta terra.”

Muitos israelitas não terão apreciado que um sionista de coração fizesse a apologia da solução de dois Estados. “Continua a ser, na minha opinião, a melhor maneira de garantir o futuro de igual liberdade, prosperidade e democracia para israelitas e palestinianos”, disse Biden, “ainda que não seja [viável] no curto prazo.”

O roteiro de Joe Biden contemplou umas horas na cidade palestiniana de Belém, na Cisjordânia ocupada. Visitou a Igreja da Natividade, que abriga o local onde nasceu Jesus Cristo — Biden é cristão e católico — e reuniu-se com o Presidente da Autoridade Palestiniana, mas não se comprometeu com um calendário para a retoma das negociações de paz.

Biden e Mahmud Abbas tentaram, em vão, que o encontro fosse selado com uma declaração conjunta, inviabilizada pela complexidade semântica do problema. Os norte-americanos queriam que constasse que o futuro Estado palestiniano teria a sua capital “em” Jerusalém Oriental, enquanto os palestinianos exigiam escrever que “a” capital fosse Jerusalém Oriental.

5. UMA VISITA QUE IRRITOU OS ISRAELITAS

Sexta-feira de manhã, antes de seguir para a Cisjordânia, Biden fez uma visita a Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade santa, ocupada por Israel e que os palestinianos querem para sua capital) que muito indispôs as autoridades israelitas.

O Presidente dos Estados Unidos visitou o Hospital Augusta Victoria, no Monte das Oliveiras (fora da Cidade Velha), recusando a presença de qualquer representante oficial israelita na sua comitiva.

“Estou muito feliz por Biden visitar tanto o ocidente como o oriente da cidade. Tem todo o direito de realizar uma visita privada, mas tenho de dizer que gostava de o acompanhar”, lamentou o autarca de Jerusalém, Moshe Lion.

A iniciativa de Biden é difícil de “encaixar” por parte de alguns sectores israelitas, já que, em 2017, Donald Trump reconheceu formalmente Jerusalém “a capital de Israel” e ordenou a transferência da embaixada dos Estados Unidos para a cidade santa.

Outra circunstância contribuiu para afastar israelitas desta visita. O Hospital Augusta Victoria foi cofundado a seguir à primeira guerra israelo-árabe (1948) por luteranos alemães e pela agência da ONU que ainda hoje assiste os refugiados palestinianos (UNRWA), precisamente para acudir aos palestinianos expulsos de Israel após a criação do Estado.

Desde então, vigora neste hospital uma política de independência que lhe garante boa cooperação com israelitas e palestinianos, mas que, na prática, lhe permite barrar a entrada a representantes israelitas que ali vão em missão de acompanhamento de convidados.

6. ARMAMENTO DE HOJE E DE AMANHÃ

Acabado de chegar a Israel, quarta-feira, foi no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, que Biden cumpriu o primeiro ponto do seu programa de visita. Na pista, uma exposição de equipamento bélico de última geração funcionava como prova da aplicação dos milhões desembolsados por Washington para financiar a indústria israelita de armamento. São exemplos o sistema de defesa antiaéreo Iron Dome (Cúpula de Ferro) e o novo sistema de interceção a laser Iron Beam (Viga de Ferro), em desenvolvimento, com a chancela da empresa israelita Rafael Advanced Defense Systems.

7. UM VOO PARA A HISTÓRIA

De Israel, Biden viajou diretamente para a Arábia Saudita. O voo entre Telavive, na costa do Mar Mediterrâneo, e Jeddah, na costa do Mar Vermelho, fez história, já que os dois países não têm relações diplomáticas. Só muito recentemente, após a normalização das relações diplomáticas entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, em 2020, é que Riade passou a autorizar que aviões israelitas atravessassem o seu espaço aéreo.

Biden descreveu o voo como “um pequeno símbolo das relações emergentes e dos passos na direção da normalização [diplomática] entre Israel e o mundo árabe, em que o meu Governo trabalha para aprofundar e expandir”. O voo foi bom prenúncio já que, no mesmo dia, Riade anunciou a abertura dos céus nacionais aos aviões civis israelitas. Companhias aéreas como a El Al vão passar a encurtar horas nos seus voos para oriente e a equacionar abrir novas rotas.

Nos últimos dois anos, através dos Acordos de Abraão, os Estados Unidos têm pressionado no sentido da integração de Israel na região do Golfo Pérsico. Se foi a Administração Trump que apadrinhou os primeiros Acordos, Biden não os enjeita e colocou-os no capítulo prioritário da sua agenda externa, com o ambicioso objetivo de envolver a Arábia Saudita, o gigante árabe do Médio Oriente.

A deslocação de Biden à Arábia Saudita teve também essa componente, ainda que o próprio tenha admitido, em entrevista à televisão israelita, que a normalização total entre Telavive e Riade vai “demorar muito tempo”.

“Precisamos de ter um processo, e esse processo precisa de incluir a aplicação da Iniciativa de Paz Árabe [de 2002, também conhecida como Iniciativa Saudita]”, explicou o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Adel al-Jubeir. “Uma vez que nos comprometemos com um acordo de dois Estados com um Estado palestiniano nos territórios ocupados, com Jerusalém Oriental como capital, esses são os nossos requisitos para a paz.”

8. A NOVA ARQUITETURA DO MÉDIO ORIENTE

Joe Biden chegou ao Médio Oriente numa altura em que o mundo se debate com altos preços da energia e grave insegurança alimentar, decorrentes da invasão russa da Ucrânia.

Restaurar a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita — deteriorada pelo assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em 2018 — tem, por isso, tripla importância: minimizar a crise económica levando o gigante saudita a abrir as torneiras do petróleo, promover a segurança pugnando pela integração regional de Israel e criar uma frente de defesa regional de contenção do Irão e dos seus próximos.

No mesmo dia em que Biden chegou à Arábia Saudita, o Irão mostrou as garras e apresentou a sua primeira divisão de drones, estacionada no Oceano Índico. Também a Rússia aproveitou a presença de Biden na região para responder às movimentações de Washington e anunciou a realização de uma cimeira entre o Presidente Vladimir Putin e os homólogos iraniano e turco, Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan. O encontro acontecerá esta terça-feira, em Teerão.

A etapa saudita do périplo valeu duras críticas a Biden. A seguir ao assassínio de Khashoggi, em 2018, não hesitara em rotular o reino de “pária”, nem de referir-se com desprezo ao todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS). Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos. Sexta-feira, foi MbS quem o recebeu à entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah.

9. I2U2, UMA NOVA FÓRMULA DE INTEGRAÇÃO

Além dos Acordos de Abraão, que constituem uma autoestrada entre Israel e o mundo árabe, esta viagem de Biden inaugurou os trabalhos de um novo fórum de integração regional. A partir de Jerusalém, Biden e o primeiro-ministro Lapid participaram numa cimeira por videoconferência com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o Presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohamed bin Zayed (MbZ).

Estados Unidos, Israel, Índia e Emirados batizaram o quarteto socorrendo-se da primeira letra dos seus nomes em inglês, o que resultou num impronunciável “I2U2” (ai-tu-iú-tu). A parceria visa aprofundar a cooperação económica entre as regiões do Médio Oriente e do Indo-Pacífico, à semelhança do que acontece, no Pacífico, com o Quad, que junta Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos e procura funcionar como contrapeso à influência da China na região.

Um dos projetos anunciados pelo I2U2 passa pela construção de parques agrícolas na Índia, no valor de 2000 milhões de dólares, que usarão tecnologia israelita e que Abu Dabi (um dos sete Emirados) ajudará a financiar.

10. JOGOS SÓ PARA JUDEUS

Num momento mais descontraído, mas pleno de significado político, Biden marcou presença na cerimónia de abertura dos 21.º Jogos da Macabíada, no Estádio Teddy, em Jerusalém.

Também chamados “Jogos Olímpicos Judeus”, contam com a participação de milhares de atletas judeus oriundos de cerca de 60 países e também israelitas não-judeus (20% da população de Israel é árabe). A competição é sancionada pelo Comité Olímpico Internacional e realiza-se de quatro em quatro anos, no ano seguinte aos Jogos Olímpicos de Verão.

No discurso inaugural, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realçou um “dia de festa para o Estado de Israel e para todo o povo judeu, um momento especial de união. Um momento que incorpora os valores compartilhados nos quais acreditamos: sionismo e excelência, fé e esperança, solidariedade e aproximação”. Com Biden a seu lado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

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