Os líderes da Sérvia e do Kosovo reúnem-se, esta quinta-feira, em Bruxelas. O encontro acontece três semanas após medidas decretadas pelo Governo de Pristina terem sido mal recebidas pela minoria sérvia do território, levando-a a bloquear estradas e colocando a missão da NATO em alerta. A tensão pode repetir-se no final do mês, se a conversa entre Aleksandar Vucic e Albin Kurti se transformar num diálogo de surdos
O Kosovo é uma ferida aberta na Europa que ameaça não cicatrizar. Esta quinta-feira, as principais partes em contenda terão uma nova oportunidade para suturar alguns golpes recentes, num encontro ao mais alto nível, entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, que decorrerá em Bruxelas.
Este diálogo segue-se a uma recente escalada da tensão entre Belgrado e Pristina que levou a minoria sérvia do Kosovo — um território de maioria albanesa — a atravessar camiões nas ruas e a bloquear pontos de passagem na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas barricadas ergueram-se em protesto contra duas medidas que o Governo de Pristina queria aplicar à minoria sérvia.
A tensão esfumou-se momentaneamente, após as autoridades kosovares aceitarem adiar um mês a entrada em vigor das novas regras, reagendada para 1 de setembro. A cedência foi tornada pública após interferência de Jeffrey Hovenier, o embaixador norte-americano no país.
Os Estados Unidos, que têm sido um parceiro do Kosovo desde a primeira hora, foram dos primeiros países a reconhecer a independência do território — até então uma província da Sérvia de maioria albanesa —, declarada de forma unilateral a 17 de fevereiro de 2008.
Se as autoridades do Kosovo insistirem na aplicação das medidas, “provavelmente, volta a acontecer o mesmo. Esta tensão é recorrente, não foi a primeira vez que aconteceu”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que esteve em missão no Kosovo por duas vezes (em 2000 com a NATO e de 2005 a 2009, com a ONU). “Quando as Nações Unidas foram para o Kosovo, tiveram de substituir as placas de matrícula das suas viaturas. Mas os sérvios, sobretudo da região norte, recusaram sempre fazê-lo.”
Os resistentes do norte
No centro da mais recente revolta dos sérvios kosovares — que se estima correspondam a 5% da população total de 1,8 milhões —, estão dois novos regulamentos. Um deles obrigava os cidadãos sérvios que entrassem no Kosovo, por via terrestre ou aérea, a terem de andar com um documento de identificação emitido pelas autoridades de Pristina, em substituição do comprovativo passado por Belgrado. Esta seria uma medida de reciprocidade já que é o que acontece com os kosovares que visitam a Sérvia.
A outra nova lei decretava a obrigatoriedade dos carros dos sérvios kosovares passarem a ter matrículas com as letras RKS. Desde 1999 que as viaturas desta minoria circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina. Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado nos quatro municípios do norte onde vive parte importante da minoria sérvia.
“As autoridades do Kosovo têm soberania nominal sobre a totalidade do território, no que são militarmente apoiadas pelas forças da KFOR/NATO”, explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense. “Contudo, existe uma minoria sérvia, especialmente concentrada nas zonas à volta de Mitrovica (norte), que resiste em reconhecer as autoridades de Pristina e que é informalmente apoiada por Belgrado.”
Não foi a primeira vez que os sérvios kosovares bateram o pé nas ruas a novas propostas legislativas. “Tivemos uma situação semelhante em setembro de 2021. As barricadas duraram quase duas semanas. Seguiu-se um acordo de desescalada que falhou”, recorda ao Expresso Milica Andrić-Rakić, analista na ONG New Social Initiative, com sede em Mitrovica. “Um destes regulamentos foi aplicado duas vezes no passado sem quaisquer tensões. Uma terceira tentativa de aplicar a mesma coisa sem um acordo resultará no mesmo cenário. Mas sinto que a pressão da comunidade internacional para que ambos os lados negoceiem é agora maior.”
As medidas da polémica têm caráter burocrático, mas mexem com o nacionalismo das comunidades a que se destinam. Catorze anos após a separação do Kosovo em relação à Sérvia, está amplamente demonstrado que o sentimento de pertença não se impõe por decreto.
Milica Andrić-Rakić é sérvia kosovar e não hesita quando o Expresso lhe pergunta se se sente mais sérvia ou kosovar. “Eu não desenvolvi uma identidade cívica kosovar. Isso é algo bastante difícil para mim porque a minha comunidade tem tido graves problemas com diferentes Governos do Kosovo”, admite.
“Este tipo de tensões são comuns. Já aconteceram com governos anteriores e relativamente a diferentes questões. Mas tornaram-se mais frequentes com o [atual] Governo de Albin Kurti, que adotou uma abordagem mais rígida no que diz respeito àquilo que deseja negociar com a Sérvia.” Tido como um político da linha radical, Kurti foi em tempos designado de “Che Guevara do Kosovo”.
A falta de identificação da comunidade sérvia é apenas uma parte da complexidade desta questão. No livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita” (Edições Colibri, 2019), Raul Cunha vai às origens da relação umbilical entre o povo sérvio e o Kosovo: “O território do Kosovo foi o berço do Estado Medieval Sérvio. Esta região é considerada pelos sérvios como sendo a terra de origem da sua nacionalidade (o Kosovo e Metohija). (…) Na altura da formação do denominado Estado Medieval Sérvio, o território foi povoado na sua quase totalidade por uma população cristã ortodoxa. Torna-se natural assinalar o Kosovo como um território sérvio através da simples análise dos seus topónimos — todas as localidades têm nomes sérvios, inclusive a palavra Kosovo que provém da palavra sérvia kos, que significa melro ou pássaro negro”.
Ao Expresso, o militar destaca ainda a dimensão religiosa do problema, recordando que “a sede do patriarcado da igreja sérvia é em Peć, no Kosovo”, cuja população é esmagadoramente muçulmana. “Para mim, não faz sentido haver dois territórios com o mesmo povo, a mesma língua, mas que correspondem a países diferentes: o Kosovo e a Albânia. O Kosovo faz sentido como parte da Albânia”, diz Raul Cunha, admitindo a necessidade de haver uma divisão do território para contentar (e acalmar) as populações que não aceitem essa integração.
Um protetorado da ONU e da NATO
Hoje, o Kosovo goza de um estatuto invulgar face ao direito internacional. Dezenas de países reconhecem-no como um Estado soberano, mas dezenas de outros — com a Sérvia à cabeça — insistem que a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU ainda está em vigor e que é esse o quadro legal que vincula as partes. “Teoricamente, pelo direito internacional, o Kosovo ainda é um território sob administração das Nações Unidas”, explica Raul Cunha.
Aprovada em 1999, na sequência de 78 dias de bombardeamentos aéreos da NATO à Jugoslávia, em socorro da população albanesa do Kosovo reprimida pelo regime de Slobodan Milosevic — de que era porta-voz o atual Presidente sérvio, Aleksandar Vucic —, esta resolução estabeleceu as condições para que o Kosovo se tornasse de facto num protetorado da ONU. O território foi colocado sob administração da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK, ainda hoje em funções), com o objetivo de assegurar a administração civil. No terreno, era apoiada por uma missão da NATO (KFOR), que tinha a incumbência de garantir um ambiente seguro no território.
Esta solução seria transitória, até que as partes acordassem um estatuto final para o Kosovo, que ainda não aconteceu. Aos 14 anos de vida, a paz continua frágil e o país — reconhecido por Portugal — parece continuar necessitado dessas âncoras internacionais. Aquando da recente tensão, a KFOR — que tem atualmente 3770 tropas no terreno — emitiu um comunicado reconhecendo a gravidade da situação e afirmando-se preparada para intervir “se a estabilidade estiver comprometida”.
Uma questão coloca-se, pois, com legitimidade: estará a estabilidade do Kosovo refém da presença militar internacional? “Sim”, responde Raul Cunha. “A estabilidade do Kosovo depende sempre da decisão da NATO em continuar a defendê-lo. O Kosovo não teria qualquer hipótese contra as forças sérvias. Penso que a presença militar da NATO no território sentencia uma solução militar por parte da Sérvia. Seria um passeio para os sérvios.”
(IMAGEM Bandeiras da Sérvia e do Kosovo EURACTIV)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui