Ataques na Crimeia: Quem fez? O que podem significar?

Instalações militares russas têm sido alvo de “atos de sabotagem”, como os qualifica Moscovo. Kiev não confirmou nem negou a autoria dos ataques, mas é quem mais beneficia com eles

Apesar da guerra em curso em áreas consideráveis da Ucrânia, a Crimeia, nos últimos tempos, vinha conseguindo fazer jus à sua fama de “popular resort de verão” e ter pessoas na praia como se tempos normais vivessem. Esta terça-feira, porém, aquela península do sul da Ucrânia anexada pela Rússia em 2014 voltou ao epicentro do conflito, após ataques atribuídos às forças ucranianas encherem de fumo negro os céus de partes do território.

A Rússia reconheceu a ocorrência de grandes explosões numa infraestrutura militar — um depósito de munições —, numa base militar russa perto da cidade de Dzhankoi, no norte da Crimeia.

As explosões foram “provocadas por um incêndio que levou à detonação de munições”, escreve a publicação “The Moscow Times”. As autoridades russas qualificaram o ataque como “um ato de sabotagem”.

Citado pela BBC, Refat Chubarov, um líder tártaro da Crimeia, disse que as explosões foram um “golpe” que pôde ser ouvido “do outro lado da estepe”. Os seus efeitos levaram à interrupção da circulação numa linha ferroviária e obrigaram à transferência de cerca de 3000 pessoas de uma localidade.

Segundo a agência Reuters, que cita o diário russo “Kommersant”, um segundo ataque visou outra base militar russa, em Gvardeyskoye, no centro da Crimeia. Os dois ataques aconteceram uma semana após um outro com igual perfil ser registado numa zona ocidental da península.

A promessa de Zelensky

Esta sucessão de explosões numa parte da Ucrânia que não tem estado na linha da frente dos combates poderá indiciar uma nova dinâmica no conflito — prestes a cumprir meio ano — em antecipação ao inverno, época em que também as movimentações da guerra se ressentem das gélidas temperaturas.

Para a Rússia, a Crimeia alberga não só a sede da Frota do Mar Negro como também serve de armazém a muito equipamento militar destinado às tropas em combate. Para Kiev, atacar esse potencial é, pois, uma forma de atingir as manobras de guerra da Rússia nas suas várias frentes.

Por outro lado, a Crimeia — cuja conquista pelos russos, em 2014, pode ser considerado um primeiro capítulo desta guerra — permanece um objetivo militar dos ucranianos. Na semana passada, o Presidente ucraniano prometeu “libertar” a região dos russos. “Esta guerra russa contra a Ucrânia e contra toda a Europa livre começou com a Crimeia e deve terminar com a Crimeia, com a sua libertação”, afirmou o Volodymyr Zelensky.

Putin acusa EUA de quererem prolongar o conflito

As autoridades ucranianas não se pronunciaram sobre os ataques desta terça-feira, não confirmando nem negando a autoria. Mas não passaram despercebidas as declarações de Andriy Yermak, chefe do gabinete do Presidente da Ucrânia, segundo o qual está em curso uma “operação de desmilitarização” do território que irá continuar até à “desocupação total” dos territórios ucranianos.

O atrevimento e a capacidade revelados por Kiev nestes ataques têm-se feito sentir também fora de portas. Segundo a agência Tass, citada pela Associated Press, num outro ato de sabotagem que Moscovo atribuiu aos ucranianos, no início de agosto, seis torres de transmissão de alta tensão foram destruídas em explosões, na região de Kursk, no ocidente da Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia.

Esta terça-feira, o Presidente russo acusou os Estados Unidos de contribuírem para o arrastamento do conflito ao fornecerem armamento pesado aos ucranianos. “A situação na Ucrânia mostra que os EUA estão a tentar prolongar o conflito”, disse Vladimir Putin, discursando na cerimónia de abertura de uma conferência sobre segurança em Moscovo. Washington está “a usar o povo da Ucrânia como carne para canhão”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Iraque sem governo há dez meses porque os xiitas não se entendem com… os xiitas

Depois de invadirem o Parlamento, centenas de iraquianos estão agora acampados na praça em frente ao edifício, sem prazo para dali saírem. É a imagem mais ilustrativa do caos que tomou conta da política iraquiana. O país não consegue formar governo e, nos corredores, trava-se um braço de ferro entre duas formações xiitas. Um posicionamento demarca-as de forma clara: a relação com o Irão

A data da celebração é variável já que as festividades islâmicas regem-se pelo calendário lunar. Este ano, a festa religiosa mais importante para os muçulmanos de credo xiita celebrou-se na segunda-feira. A Ashura assinala o martírio de Hussein, neto do profeta Maomé, no ano de 680 a.C., na batalha de Kerbala, hoje território iraquiano.

Esta solenidade, que não é observada pelo ramo maioritário entre os muçulmanos, os sunitas, inclui um ritual público em que homens de todas as idades batem com espadas e punhais contra o couro cabeludo. Tomados por um sentimento de culpa, outros açoitam-se com correntes. Em minutos, ficam com os corpos cobertos de sangue, num ato de autoflagelação com que procuram reviver o sofrimento do imã Hussein.

No Iraque, este ano, o rito foi cumprido com o mesmo fervor de sempre, ainda que, a nível político, a união entre os xiitas — a maior fatia da população — não seja presentemente uma realidade. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro, os xiitas venceram de forma inequívoca, mas não conseguem formar governo.

O escrutínio ditou que os 329 assentos do Conselho dos Representantes (como se chama o Parlamento iraquiano) fossem repartidos por 33 formações políticas (43 lugares ficaram para independentes). O Movimento Sadrista, um partido xiita, foi o mais votado, com 10% dos votos e 73 deputados eleitos.

Apesar de terem a bancada mais numerosa, os sadristas não angariaram apoio para fazer aprovar um governo. Optaram então por uma demonstração de força e, a 12 de junho, demitiram-se da assembleia, abrindo caminho a uma aliança xiita rival, o bloco maioritário seguinte. O Quadro de Coordenação, como se chama, avançou com o seu nome para a chefia do governo: Mohammed al-Sudani, um antigo ministro dos Direitos Humanos. No dia em que ia ser votado (30 de julho), centenas de sadristas irromperam pelo Parlamento e tomaram as cadeiras dos deputados.

A facilidade com que tudo aconteceu não deixa de ser surpreendente e indicia infiltrações em ministérios sensíveis como o da Defesa e do Interior. O Parlamento situa-se na Zona Verde de Bagdade, um perímetro com segurança reforçada, delimitado à época da presença das tropas internacionais. Ali ficam também os edifícios do Governo e as embaixadas.

A intenção dos sadristas ficou clara desde a primeira hora: ali ficar num protesto permanente (sit-in, em inglês) até serem atendidas as suas exigências. “Eles querem fazer uma grande pressão sobre os seus opositores (do Quadro de Coordenação) para obterem ganhos. Querem manter o seu primeiro-ministro (Mustafa Al-Kadhimi), a comissão de eleições e a lei eleitoral”, diz ao Expresso o analista político iraquiano Ahmad Rushdi. “Querem ir para eleições antecipadas e ganhar mais de 100 lugares desta vez.”

Por ordem da liderança, os sadristas acabaram por evacuar o hemiciclo e transferiram o protesto para a praça em frente ao Parlamento, onde continuam, com tendas montadas. “Não é a primeira vez que eles invadem o prédio do Parlamento, e certamente não é a primeira vez que testemunhamos um movimento político a contornar os postos de segurança governamentais em direção às instalações governamentais para enviar uma mensagem”, acrescentou ao Expresso Zeidon Alkinani, do Centro Árabe de Washington DC.

Para este analista, a tomada do Parlamento por apoiantes de Muqtada al-Sadr motiva dois tipos de especulações. Por um lado, uma oposição ao candidato a primeiro-ministro do Quadro de Coordenação. Por outro, “pode ser que o Movimento Sadrista esteja a orquestrar uma exibição de poder e de rebeldia, a pensar no previsível papel de oposição parlamentar se o Quadro de Coordenação conseguir aprovar Al-Sudani”. Para Alkinani, este parece ser o cenário com mais força para vingar.

Neste braço de ferro entre fações xiitas, há um posicionamento que as demarca de forma clara: a relação com o Irão, o gigante xiita do Médio Oriente.

Muqtada al-Sadr, um clérigo de 48 anos, sempre se distinguiu por se opor à interferência estrangeira no Iraque. Primeiro, enquanto jovem líder rebelde, combateu a ocupação norte-americana do país (2003-2011) à frente de uma poderosa milícia, o Exército de Mahdi. Hoje, defende um governo que não seja “nem ocidental, nem oriental” e opõe-se frontalmente à influência do Irão no país. Como surgiu?

A guerra no Iraque e a morte de Saddam Hussein (que pertencia à minoria sunita e governava de forma ditatorial, reprimindo a maioria xiita) escancararam as portas iraquianas aos ayatollahs iranianos. Os dois países têm uma população maioritariamente xiita — 60% no Iraque e mais de 90% no Irão — e partilham cerca de 1600 quilómetros de fronteira. Para muitos iraquianos, Al-Sadr é a esperança de que o seu país seja expurgado dessa ascendência.

No espectro oposto, o Quadro de Coordenação integra partidos alinhados com os interesses da República Islâmica. A principal figura desta formação é o antigo primeiro-ministro Nouri al-Maliki (xiita), um rival pessoal de Al-Sadr.

Iraquianos nas ruas

Este xadrez torna o Iraque um país vulnerável às disputas geopolíticas na região. “A rede por procuração da influência iraniana no Iraque não é segredo. No entanto, não podemos negar que essa influência tem diminuído significativamente”, diz Zeidon Alkinani.

“Teerão já chegou a promover a unidade do campo político xiita (desde que alinhado com a sua agenda). Hoje, não pode sequer garantir a influência contínua sobre os seus aliados xiitas remanescentes. Ser totalmente dependente da influência iraniana não atrai muitos políticos xiitas pró-Irão, especialmente após a eclosão do movimento de protesto de outubro de 2019, que teve uma forte retórica contra a intervenção iraniana nas províncias iraquianas de maioria xiita.”

A mais recente crise política no Iraque vem culminar um período de contestação popular que explodiu a 1 de outubro de 2019 com manifestações, marchas, protestos permanentes e ações de desobediência civil, muitas vezes combinado nas redes sociais, contra a corrupção, o desemprego, a ineficácia dos serviços públicos, o sectarismo na política e também o intervencionismo iraniano.

Muqtada Al-Sadr tem repetido o seu compromisso com um “governo nacional maioritário” representativo também de sunitas e curdos, as outras duas grandes fações étnico-religiosas, mas marginalizando os rivais xiitas do Quadro de Coordenação.

Contudo, arrastar sunitas e curdos para uma possível solução de governo poderá ter consequências indesejadas. “Existem divisões intra-elitistas dentro desses grupos também”, explica Zeidon Alkinani. “Nos primeiros momentos das divergências entre o Movimento Sadrista e o Quadro de Coordenação, que levaram a este impasse político que dura há dez meses, o Partido Democrático do Curdistão ficou do lado dos sadristas, enquanto a União Patriótica do Curdistão alinhou pelo Quadro.”

Entre os sunitas, também há simpatias pelos dois campos políticos xiitas, que, neste contexto, mais parecem transformados em duas frentes. “As formações pró-sadristas [entre os curdos e os sunitas] também querem eleições antecipadas”, acrescenta Ahmed Rushdi.

“Agora que os sadristas se demitiram do Parlamento e o Quadro tenta formar governo — para além do sit-in e dos distúrbios à ordem pública —, observamos uma intensa rivalidade política intra-xiita que está muito próxima do conflito. Os líderes políticos sunitas e curdos terão apenas de sugerir o diálogo e a mediação para que sobrevivam aos seus próprios estatutos frágeis no sistema político.”

Num país marcadamente confessional — onde está estabelecido que o primeiro-ministro é um xiita, o Presidente do país um curdo e o presidente do Parlamento um sunita —, a identidade parece estar em perda no terreno da política.

(IMAGEM Bandeira do Iraque. Lê-se, em árabe: “Allah é o maior” WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Um quer mais negócios, o outro mais segurança. Putin e Erdogan já não se reuniam… há 17 dias

Os presidentes da Turquia e da Rússia reuniram-se, esta sexta-feira, pela segunda vez em menos de um mês. Recep Tayyip Erdogan viajou até à cidade russa de Sochi, acompanhado por seis dos seus principais ministros. Ao recebê-lo, Vladimir Putin vaticinou que o encontro “abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas”

Encontraram-se há menos de um mês, numa cimeira em Teerão, mas os assuntos — e em especial os problemas — que partilham justificaram novo encontro. Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, presidentes da Rússia e da Turquia, respetivamente, encontraram-se esta sexta-feira na cidade russa de Sochi, ribeirinha ao Mar Negro.

“Espero que hoje possamos assinar um memorando relevante sobre o desenvolvimento dos nossos laços comerciais e económicos”, afirmou o chefe de Estado russo, enquanto os dois se sentavam para conversar. “Acredito que [este encontro] abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas.”

Cercada por amplas sanções internacionais, a Rússia tem na Turquia (um gigante com mais de 85 milhões de habitantes) um parceiro económico precioso neste contexto de aperto. Já para Ancara, a Rússia é fundamental para poder defender o seu interesse no vespeiro da vizinha Síria. “Acredito que a nossa forma de lidar com os acontecimentos na Síria nesta altura também trará alívio à região”, disse Erdogan.

A mediação que deu estatuto a Erdogan

Erdogan chegou a Sochi com o seu estatuto internacional reforçado após mediar com êxito o acordo que permitiu a retoma, esta semana, das exportações de cereais ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos. Esta sexta-feira, zarparam dos portos do Mar Negro três navios ucranianos carregados.

O acordo esboçou um primeiro entendimento entre Moscovo e Kiev, desde o início da guerra, e fez o mundo respirar de alívio perante a iminência anunciada de crise alimentar à escala global.

A cimeira de Sochi terá servido para Erdogan apresentar a Putin a contrapartida pelos seus esforços de mediação: a “luz verde” de Moscovo para mais uma investida militar sobre as forças curdas, no norte da Síria, do outro lado da fronteira.

Na Síria, a Rússia foi o garante da sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad e hoje controla grande parte do espaço aéreo do norte do país. A minoria curda síria, que se concentra nessa zona, partilha do sonho de um Estado próprio, o que implica a cedência de território por parte de vários países. A Turquia seria amputada da maior fatia.

“Estamos determinados em erradicar os grupos maus que visam a nossa segurança nacional desde a Síria”, afirmou Erdogan na cimeira de Teerão de 19 de julho, onde Rússia e Irão se manifestaram contrários a uma ofensiva turca.

Controladas pelas forças curdas, designadas por Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa), as cidades sírias de Tal Rifaat e de Manbij são potenciais alvos. As YPG têm ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo separatista que tem, desde há décadas, uma rebelião armada contra o poder central turco e é considerado uma organização terrorista por Ancara e pela União Europeia.

O homem-forte turco não foi só

Paralelamente ao encontro cara a cara entre Putin e Erdogan, a cimeira de Sochi passou por reuniões sectoriais entre as duas delegações. O presidente turco levou consigo uma delegação de peso que incluia os ministros dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Energia, Finanças, Comércio e Agricultura, e ainda o chefe dos serviços secretos.

Este aparato governativo indicia forte investimento numa nova relação bilateral. Mas, atendendo à atual conjuntura internacional, dois assuntos revelaram-se particularmente urgentes.

ENERGIA

No ano passado, a Rússia forneceu à Turquia 45% das suas necessidades de gás. Ancara quer minimizar a dependência das importações e está a desenvolver uma central nuclear a ser construída por uma empresa russa, no sul do país. “É muito importante que o calendário acordado funcione e que [a central de] Akkuyu seja concluída no prazo previsto”, disse Erdogan, antes da partir para Sochi. A conclusão do projeto está prevista para 2025.

ARMAMENTO

Apesar de ter criticado a invasão russa da Ucrânia e de ter fornecido armas a Kiev, a Turquia desafinou da esmagadora maioria dos países ocidentais e não aplicou sanções à Rússia. Sochi revela que a relação tem potencial para crescer. Na guerra da Ucrânia, os drones Bayraktar TB2, de fabrico turco, revelaram-se uma arma poderosa para os ucranianos retardarem o avanço das forças russas.

Notícias recentes, que deram conta do interesse russo em adquirir drones de fabrico iraniano, expuseram a urgência que este assunto tem para Moscovo. Na cimeira de Teerão, Putin terá sugerido a Erdogan a instalação de uma fábrica de drones na Rússia. O impacto da proposta não ficará circunscrito aos dois países, já que a Turquia é membro da NATO.

(FOTO Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin, em Sochi TWITTER DA PRESIDÊNCIA DA TURQUIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Um convidado caro aos talibãs

O líder da Al-Qaeda foi morto por um drone dos EUA, em Cabul. Os tiros atingiram também o regime talibã

Nos últimos anos, alguns dos maiores êxitos dos Presidentes dos Estados Unidos em matéria de política externa passaram pela eliminação de terroristas com influência global. A 2 de maio de 2011, Barack Obama anunciou a morte do inimigo público nº 1 da América, o então líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, que dirigiu os atentados de 11 de Setembro de 2001. “É a conquista mais significativa, até à data, no esforço da nossa nação para derrotar a Al-Qaida.”

A 27 de outubro de 2019, Donald Trump congratulou-se com a eliminação de Abu Bakr al-Baghdadi, chefe do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), que dominou com grande crueldade parte significativa do Iraque e da Síria. “Morreu como um cão, como um covarde. O mundo é agora um lugar muito mais seguro.”

Esta semana, Joe Biden adicionou à lista dos troféus Ayman al-Zawahiri, antigo líder da Jihad Islâmica Egípcia, que esteve com Bin Laden na fundação da Al-Qaida (“A Base”) em 1988, foi cérebro dos atentados em Washington e Nova Iorque e sucedeu a Bin Laden à frente da organização. “Foi feita justiça e esse terrorista já não existe.”

Varanda indiscreta

Ao contrário de Bin Laden e Al-Baghadi, que morreram durante operações especiais americanas no Paquistão e na Síria, respetivamente, Al-Zawahiri foi liquidado no Afeganistão por um drone da Força Aérea dos Estados Unidos operado pela CIA. Eram 6h18 de 30 de julho quando dois mísseis foram disparados na direção do homem, de 71 anos, que estava à varanda de casa. Esse hábito frequente facilitou a observação de quem já o tinha debaixo de olho e a confirmação da sua identidade.

O terrorista não estava escondido numa qualquer gruta remota, mas numa moradia do bairro de Sherpur, em Cabul, perto de edifícios onde, até há um ano, funcionavam embaixadas ocidentais. Segundo o jornal “The New York Times”, “vivia numa casa que era propriedade de um dos principais assessores de Sirajuddin Haqqani, ministro do Interior dos talibãs e membro da rede terrorista Haqqani [radical], com ligações próximas à Al-Qaida”. Há anos que o FBI promete uma recompensa de mais de 10 milhões de dólares (€9,8 milhões) por informações que levassem diretamente à sua captura.

Fundos podem não descongelar

A presença do líder da Al-Qaida no Afeganistão expôs um duplo embaraço. Os talibãs — que se comprometeram no Acordo de Doha, assinado com os Estados Unidos em 2020, a não mais dar guarida à Al-Qaida — carecem de argumentos convincentes para justificar a presença de Al-Zawahiri na capital. E os próprios Estados Unidos viram reabrir-se o debate sobre a caótica e até humilhante retirada militar do Afeganistão, perante a constatação de que 20 anos de guerra não destruí­ram a aliança entre a Al-Qaida e os talibãs afegãos.

Mas é pelo lado afegão que a corda parte. Este caso “terá impacto na relação entre Estados Unidos e talibãs”, comenta ao Expresso Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group (ICG) para o Afeganistão. “Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Al-Zawahiri em Cabul? Porque lhe deram abrigo? Ou porque não quiseram ou não puderam tomar medidas contra ele? Pelo menos no curto prazo isto irá limitar a capacidade e os esforços diplomáticos relativos à prestação de assistência humanitária e ao descongelamento de ativos.”

“Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Ayman al-Zawahiri em Cabul? Deram-lhe abrigo? Tomaram medidas contra ele?”

Nos dias que antecederam a execução de Al-Zawahiri, a Administração Biden e os talibãs estavam em conversações para encontrar forma de o Governo afegão aceder às reservas do Banco Central do país depositadas nos Estados Unidos. Washington congelou fundos no valor de sete mil milhões de dólares (€6850 milhões) após a tomada do poder pelos talibãs, a 15 de agosto de 2021.

Esse diálogo, no Catar, foi acelerado pela pandemia, o impacto da guerra na Ucrânia e, sobretudo, por um forte sismo que, a 22 de junho passado, matou mais de mil pessoas. “Os dois lados estavam perto de um acordo”, diz Bahiss. Mas este caso “torna muito mais difícil para os americanos libertarem fundos diretamente para os talibãs ou para um mecanismo em que estes tenham controlo sobre essas reservas”.

Numa primeira reação ao ataque, os talibãs disseram apenas tratar-se de uma “clara violação” dos princípios internacionais e do pacto de Doha. Quarta-feira, em declarações à televisão afegã Tolo News, Abdul Salam Hanafi, segundo vice-primeiro-ministro do país, acrescentou: “A política do Emirado Islâmico, que tem sido repetidamente comunicada ao povo, é de que o nosso solo não pode ser usado contra os nossos vizinhos.”

Saem os EUA, entra Al-Zawahiri

O analista do ICG descodifica a retórica de Cabul. “Os talibãs poderão contra-argumentar que estão a tomar medidas contra grupos radicais para lhes restringir a liberdade. Se defenderem que trouxeram Al-Zawahiri para Cabul para algum tipo de prisão domiciliária ou outra forma de controlar os seus movimentos e as suas ações, poderão dizer que os Estados Unidos violaram o Acordo de Doha, enquanto eles tomaram medidas para impedir o líder da Al-Qaida de amea­çar a segurança dos Estados Unidos e dos seus aliados.”

O percurso de Al-Zawahiri desde o 11 de Setembro não é rastreável com exatidão. Pensa-se que, desde o início do século, tenha vivido na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. “Os nossos serviços de informações localizaram-no no início deste ano. Tinha-se mudado para o centro de Cabul para se juntar a membros da sua família direta”, disse Biden na comunicação ao país.

O que fazia no Afeganistão e o que planeava fazer pelo mundo poderá não ser fácil de reconstituir. A operação dos SEAL da Marinha americana que surpreendeu Bin Laden numa moradia de Abbottabad permitiu recolher muito material, mas o mesmo não se aplica ao tipo de ataque que matou Al-Zawahiri.

Se se mudou para Cabul após a retirada americana, acentua-se o embaraço de Biden, que, à época, respondeu assim aos críticos: “Que interesse temos no Afeganistão, agora que a Al-Qaida se foi? Fomos para lá com o objetivo expresso de nos livrarmos da Al-Qaida no Afeganistão. E conseguimos.” Até Al-Zawahiri assomar a uma varanda de Cabul.

AL-QAEDA: MORRER OU RENASCER?

A 11 de agosto de 1988, uma reunião em Peshawar (Paquistão) entre Osama bin Laden, Ayman al-Zawahiri e Sayyed Imam Al-Sharif (Dr. Fadl) criou a Al-Qaeda. O saudita Bin Laden era o garante de uma riqueza infinita, o egípcio Al-Zawahiri personificava a crença inabalável no radicalismo islâmico e o intelectual e também egípcio Fadl a base filosófica da jihad. Os dois primeiros estão mortos e o último não é opção para lhes suceder na liderança da organização. Em 2007, renunciou à violência e distanciou-se do jiadismo global. O nome de que se fala para assumir o comando da Al-Qaeda é o de Seif al-Adel. Este egípcio de mais de 60 anos tem ficha aberta no FBI, que o procura por envolvimento nos atentados de 7 de agosto de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos na Tanzânia e no Quénia. “Se a Al-Qaeda escolher alguém que esteja fora do Afeganistão, a longo prazo isso pode desviar o foco desse país”, defende Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group. “A Al-Qaeda tem uma presença muito pequena no Afeganistão, dezenas ou centenas de pessoas no máximo. Em territórios africanos, como a Somália, tem uma presença muito maior.” E conclui: “Dependendo de quem for escolhido para liderar a Al-Qaeda, não é necessariamente um golpe fatal para a organização. A Al-Qaeda não é desafiada hoje da mesma forma que já o foi pelo Daesh. E pode usar a vitória dos talibãs no Afeganistão para se promover e recuperar da perda que sofreu.”

(FOTO O saudita Osama bin Laden e o egípcio Ayman al-Zawahiri, a cúpula da Al-Qaeda, durante uma entrevista com o jornalista paquistanês Hamid Mir, publicada no jornal paquistanês “Dawn”, a 10 de novembro de 2001. Hamid Mir é o único jornalista que entrevistou Bin Laden após o 11 de Setembro HAMID MIR / EDITOR / AUSAF NEWSPAPER FOR DAILY DAWN / HANDOUT VIA REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui