Grandes protestos dinamizados por mulheres visam o uso obrigatório do hijab, mas também o regime
Às primeiras notícias de protestos nas ruas do Irão, Gil Pinheiro começou a disparar perguntas para quem, à sua volta, tinha algum conhecimento do país. “Que me aconselhas? Vou ou cancelo a viagem?” Este engenheiro de 28 anos, natural de São João da Madeira, estava a cerca de um mês de umas férias de 20 dias no Irão. “Parece ser um país incrível, com montanha, deserto, mar, ilhas, cidades, aldeias, e uma cultura muito diferente da nossa”, enumera ao Expresso. “E tenho a impressão de que as pessoas são muito acolhedoras.”
Nos preparativos para a viagem, obtido o visto, um assunto preocupava-o: dado que não poderia usar Visa ou Mastercard, devido às sanções internacionais, teria de levar numerário para toda a viagem. Os ecos dos protestos resolveram o problema. “Houve quem me dissesse que não teria problemas se insistisse em ir e quem me aconselhasse a cancelar a viagem. Dada a rápida escalada da situação, decidi não ir.”
Seja por haver agitação nas ruas ou ameaças de guerra devido ao programa nuclear iraniano, muitos turistas acabam por adiar planos para visitar o país. Para os iranianos, imersos num oceano de privações, estadas como a do jovem português seriam gotas de alívio.
Panela de pressão social
Além das dificuldades inerentes a conjunturas críticas pontuais — como a pandemia ou a guerra na Ucrânia —, o Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica marcada por muito desemprego, sobretudo entre jovens e mulheres; degradação ambiental, com a população afetada ora pela desertificação e escassez de água ora por cheias potenciadas pela intervenção humana e por gestão negligente; e ortodoxia política que torna a teocracia imune a reformas.
O Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica, degradação ambiental e ortodoxia política
Tudo contribui para um quotidiano de grande frustração que, diante de um pretexto sólido e mobilizador, explode qual panela de pressão. É o que se passa atualmente, com protestos de rua dinamizados por mulheres contra o uso obrigatório do hijab (lenço).
O crime da ‘rapariga azul’
“Os protestos contra o hijab não são assunto recente. É algo que existe desde a criação da República Islâmica [em 1979]”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho. Porém, as manifestações de descontentamento aumentaram face a pontos de viragem como a proibição de as mulheres entrarem nos estádios, a morte da ‘rapariga azul’ e agora a de Mahsa Amini.”
A “rapariga azul” era Sahar Khodayari, adepta do Esteghlal F.C. de Teerão, que se imolou pelo fogo a 9 de setembro de 2019, aos 29 anos. Respondia em tribunal por ter tentado entrar no Estádio Azadi, disfarçada de rapaz, para ver um jogo da sua equipa do coração.
Mahsa Amini é o gatilho que fez disparar os protestos iniciados a 16 de setembro, dia em que foi noticiada a morte desta iraniana de 22 anos. Pertencente à minoria curda, morreu num hospital na sequência de ferimentos atribuídos a agentes da “polícia da moralidade”, que a intercetaram na rua e a detiveram por andar com o hijab “de forma imprópria”.
Numa tentativa de reter dentro de portas as imagens da repressão aos protestos, que já contagiaram mais de 150 cidades, as autoridades tiraram velocidade à internet e restringiram o acesso às redes Instagram e WhatsApp. Ainda assim, muitos vídeos ultrapassaram fronteiras, mostrando mulheres a queimarem lenços, a enfrentarem polícias nas ruas de cabelo solto ou a cortarem os próprios cabelos à tesourada. Ao Expresso, uma iraniana que vive em Lisboa interpreta este último gesto: “Se é o meu cabelo que incomoda, então eu corto-o e deixam-me livre.”
Liberdade só às escondidas
Há oito anos, a dissidente Masih Alinejad, dona de farta cabeleira, tornou-se uma voz amplificadora da sede de liberdade das mulheres do seu país. Inundada por mensagens de compatriotas frustradas por não poderem andar sem lenço, como Masih fazia no Ocidente (onde vivia), criou a página #MyStealthyFreedoms (Minhas Liberdades Furtivas), no Facebook, onde partilhava fotos de iranianas sem hijab, tiradas às escondidas no Irão.
Hoje nos Estados Unidos, a ativista já não disfarça as olheiras ganhas a seguir o que se passa no Irão e a responder a órgãos de informação. Ao Expresso, destaca um aspeto dos protestos. “Os homens estão nas ruas e em grande número. Isto não é só sobre o hijab, símbolo mais forte da República Islâmica e ferramenta de controlo das mulheres. Tanto homens como mulheres estão fartos de um regime que os governou com terror e controlo. Exigem a sua queda. Os cânticos nas ruas são: ‘Morte ao ditador’, ‘Morte a [Ali] Khamenei [o Líder Supremo]’ e ‘O nosso inimigo está aqui, eles mentem quando dizem que são os Estados Unidos’.”
Dois grupos participam nos protestos. Um deles luta por direitos civis, o outro vai mais longe e quer uma mudança de regime
Ainda que à distância, Eslami identifica dois grupos a participar nos protestos. “O primeiro luta pelos seus ‘direitos civis’, incluindo as liberdades de escolha e de expressão. Diz que a Constituição [adotada em 1979 e revista dez anos depois] não atende às necessidades da sociedade e devia ser alvo de uma grande revisão nas dimensões política e social. O segundo grupo vai mais longe e quer uma mudança de regime e uma revolução contra os mullahs’. Considera o hijab e os direitos civis assunto secundário, que só será importante quando o povo iraniano se libertar da corrupção sistémica, do isolamento internacional, das sanções económicas e da frustração social e política.”
Revolta ou revolução?
Nos últimos 15 anos, esta é a terceira grande vaga de manifestações antigovernamentais no Irão. A primeira foi em 2009, contra a reeleição do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais. A segunda, dez anos depois, seguiu-se à triplicação do preço dos combustíveis. “Esta revolta [de 2022] não tem as características de uma revolução”, diz Eslami. “Apesar da adesão de celebridades, os protestos carecem de capital social e de um líder legítimo”, como os de 2009, organizados em torno de dois reformistas derrotados nas eleições.
Os órgãos de informação oficiais já admitiram a morte de mais de 40 pessoas; a resistência no exílio fala em mais de 240. “A reação da República Islâmica aos protestos não é nova: repressão brutal e sangrenta, com forte presença de forças de segurança nas ruas, equipadas com gás lacrimogéneo, bastões e armas”, descreve Masih Alinejad. Em paralelo, Teerão tenta neutralizar a contestação com contramanifestações pró-regime.
Sempre que os iranianos saem às ruas, há expectativas de uma “primavera iraniana”. Mas, como realça o investigador iraniano, “nunca ninguém avançou com uma alternativa ao regime dos ayatollahs. Dessa forma, derrubar o regime não ajudará o povo e levará à destruição do país, algo muito semelhante ao atual estado da Síria. Estes protestos não têm potencial para mudar o regime ou pelo menos coagi-lo a aceitar as exigências.”
(ILUSTRAÇÃO Cartoon de homenagem a Mahsa Amini e à luta das iranianas contra o regime religioso EMAD HAJJAJ / CARTOON MOVEMENT. No seu site, o Cartoon Movement dedica uma página a cartoons sobre Mahsa Amini, que pode ser consultada aqui)
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui



