Mikhail Gorbachev: a vida em 16 imagens de uma das grandes personalidades do século XX

Numa altura em que Vladimir Putin se empenha, por todos os meios, em reconquistar a glória perdida da Rússia, o mundo vê desaparecer o homem que “enterrou” a União Soviética. Mikhail Gorbachev ganhou o Nobel da Paz “pelo papel de liderança que desempenhou nas mudanças radicais nas relações Leste-Oeste”, ainda que entre os conterrâneos esse legado não seja motivo de elogio

MARCA. Gorbachev tinha, na cabeça, uma marca de nascença que se tornou um ícone e que muitos diziam reproduzir um arquipélago ao largo da Sibéria. Graças a isso, Durak Aprel ganhou interesse turístico BRYN COLTON / GETTY IMAGES
AMIZADE. Entre líderes socialistas, as relações de maior proximidade eram demonstradas com um beijo na boca. Aconteceu entre Gorbachev e Erich Honecker, o primeiro-ministro da Alemanha de Leste (RDA), em 1986 WIESELES / AFP / GETTY IMAGES
PARTIDO. Desfilando na Praça Vermelha, em 1985, atrás do caixão de Konstantin Chernenko, o secretário-geral do Partido Comunista da URSS, a quem Gorbachev sucederia ALAIN NOGUES / SYGMA / GETTY IMAGES
COMUNISMO. Em 1975, na cidade de Nuremberga, então Alemanha Ocidental (RFA), participando num evento do Partido Comunista da Alemanha (DKP) KLAUS ROSE / GETTY IMAGES
EDUCAÇÃO. Ao centro, na última fila desta foto dos anos 40, Mikhail Sergeevitch posa com uma turma predominantemente feminina, do ensino secundário LASKI DIFFUSION / GETTY IMAGES
INFÂNCIA. Em tenra idade, numa imagem que se pensa ser de 1937, tinha ele 6 anos, na companhia dos avós maternos, Panteley (à esq.) e Vasilisa Gopkaloe, nascidos em território ucraniano APIC / GETTY IMAGES
‘REALPOLITIK’. Um encontro improvável anos antes, com o Presidente dos EUA, Ronald Reagan, e George Bush, que lhe sucederia. Foi em 1988, em Nova Iorque, com o World Trade Center como cenário BETTMANN / GETTY IMAGES
DESARMAMENTO. Fazendo história, ao lado do homólogo norte-americano Ronald Reagan, ao assinar o Tratado INF, de desarmamento nuclear, a 8 de dezembro de 1987, na Casa Branca BETTMANN / GETTY IMAGES
BERLIM. Quando Gorbachev renunciou à presidência da URSS, a 25 de dezembro de 1991, já Angela Merkel era deputada no Bundestag. Esta foto regista um encontro entre ambos, em 2011, junto à Porta de Brandemburgo, na cidade onde caiu o Muro que tudo mudou TOBIAS SCHWARZ / AFP / GETTY IMAGES
LIDERANÇA. Vladimir Putin ascendeu à presidência da Rússia menos de dez anos após a demissão de Mikhail Gorbachev e do fim da União Soviética. A invasão da Ucrânia revela saudosismo, por parte de Putin, em relação a esse passado CARSTEN REHDER / GETTY IMAGES
FAMÍLIA. Mikhail tinha 24 anos quando casou-se com Raisa Titarenko, mais nova um ano. Esta história de amor, de que resultou uma filha, só terminou com a morte dela, em 1999. A viuvez trouxe ao político pensamentos suicidas MISHA JAPARIDZE / AFP / GETTY IMAGES
GOLPE. Em agosto de 1991, a meses da dissolução da URSS, uma rebelião da linha dura do Partido Comunista colocou os Gorbachev em prisão domiciliária, durante umas férias na sua ‘datcha’ na Crimeia. O ‘putsch’ fracassou e a família regressou a Moscovo GEORGES DEKEERLE / SYGMA / GETTY IMAGES
URSS. Gorbachev foi o último líder da União Soviética. Boris Ieltsin (no retrato da direita) foi o primeiro Presidente da Rússia. Entre os russos, o sentimento em relação a um e outro é contrastante SERGEI GUNEYEV / GETTY IMAGES
DESANUVIAMENTO. A visita de Estado de Gorbatchev à China, em 1989, e a cimeira com Deng Xiaoping formalizaram a normalização da relação entre os dois países comunistas, após anos de afastamento por divergências doutrinárias PETER TURNLEY / CORBIS / GETTY IMAGES
HISTÓRIA. Um dos momentos mais importantes da liderança de Gorbachev foi a sua deslocação ao Vaticano, em 1989, para um encontro com João Paulo II, o primeiro de um líder soviético com um chefe da igreja católica. Ao Papa polaco atribui-se importância na queda do comunismo na Europa de Leste DERRICK CEYRAC / AFP / GETTY IMAGES
PERSONALIDADES. No número 10 de Downing Street, em 1989, com a “dama de ferro”. Margaret Thatcher estava a pouco mais de um ano de deixar a chefia do Governo do Reino Unido GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Muqtada al-Sadr anunciou a sua retirada da política. Facto ou ficção?

Quase onze meses depois das legislativas, o Iraque continua sem Governo. Um dos principais protagonistas políticos defendia, até agora, a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições. Esta segunda-feira, anunciou que sai da política. Já há apoiantes revoltados e multiplicam-se receios do regresso aos dias da violência

Vencedor das últimas eleições legislativas no Iraque, mas sem apoios parlamentares suficientes para fazer passar a sua solução de Governo, o poderoso líder xiita Muqtada al-Sadr anunciou, esta segunda-feira, que vai abandonar a política.

“Decidi não me intrometer nos assuntos políticos. Portanto, anuncio agora a minha reforma definitiva”, escreveu, no Twitter, o clérigo que chefia uma poderosa fação xiita, a sensibilidade islâmica maioritária entre a população do Iraque.

De Bagdade, a agência Reuters escreveu que a decisão “provocou protestos dos seus seguidores”, muitos deles envolvidos, desde há semanas, num protesto permanente (sit-in) nos jardins do Parlamento, e que “levantou receios de mais instabilidade”.

Também presente na capital iraquiana, a cadeia televisiva Al-Jazeera testemunhou, esta segunda-feira, que “mais apoiantes de Al-Sadr juntaram-se aos que têm participado no sit-in junto ao Parlamento, originando receios de uma escalada que possa desestabilizar o país ainda mais”.

Um grupo de sadristas invadiu mesmo o Palácio Republicano e afirmou o seu poder lançando-se à piscina. À semelhança do Parlamento, este edifício cerimonial situa-se na chamada Zona Verde, a área com mais segurança de Bagdade.

Respondendo à agitação e aos alertas de violência iminente, o Exército iraquiano declarou um recolher obrigatório a partir das 15h30 desta segunda-feira.

A decisão de Muqtada al-Sadr tem como cenário uma grave crise política que tem paralisado o Iraque há quase um ano. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro de 2021. O Movimento Sadrista (de Muqtada) foi a formação mais votada, mas no Parlamento os diferentes partidos políticos não conseguiram acordar a formação de um novo Executivo.

Após ordenar aos seus deputados que se demitissem e incitar os seus seguidores a invadirem o Parlamento — a 30 de julho ocuparam-no e posteriormente montaram tendas nos jardins —, Al-Sadr apelou à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas.

Sábado passado, refez a estratégia. Defendeu que, para se resolver a crise, “mais importante” do que dissolver o Parlamento e ir de novo a votos é que “todos os partidos e personalidades que têm integrado o processo político” desde a invasão norte-americana do Iraque e a queda de Saddam Hussein, em 2003, “deixem de participar”. E esclareceu, para que não restassem dúvidas: “Isso inclui o Movimento Sadrista”.

Esta segunda-feira, paralelamente à sua retirada da política, o clérigo anunciou que “todas as instituições” ligadas ao Movimento Sadrista serão encerradas. Haverá uma exceção: o mausoléu do pai, o Grande Ayatollah Muhammad Sadiq al-Sadr, importante líder religioso xiita, assassinado a tiro em 1999, mandava ainda no país o sunita Saddam Hussein.

Muqtada al-Sadr integra uma linhagem política importante no Iraque. Aos 48 anos de vida, é já um líder experiente, com provas dadas à frente de uma milícia numerosa na luta contra as tropas dos Estados Unidos e as forças iraquianas que pactuaram com a ocupação estrangeira.

Nos corredores políticos, o clérigo é tido como figura camaleónica, que toma decisões e depois reverte-as. Os próximos dias permitirão perceber se o tweet de Al-Sadr é para valer ou se é uma forma de fazer pressão sobre as formações políticas rivais.

(FOTO Muqtada al-Sadr e o Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Vidas interrompidas por seis meses de guerra

A invasão russa da Ucrânia originou o maior êxodo humano na Europa desde a II Guerra Mundial. Para os ucranianos que ficaram no país, o quotidiano é de sobrevivência e resiliência

PRECES — Aos sons das sirenes, esta ucraniana de Kiev deposita em Deus a esperança do regresso à paz, num conflito que opõe irmãos da mesma fé DANIEL LEAL / AFP / GETTY IMAGES
ÊXODO — Mulheres e crianças, como estas já a salvo do outro lado da fronteira com a Eslováquia, receberam ordem para partir. Os homens ficaram, para defender o país PETER LAZAR / AFP / GETTY IMAGES
SOBREVIVÊNCIA — Um esforço para cumprir rituais quotidianos de sempre, por ruas ladeadas por edifícios esventrados e sem vida DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
ESPERA — Este ucraniano de Kharviv acredita que a sua cidade tem defesa possível, apesar de russófona e da proximidade ao território da Rússia SERGEY BOBOK / AFP / GETTY IMAGES
DOR — Os olhos desta mulher fecham-se intuitivamente, como que a negar toda a tragédia que se abateu sobre Irpin, acabada de ser bombardeada ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES
CAOS — Palco de um massacre de civis ucranianos, a cidade de Bucha tornou-se também um cemitério de equipamentos militares russos ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES
FUGA — Aproveitando uma trégua nos combates, habitantes de Irpin fogem através de uma ponte partida, levando pouco mais do que a roupa do corpo DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
DESPEDIDA — É um ‘até já’ incerto, na estação ferroviária de Odessa. A menina vai para porto seguro, o pai fica para ir à guerra BULENT KILIC / AFP / GETTY IMAGES
SOBERANIA — As cores da Ucrânia galgaram fronteiras e tornaram-se símbolo de resistência, em todo o mundo ALEXEY FURMAN / GETTY IMAGES
MORTE — Neste cemitério de Kharkiv, as bandeiras da Ucrânia identificam as sepulturas de militares, que deram a vida pelo país DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
DESORIENTAÇÃO — Uma mão amiga transmite segurança a uma idosa assustada, durante a evacuação de Irpin ANDRIY DUBCHAK / GETTY IMAGES
RESILIÊNCIA — É o que parece transmitir o ciclista ao atravessar uma rua de Bucha obstruída por destroços de veículos militares CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
FUTURO — O baloiço sobreviveu intacto à guerra, em Borodianka, permitindo que as crianças continuem a sorrir CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataque a Rushdie fere acordo com Irão?

O esfaqueamento do escritor, 33 anos após a fatwa do líder do Irão, coincidiu com o fim do diálogo sobre o programa nuclear. Teerão nega envolvimento no atentado


1. Porque foi atacado Salman Rushdie?

Aos investigadores do ataque ao escritor, num evento em Nova Iorque, a 12 de agosto, o agressor disse ter-lhe aversão por “atacar o Islão”. Foi identificado como sendo Hadi Matar, um norte-americano de 24 anos, que vivia com a mãe em Nova Jérsia. Filho de emigrantes oriundos de Yaroun, uma zona no Sul do Líbano com forte influência do Hezbollah, grupo xiita apoiado pelo Irão, negou qualquer contacto com o Irão.

Ao jornal inglês “Daily Mail” a mãe disse que o filho, muçulmano xiita, começara a revelar fanatismo religioso após passar um mês no Líbano, em 2018. Hadi admitiu ter lido “um par de páginas” de “Os Versículos Satânicos”, a obra de Rushdie que enfureceu milhões de muçulmanos e colocou a sua cabeça a prémio, após o fundador da República Islâmica do Irão (xiita), o ayatollah Ruhollah Khomeini, emitir uma fatwa (decreto), a 14 de fevereiro de 1989, apelando à sua morte.

Hadi não era ainda nascido. Nutriu-se de um ódio que o transcende e contribuiu para uma teoria da conspiração… “Não vou chorar por um escritor que jorra ódio e desprezo sem fim pelos muçulmanos e pelo Islão”, escreveu no Twitter Mohammad Marandi, conselheiro da delegação do Irão às negociações de Viena. “Mas não é estranho que, à medida que nos aproximamos de um possível acordo nuclear, os EUA façam alegações sobre um ataque a [John] Bolton e depois aconteça isto?” Dois dias antes do caso Rushdie um membro dos Guardas Revolucionários do Irão foi acusado pelo FBI de tentativa de assassínio do ex-conselheiro para a Segurança Nacional de Donald Trump.

2. O acordo nuclear está em risco?

Não há indícios de que possa acontecer. Três dias após o ataque ao escritor britânico e norte-americano, um responsável iraniano mostrava que Teerão continuava na ofensiva, à mesa das negociações. Nasser Kanaani, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, negou qualquer envolvimento do Irão no ataque a Rushdie e disse, numa conferência de imprensa, que as conversações de Viena estavam perto de um consenso, na condição de que as linhas vermelhas do Irão seriam respeitadas e os seus principais interesses atendidos. Após 16 meses de negociações, envolvendo sete países, a última ronda terminou a 8 de agosto. A União Europeia, que mediou o processo, fez circular um “texto final” e apelou às partes que tomem decisões. “Pela primeira vez em muitos meses, na terça-feira as autoridades europeias expressaram crescente otimismo de que um restabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015 possa ser celebrado entre Irão e Estados Unidos”, noticiou esta semana o “The New York Times”.

3. O regime de Teerão pode ser penalizado?

Não é provável, apesar do regozijo de sectores conservadores. “Satanás a caminho do inferno”, noticiou em manchete o jornal “Khorasan”. Já o “Kayhan” escreveu: “A mão do homem que rasgou o pescoço do inimigo de Deus deve ser beijada.” Por muito que se prove que foi a fatwa de Khomeini que “guiou” Hadi Matar até Rushdie, as questões relativas aos direitos humanos não levam a melhor sobre a realpolitik. Um exemplo fresco na memória é o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado do reino em Istambul (Turquia), em 2018. O crime implicou o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), no papel de mandante. Quando entrou na Casa Branca, Joe Biden esboçou vontade de ostracizar o reino, rotulando-o de “pária”, e revelou desprezo em relação a MbS, o líder de facto do país. Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos e, há um mês, deslocou-se à península. À entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah, foi recebido por MbS.

4. A fatwa de Khomeini continua em vigor?

Em setembro de 1998, quase 10 anos após a condenação à morte de Rushdie, o então Presidente iraniano, o reformista Mohammad Khatami, defendeu que o caso estava “completamente acabado”. Dias depois, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Kamal Kharrazi, acrescentou que o Governo de Teerão “dissocia-se” de qualquer recompensa oferecida pela morte do escritor. Ainda que em Teerão se tenham seguido presidências conservadoras, Rushdie desapareceu da narrativa político-religiosa iraniana e passou, ele próprio, a circular de forma mais relaxada.

5. Qual o estado de saúde do escritor?

Sir Ahmed Salman Rushdie sobreviveu e, segundo o seu agente, está “a caminho da recuperação”. Num e-mail enviado à agência Reuters, Andrew Wylie disse que o processo “será longo. Os ferimentos são graves, mas o seu estado evolui na direção certa”.

O escritor, de 75 anos, recebeu três facadas no pescoço, quatro no estômago, perfurações no olho direito e no peito e uma laceração na coxa direita. No hospital de Erie, na Pensilvânia, onde está internado, já teve uma conversa “articulada” com investigadores ao caso. Segundo o filho Zafar, “o seu habitual sentido de humor rebelde e desafiador permanece intacto”.

6. O que diz o livro polémico?

“Os Versículos Satânicos” romantiza a vida do profeta Maomé, uma blasfémia no Islão. Foi proibido em vários países, o tradutor japonês foi morto à facada e o italiano e o editor norueguês sobreviveram a atentados. O fantasma de um atentado ao virar da esquina perseguiu Rushdie mais de 30 anos, condenando-o a anos de clandestinidade, com segurança 24 horas e frequentes mudanças de casa. Tornou-se um símbolo da liberdade de expressão, mas também dos seus limites. John le Carré criticou-o: “A minha posição era de que não há lei na vida ou na natureza que diga que grandes religiões podem ser insultadas impunemente.” Durante 15 anos os dois insultaram-se em público, com Rushdie a chamar “burro pomposo” a Le Carré e este a acusá-lo de “autocanonização”. Em 2012 enterraram o machado de guerra: “Gostava que não o tivéssemos feito”, disse Rushdie. Le Carré correspondeu: “Também lamento a disputa.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Esta quinta-feira há reunião em Bruxelas, mas a tensão segue dentro de momentos

Os líderes da Sérvia e do Kosovo reúnem-se, esta quinta-feira, em Bruxelas. O encontro acontece três semanas após medidas decretadas pelo Governo de Pristina terem sido mal recebidas pela minoria sérvia do território, levando-a a bloquear estradas e colocando a missão da NATO em alerta. A tensão pode repetir-se no final do mês, se a conversa entre Aleksandar Vucic e Albin Kurti se transformar num diálogo de surdos

O Kosovo é uma ferida aberta na Europa que ameaça não cicatrizar. Esta quinta-feira, as principais partes em contenda terão uma nova oportunidade para suturar alguns golpes recentes, num encontro ao mais alto nível, entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, que decorrerá em Bruxelas.

Este diálogo segue-se a uma recente escalada da tensão entre Belgrado e Pristina que levou a minoria sérvia do Kosovo — um território de maioria albanesa — a atravessar camiões nas ruas e a bloquear pontos de passagem na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas barricadas ergueram-se em protesto contra duas medidas que o Governo de Pristina queria aplicar à minoria sérvia.

A tensão esfumou-se momentaneamente, após as autoridades kosovares aceitarem adiar um mês a entrada em vigor das novas regras, reagendada para 1 de setembro. A cedência foi tornada pública após interferência de Jeffrey Hovenier, o embaixador norte-americano no país.

Os Estados Unidos, que têm sido um parceiro do Kosovo desde a primeira hora, foram dos primeiros países a reconhecer a independência do território — até então uma província da Sérvia de maioria albanesa —, declarada de forma unilateral a 17 de fevereiro de 2008.

Se as autoridades do Kosovo insistirem na aplicação das medidas, “provavelmente, volta a acontecer o mesmo. Esta tensão é recorrente, não foi a primeira vez que aconteceu”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que esteve em missão no Kosovo por duas vezes (em 2000 com a NATO e de 2005 a 2009, com a ONU). “Quando as Nações Unidas foram para o Kosovo, tiveram de substituir as placas de matrícula das suas viaturas. Mas os sérvios, sobretudo da região norte, recusaram sempre fazê-lo.”

Os resistentes do norte

No centro da mais recente revolta dos sérvios kosovares — que se estima correspondam a 5% da população total de 1,8 milhões —, estão dois novos regulamentos. Um deles obrigava os cidadãos sérvios que entrassem no Kosovo, por via terrestre ou aérea, a terem de andar com um documento de identificação emitido pelas autoridades de Pristina, em substituição do comprovativo passado por Belgrado. Esta seria uma medida de reciprocidade já que é o que acontece com os kosovares que visitam a Sérvia.

A outra nova lei decretava a obrigatoriedade dos carros dos sérvios kosovares passarem a ter matrículas com as letras RKS. Desde 1999 que as viaturas desta minoria circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina. Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado nos quatro municípios do norte onde vive parte importante da minoria sérvia.

“As autoridades do Kosovo têm soberania nominal sobre a totalidade do território, no que são militarmente apoiadas pelas forças da KFOR/NATO”, explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense. “Contudo, existe uma minoria sérvia, especialmente concentrada nas zonas à volta de Mitrovica (norte), que resiste em reconhecer as autoridades de Pristina e que é informalmente apoiada por Belgrado.”

Não foi a primeira vez que os sérvios kosovares bateram o pé nas ruas a novas propostas legislativas. “Tivemos uma situação semelhante em setembro de 2021. As barricadas duraram quase duas semanas. Seguiu-se um acordo de desescalada que falhou”, recorda ao Expresso Milica Andrić-Rakić, analista na ONG New Social Initiative, com sede em Mitrovica. “Um destes regulamentos foi aplicado duas vezes no passado sem quaisquer tensões. Uma terceira tentativa de aplicar a mesma coisa sem um acordo resultará no mesmo cenário. Mas sinto que a pressão da comunidade internacional para que ambos os lados negoceiem é agora maior.”

As medidas da polémica têm caráter burocrático, mas mexem com o nacionalismo das comunidades a que se destinam. Catorze anos após a separação do Kosovo em relação à Sérvia, está amplamente demonstrado que o sentimento de pertença não se impõe por decreto.

Milica Andrić-Rakić é sérvia kosovar e não hesita quando o Expresso lhe pergunta se se sente mais sérvia ou kosovar. “Eu não desenvolvi uma identidade cívica kosovar. Isso é algo bastante difícil para mim porque a minha comunidade tem tido graves problemas com diferentes Governos do Kosovo”, admite.

“Este tipo de tensões são comuns. Já aconteceram com governos anteriores e relativamente a diferentes questões. Mas tornaram-se mais frequentes com o [atual] Governo de Albin Kurti, que adotou uma abordagem mais rígida no que diz respeito àquilo que deseja negociar com a Sérvia.” Tido como um político da linha radical, Kurti foi em tempos designado de “Che Guevara do Kosovo”.

A falta de identificação da comunidade sérvia é apenas uma parte da complexidade desta questão. No livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita” (Edições Colibri, 2019), Raul Cunha vai às origens da relação umbilical entre o povo sérvio e o Kosovo: “O território do Kosovo foi o berço do Estado Medieval Sérvio. Esta região é considerada pelos sérvios como sendo a terra de origem da sua nacionalidade (o Kosovo e Metohija). (…) Na altura da formação do denominado Estado Medieval Sérvio, o território foi povoado na sua quase totalidade por uma população cristã ortodoxa. Torna-se natural assinalar o Kosovo como um território sérvio através da simples análise dos seus topónimos — todas as localidades têm nomes sérvios, inclusive a palavra Kosovo que provém da palavra sérvia kos, que significa melro ou pássaro negro”.

Ao Expresso, o militar destaca ainda a dimensão religiosa do problema, recordando que “a sede do patriarcado da igreja sérvia é em Peć, no Kosovo”, cuja população é esmagadoramente muçulmana. “Para mim, não faz sentido haver dois territórios com o mesmo povo, a mesma língua, mas que correspondem a países diferentes: o Kosovo e a Albânia. O Kosovo faz sentido como parte da Albânia”, diz Raul Cunha, admitindo a necessidade de haver uma divisão do território para contentar (e acalmar) as populações que não aceitem essa integração.

Um protetorado da ONU e da NATO

Hoje, o Kosovo goza de um estatuto invulgar face ao direito internacional. Dezenas de países reconhecem-no como um Estado soberano, mas dezenas de outros — com a Sérvia à cabeça — insistem que a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU ainda está em vigor e que é esse o quadro legal que vincula as partes. “Teoricamente, pelo direito internacional, o Kosovo ainda é um território sob administração das Nações Unidas”, explica Raul Cunha.

Aprovada em 1999, na sequência de 78 dias de bombardeamentos aéreos da NATO à Jugoslávia, em socorro da população albanesa do Kosovo reprimida pelo regime de Slobodan Milosevic — de que era porta-voz o atual Presidente sérvio, Aleksandar Vucic —, esta resolução estabeleceu as condições para que o Kosovo se tornasse de facto num protetorado da ONU. O território foi colocado sob administração da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK, ainda hoje em funções), com o objetivo de assegurar a administração civil. No terreno, era apoiada por uma missão da NATO (KFOR), que tinha a incumbência de garantir um ambiente seguro no território.

Esta solução seria transitória, até que as partes acordassem um estatuto final para o Kosovo, que ainda não aconteceu. Aos 14 anos de vida, a paz continua frágil e o país — reconhecido por Portugal — parece continuar necessitado dessas âncoras internacionais. Aquando da recente tensão, a KFOR — que tem atualmente 3770 tropas no terreno — emitiu um comunicado reconhecendo a gravidade da situação e afirmando-se preparada para intervir “se a estabilidade estiver comprometida”.

Uma questão coloca-se, pois, com legitimidade: estará a estabilidade do Kosovo refém da presença militar internacional? “Sim”, responde Raul Cunha. “A estabilidade do Kosovo depende sempre da decisão da NATO em continuar a defendê-lo. O Kosovo não teria qualquer hipótese contra as forças sérvias. Penso que a presença militar da NATO no território sentencia uma solução militar por parte da Sérvia. Seria um passeio para os sérvios.”

(IMAGEM Bandeiras da Sérvia e do Kosovo EURACTIV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui