Os lenços que destaparam a frustração

Grandes protestos dinamizados por mulheres visam o uso obrigatório do hijab, mas também o regime

Às primeiras notícias de protestos nas ruas do Irão, Gil Pinheiro começou a disparar perguntas para quem, à sua volta, tinha algum conhecimento do país. “Que me aconselhas? Vou ou cancelo a viagem?” Este engenheiro de 28 anos, natural de São João da Madeira, estava a cerca de um mês de umas férias de 20 dias no Irão. “Parece ser um país incrível, com montanha, deserto, mar, ilhas, cidades, aldeias, e uma cultura muito diferente da nossa”, enumera ao Expresso. “E tenho a impressão de que as pessoas são muito acolhedoras.”

Nos preparativos para a viagem, obtido o visto, um assunto preocupava-o: dado que não poderia usar Visa ou Mastercard, devido às sanções internacionais, teria de levar numerário para toda a viagem. Os ecos dos protestos resolveram o problema. “Houve quem me dissesse que não teria problemas se insistisse em ir e quem me aconselhasse a cancelar a viagem. Dada a rápida escalada da situação, decidi não ir.”

Seja por haver agitação nas ruas ou ameaças de guerra devido ao programa nuclear iraniano, muitos turistas acabam por adiar planos para visitar o país. Para os iranianos, imersos num oceano de privações, estadas como a do jovem português seriam gotas de alívio.

Panela de pressão social

Além das dificuldades inerentes a conjunturas críticas pontuais — como a pandemia ou a guerra na Ucrânia —, o Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica marcada por muito desemprego, sobretudo entre jovens e mulheres; degradação ambiental, com a população afetada ora pela desertificação e escassez de água ora por cheias potenciadas pela intervenção humana e por gestão negligente; e ortodoxia política que torna a teocracia imune a reformas.

O Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica, degradação ambiental e ortodoxia política

Tudo contribui para um quotidiano de grande frustração que, diante de um pretexto sólido e mobilizador, explode qual panela de pressão. É o que se passa atualmente, com protestos de rua dinamizados por mulheres contra o uso obrigatório do hijab (lenço).

O crime da ‘rapariga azul’

“Os protestos contra o hijab não são assunto recente. É algo que existe desde a criação da República Islâmica [em 1979]”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho. Porém, as manifestações de descontentamento aumentaram face a pontos de viragem como a proibição de as mulheres entrarem nos estádios, a morte da ‘rapariga azul’ e agora a de Mahsa Amini.”

A “rapariga azul” era Sahar Khodayari, adepta do Esteghlal F.C. de Teerão, que se imolou pelo fogo a 9 de setembro de 2019, aos 29 anos. Respondia em tribunal por ter tentado entrar no Estádio Azadi, disfarçada de rapaz, para ver um jogo da sua equipa do coração.

Mahsa Amini é o gatilho que fez disparar os protestos iniciados a 16 de setembro, dia em que foi noticiada a morte desta iraniana de 22 anos. Pertencente à minoria curda, morreu num hospital na sequência de ferimentos atribuídos a agentes da “polícia da moralidade”, que a intercetaram na rua e a detiveram por andar com o hijab “de forma imprópria”.

Numa tentativa de reter dentro de portas as imagens da repressão aos protestos, que já contagiaram mais de 150 cidades, as autoridades tiraram velocidade à internet e restringiram o acesso às redes Instagram e WhatsApp. Ainda assim, muitos vídeos ultrapassaram fronteiras, mostrando mulheres a queimarem lenços, a enfrentarem polícias nas ruas de cabelo solto ou a cortarem os próprios cabelos à tesourada. Ao Expresso, uma iraniana que vive em Lisboa interpreta este último gesto: “Se é o meu cabelo que incomoda, então eu corto-o e deixam-me livre.”

Liberdade só às escondidas

Há oito anos, a dissidente Masih Alinejad, dona de farta cabeleira, tornou-se uma voz amplificadora da sede de liberdade das mulheres do seu país. Inundada por mensagens de compatriotas frustradas por não poderem andar sem lenço, como Masih fazia no Ocidente (onde vivia), criou a página #MyStealthyFreedoms (Minhas Liberdades Furtivas), no Facebook, onde partilhava fotos de iranianas sem hijab, tiradas às escondidas no Irão.

Hoje nos Estados Unidos, a ativista já não disfarça as olheiras ganhas a seguir o que se passa no Irão e a responder a órgãos de informação. Ao Expresso, destaca um aspeto dos protestos. “Os homens estão nas ruas e em grande número. Isto não é só sobre o hijab, símbolo mais forte da República Islâmica e ferramenta de controlo das mulheres. Tanto homens como mulheres estão fartos de um regime que os governou com terror e controlo. Exigem a sua queda. Os cânticos nas ruas são: ‘Morte ao ditador’, ‘Morte a [Ali] Khamenei [o Líder Supremo]’ e ‘O nosso inimigo está aqui, eles mentem quando dizem que são os Estados Unidos’.”

Dois grupos participam nos protestos. Um deles luta por direitos civis, o outro vai mais longe e quer uma mudança de regime

Ainda que à distância, Eslami identifica dois grupos a participar nos protestos. “O primeiro luta pelos seus ‘direitos civis’, incluindo as liberdades de escolha e de expressão. Diz que a Constituição [adotada em 1979 e revista dez anos depois] não atende às necessidades da sociedade e devia ser alvo de uma grande revisão nas dimensões política e social. O segundo grupo vai mais longe e quer uma mudança de regime e uma revolução contra os mullahs’. Considera o hijab e os direitos civis assunto secundário, que só será importante quando o povo iraniano se libertar da corrupção sistémica, do isolamento internacional, das sanções económicas e da frustração social e política.”

Revolta ou revolução?

Nos últimos 15 anos, esta é a terceira grande vaga de manifestações antigovernamentais no Irão. A primeira foi em 2009, contra a reeleição do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais. A segunda, dez anos depois, seguiu-se à triplicação do preço dos combustíveis. “Esta revolta [de 2022] não tem as características de uma revolução”, diz Eslami. “Apesar da adesão de celebridades, os protestos carecem de capital social e de um líder legítimo”, como os de 2009, organizados em torno de dois reformistas derrotados nas eleições.

Os órgãos de informação oficiais já admitiram a morte de mais de 40 pessoas; a resistência no exílio fala em mais de 240. “A reação da República Islâmica aos protestos não é nova: repressão brutal e sangrenta, com forte presença de forças de segurança nas ruas, equipadas com gás lacrimogéneo, bastões e armas”, descreve Masih Alinejad. Em paralelo, Teerão tenta neutralizar a contestação com contramanifestações pró-regime.

Sempre que os iranianos saem às ruas, há expectativas de uma “primavera iraniana”. Mas, como realça o investigador iraniano, “nunca ninguém avançou com uma alternativa ao regime dos ayatollahs. Dessa forma, derrubar o regime não ajudará o povo e levará à destruição do país, algo muito semelhante ao atual estado da Síria. Estes protestos não têm potencial para mudar o regime ou pelo menos coagi-lo a aceitar as exigências.”

(ILUSTRAÇÃO Cartoon de homenagem a Mahsa Amini e à luta das iranianas contra o regime religioso EMAD HAJJAJ / CARTOON MOVEMENT. No seu site, o Cartoon Movement dedica uma página a cartoons sobre Mahsa Amini, que pode ser consultada aqui)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

UE mostra as garras à Rússia: “Quando um membro permanente inicia uma guerra não provocada devia ser suspenso do Conselho de Segurança”

O quarto dia de discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas ficou marcado por um violento discurso do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, contra a Rússia. A braços com outra “guerra”, o primeiro-ministro do Paquistão descreveu, de forma emocionada, as consequências de “inundações bíblicas” no seu país. E um “oásis” chamado Timor-Leste agradeceu expressamente a dois países a assistência prestada ao sector da saúde

Os grandes desafios do mundo não olham a antiguidade. Esta sexta-feira, na Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem Timor-Leste, que é independente e membro da ONU há apenas 20 anos, expressou receios ao nível das maiores preocupações dos veteranos da mais universal das organizações, fundada há quase 80 anos.

“Como quase todos os países do planeta, Timor-Leste sofre várias catástrofes decorrentes das alterações climáticas — períodos de seca prolongada, seguida de inundações —, a pandemia de covid-19 e agora o impacto económico global resultante do confronto Rússia-Ucrânia-NATO”, afirmou o Presidente do país.

Reeleito há cinco meses, José Ramos-Horta particularizou um agradecimento especial a dois países que considerou fundamentais para minimizar o impacto de algumas destas crises, designadamente ao nível da saúde pública.

À Austrália, que “provou ser uma verdadeira vizinha irmã”, Ramos-Horta agradeceu “a pronta assistência ao nosso frágil sistema de saúde”, com o envio de pessoal médico, ventiladores e equipamentos de intubação e formação a timorenses. “Quando a vacina ficou disponível, a Austrália forneceu-nos para além das nossas necessidades.”

“Rússia, Ucrânia e NATO têm de engolir o orgulho”

O outro país elogiado foi Cuba. “À época da independência, há 20 anos, nós tínhamos 20 médicos, hoje temos mais de 1200 para uma população de 1,5 milhões. Isto não teria sido alcançado sem a solidariedade cubana.” Então, “a esperança [média] de vida era inferior a 60 anos, agora uma mulher timorense pode esperar viver para além dos 71 anos de idade.”

Ramos-Horta descreveu Timor-Leste — que, no próximo ano, espera dar um passo importante na sua robustez enquanto país aderindo à Organização Mundial do Comércio — como “um oásis de tranquilidade”, “num mundo atormentado por conflitos e catástrofes provocadas pelo homem, de Mianmar ao Afeganistão, do Iémen à Ucrânia”. 

“Rússia, Ucrânia e países da NATO têm de engolir o orgulho, rever as políticas passadas que levaram a este suicídio mútuo, afastar-se das fronteiras uns dos outros.”

José Ramos-Horta
Presidente de Timor-Leste

Timor-Leste aderiu às Nações Unidas em 2002, no mesmo ano que se tornou independente. Depois, a ONU só abriu portas mais duas vezes: em 2006 para acolher o Montenegro e em 2011 para entrar o Sudão do Sul, colocando em 193 o número de Estados membros.

A organização tem ainda dois “Estados não membros”, com direito a assistir aos trabalhos e a intervir na Assembleia Geral e a manter uma missão permanente na sede da organização, em Nova Iorque. Um deles é a Santa Sé e o outro a Palestina, que sonha há décadas com um Estado independente e com o estatuto de ‘igual entre iguais’ na ONU.

Discurso de um sentido só: Israel

No debate desta sexta-feira, Mahmud Abbas excedeu largamente os 15 minutos atribuídos a cada orador e, durante quase 50 minutos, discursou sobre um tema só: a ocupação israelita da Palestina e o sonho adiado de 14 milhões de palestinianos dispersos pelo mundo — descendentes dos 700 mil que fugiram das terras onde viviam (Nakba), durante a guerra da independência de Israel.

“A nossa confiança na possibilidade de alcançarmos uma paz com base na justiça e no direito internacional está, infelizmente, a diminuir devido às políticas de ocupação de Israel”, disse o Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), perante uma sala onde primava pela ausência o representante de Israel.

“Israel não acredita na paz, acredita na imposição de um status quo pela força e pela agressão. Por isso, não temos mais um parceiro israelita com quem possamos conversar”, disse. “Israel terminou a relação contratual connosco e transformou-a numa relação entre um Estado ocupante e um povo ocupado.”

“Porquê razão Israel não é responsabilizado pelo direito internacional? Quem está a protege-lo? As Nações Unidas protegem-no, e à cabeça estão os países mais poderosos.”

Mahmud Abbas
Presidente da Autoridade Palestiniana

Abbas, que preside à AP desde 2005 (e cujo mandato expirou em 2009 sem que, desde então, os palestinianos tenham conseguido realizar eleições para legitimar o titular do cargo), discursou um dia após o primeiro-ministro israelita fazer-se ouvir e reafirmar o seu compromisso com a solução de dois Estados.

“Um acordo com os palestinianos, com base em dois Estados para dois povos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro das nossas crianças”, defendeu Yair Lapid.

Na tribuna da Assembleia Geral, a seguir ao líder palestiniano, discursou o francês Charles Michel, em representação da União Europeia (UE), que não esqueceu os palestinianos: “O povo palestiniano espera há muito tempo e em vão por qualquer progresso em relação ao seu próprio futuro. O povo palestiniano não pode tornar-se a entidade esquecida na paisagem global”.

O presidente do Conselho Europeu da UE centrou a sua intervenção na guerra que “o Kremlin lançou ao povo ucraniano”, uma guerra híbrida que “combina violência armada e mentiras venenosas”.

Reforma da ONU é “necessária e urgente”

O dirigente europeu não poupou nas palavras e disse estar convicto que as Nações Unidas podem fazer mais quando Estados poderosos, como a Rússia, pisam a linha do aceitável.

“Quando um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas inicia uma guerra não provocada e injustificável, uma guerra condenada pela Assembleia Geral da ONU, a sua suspensão do Conselho de Segurança devia ser automática”, defendeu.

Charles Michel criticou o uso abusivo do direito de veto, “que devia ser a exceção, mas tornou-se a regra”, e defendeu que “uma reforma é necessária e urgente”.

https://twitter.com/CharlesMichel/status/1573351354176868354?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1573363999131009026%7Ctwgr%5E40125869a94f79b79c519247c145e9f9a51636c7%7Ctwcon%5Es2_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2022-09-23-UE-mostra-as-garras-a-Russia-Quando-um-membro-permanente-inicia-uma-guerra-nao-provocada-devia-ser-suspenso-do-Conselho-de-Seguranca-c7bc841c

Numa jornada em que discursaram vários Estados insulares — Vanuatu, Fiji, Ilhas Salomão, Santa Lúcia e Maurícias —, vulneráveis à subida do nível dos oceanos, as palavras mais desesperadas soaram da boca de um país onde vivem mais de 220 milhões de pessoas.

“Enquanto estou aqui hoje para contar a história do meu país, o Paquistão, o meu coração e a minha mente não conseguiram sair de casa. Nenhuma palavra consegue descrever o choque que estamos a viver ou como a face do país está transformada”, disse Muhammad Shehbaz Sharif, o primeiro-ministro paquistanês.

“Durante 40 dias e 40 noites, uma inundação bíblica caiu sobre nós, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como responder-lhes.”

O Paquistão é, desde meados de junho, o país mais atingido pela fúria da natureza e pelos efeitos devastadores das alterações climáticas. A dimensão da catástrofe levou Sharif ao desespero, dizendo que o país trava “uma batalha pela sua sobrevivência” e que “a vida no Paquistão mudou para sempre”.

Por que razão o meu povo está a pagar um preço tão alto pelo aquecimento global sem culpa própria? A natureza lançou a sua fúria sobre o Paquistão sem olhar à nossa pegada, que é quase nula. As nossas ações não contribuíram para isto.”

Muhammad Shehbaz Sharif
primeiro-ministro do Paquistão

(IMAGEM SITE DO PARLAMENTO EUROPEU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Porque há contestação nas ruas aos “ayatollahs”?

A morte de uma jovem sob custódia da polícia, detida por andar na via pública com “trajes inadequados”, desencadeou manifestações contra o uso obrigatório do véu islâmico. E, por arrasto, contra o regime religioso que governa o Irão há 43 anos

Engarrafamento na direção do cemitério de Saqqez, onde está enterrada Mahsa Amini TWITTER / BBC

1. Porque há protestos em várias cidades iranianas?

Aagitação está nas ruas desde sábado, dia do funeral de uma mulher de 22 anos que morreu fruto de ferimentos graves infligidos dentro de uma carrinha da polícia. Mahsa Amini fora detida em Teerão, pela polícia de costumes, por levar “trajes inadequados”.

Imagens nas redes sociais mostram iranianas a queimar os véus, de uso obrigatório. Os protestos já fizeram pelo menos sete mortos e concentram-se em Teerão, Mashhad, Tabriz e na região curda. Mahsa pertencia a esta minoria, que resistiu a tentativas de assimilação.

2. Que é e para que serve a polícia de costumes?

Também chamada polícia da moralidade, foi criada após a Revolução Islâmica. Tem como missão fazer cumprir, na via pública, os códigos de vestuário impostos pelos ayatollahs, desde logo o uso obrigatório do véu islâmico para as mulheres e roupa larga para ocultar a silhueta.

Transeuntes vestidos de forma que considerem “não islâmica” — por exemplo, com o véu descaído ou, no caso dos homens, calções e camisas de manga curta — são admoestados, multados ou presos por agentes desta força de segurança.

3. Que potencial político têm os protestos?

Este episódio traz à memória a morte do vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo, em 2010, depois de a polícia apreender a sua banca.

Este ato desesperado desencadeou protestos no país e originou um efeito dominó no Norte de África e Médio Oriente (Primavera Árabe), que depôs ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen.

No Irão, o descontentamento apoia-se também em slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência velada ao Líder Supremo, Ali Khamenei.

4. Esta contestação nas ruas é inédita no país?

Nos últimos 15 anos, eclodiram grandes manifestações antigovernamentais por duas vezes, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”.

A primeira foi em 2009, contra a vitória do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais (Movimento Verde).

Dez anos depois, nova vaga de protestos, que começou a propósito do forte aumento do preço dos combustíveis, evoluiu para um movimento pró-democracia.

Ambas as jornadas foram violentamente reprimidas pelas forças do regime.

5. Como reagem agora as autoridades de Teerão?

Restringindo o acesso a WhatsApp e Instagram e remetendo-se ao silêncio. Quarta-feira, Khamenei falou 55 minutos na televisão sobre a guerra Irão-Iraque.

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Presidente Ebrahim Raisi também foi omisso.

Já o homólogo americano não perdeu a ocasião de expor Teerão: “Estamos com os corajosos cidadãos e as bravas mulheres do Irão que se manifestam para garantir os direitos básicos”, disse Joe Biden, nas Nações Unidas.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

“Se o mercado de fertilizantes não for estabilizado, o problema pode ser o abastecimento de alimentos.” Crises mundiais em debate na ONU

A Rússia faz parte da solução para que se inverta o agravamento da crise alimentar à escala global. O secretário-geral da ONU considerou “essencial continuar a eliminar todos os obstáculos remanescentes à exportação de fertilizantes russos”. Guterres falava no primeiro de seis dias de debate, a marcar o início na 77ª Assembleia-Geral da organização, onde o Brasil é, há décadas, o primeiro a discursar. Depois do aproveitamento político que fez da sua deslocação a Londres, Jair Bolsonaro foi a Nova Iorque exaltar as conquistas do seu Governo e explicar porque deve ser reeleito

O ritual cumpre-se ininterruptamente desde 1949. Na agenda da Assembleia-Geral das Nações Unidas, há uma semana do ano dedicada a ouvir os chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros — que preocupações os atormentam e que apelos têm a fazer à comunidade internacional.

Com uma guerra em curso na Europa, uma crise económica global agravada por uma pressão inflacionista — desencadeada pela subida dos preços da energia, dos alimentos e das matérias-primas —, e ainda as alterações climáticas a não darem tréguas, “o nosso mundo está em apuros”, alertou, esta terça-feira, o secretário-geral da organização.

António Guterres, que foi o primeiro a fazer-se ouvir na sessão de abertura da 77ª Assembleia -Geral, identificou a disrupção na cadeia de abastecimento de alimentos como uma das principais emergências do momento.

“Para aliviar a crise alimentar global, devemos abordar urgentemente a crise do mercado global de fertilizantes. Este ano o mundo tem comida suficiente; o problema é a distribuição. Mas se o mercado de fertilizantes não for estabilizado, o problema, no próximo ano, pode ser o próprio abastecimento de alimentos”, avisou o português.

Fertilizantes russos não estão sujeitos a sanções

Para inverter a tragédia que se adivinha, o líder das Nações Unidas considera “essencial continuar a eliminar todos os obstáculos remanescentes à exportação de fertilizantes russos e dos seus ingredientes, incluindo amónio”. Guterres lembra que “esses produtos não estão sujeitos a sanções”.

O desbloqueamento dos fertilizantes russos foi um dos pontos da recente Convenção de Istambul — popularizada como Acordo dos Cereais —, assinada a 22 de julho, após mediação do secretário-geral da ONU e do Presidente da Turquia. Esta terça-feira, Recep Tayyip Erdogan considerou esse pacto “uma das grandes conquistas das Nações Unidas nos últimos anos”.

No uso da palavra, Jair Bolsonaro demonstrou de que forma o país a que preside pode ajudar a combater o problema alimentar. “Este ano, o Brasil já começou a colheita da maior safra de cereais da nossa história. Estimam-se, pelo menos, 270 milhões de toneladas. Em poucos anos, o Brasil passará de importador a exportador de trigo”, disse o chefe de Estado brasileiro.

Na linha do que defendeu Guterres, Bolsonaro transmitiu a ideia de que combater a crise global passa muito por aliviar a pressão económica à Rússia, decorrente da invasão da Ucrânia.

“Somos contra o isolamento diplomático e económico”, disse. “As consequências do conflito já são sentidas nos preços mundiais de alimentos, combustível e outras matérias-primas. Essa situação afasta-nos dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Países que se apresentavam como líderes da economia de baixo carbono passaram a usar fontes sujas de energia. Este é um revés grave para o meio ambiente.”

Brasil é sempre o primeiro a discursar

Correspondendo a uma tradição iniciada em 1947, o Brasil é sempre o primeiro dos membros da ONU — atualmente 193 — a intervir no debate geral, que este ano decorre se vai prolongar até à próxima segunda-feira. Nesse ano, foi o ministro dos Negócios Estrangeiros brasileiro, Osvaldo Aranha, que presidiu à primeira sessão especial da Assembleia-Geral e à segunda sessão ordinária.

Após uma polémica deslocação a Londres, para assistir ao funeral da rainha Isabel II, onde Bolsonaro — em campanha para as presidenciais de 2 de outubro — foi acusado de aproveitamento político, o brasileiro foi a Nova Iorque aproveitar os holofotes das Nações Unidas para exaltar como o país que lidera está no bom caminho.

Afirmou que, durante a pandemia, o seu Governo “não poupou esforços para salvar vidas e preservar empregos”, tem realizado “reformas para atrair investimentos “, “dissipou a corrupção sistémica que existia no país” e tornou o Brasil o sétimo país mais digitalizado do mundo.

“A economia voltou a crescer. A pobreza aumentou em todo o mundo devido ao impacto da pandemia. No Brasil, ela já começou a cair de forma acentuada”
Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

Ultrapassando largamente os 15 minutos atribuídos a cada orador, Bolsonaro não poupou nas palavras e ainda elogiou o trabalho da sua equipa na preservação do ecossistema da Amazónia.

“Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, exatamente como quando o Brasil foi descoberto, em 1500. Na Amazónia brasileira — uma área equivalente à Europa Ocidental —, mais de 80% da floresta permanece intocada, ao contrário do que é noticiado pelos grandes órgãos de informação nacional e internacional.”

“Guerra suicida contra a natureza”

Guterres não deixou escapar o momento para, pela enésima vez, abordar o tema que tem sido uma das suas prioridades, desde o primeiro dia em funções, em Nova Iorque: as alterações climáticas.

“Há outra batalha que devemos terminar”, alertou. “A nossa guerra suicida contra a natureza. A crise climática é a questão definidora do nosso tempo. Deve ser a primeira prioridade de todos os governos e organizações multilaterais. E, no entanto, a ação climática está a ser colocada em segundo plano – apesar do apoio público esmagador em todo o mundo.”

O antigo primeiro-ministro português recordou que os países estão comprometidos a reduzir em 45% as emissões globais de gases com efeito estufa até 2030, mas que essas emissões estão a aumentar a níveis recorde, a caminho dos 14%, esta década. “Temos encontro marcado com o desastre climático”, disse Guterres. “Recentemente, vi-o com os meus próprios olhos no Paquistão.”

Este país do sueste asiático é um contribuinte residual para o aquecimento global, mas desde junho está sob fortes inundações sem precedentes, que já submergiram um terço do seu território. “Enquanto isso, a indústria de combustíveis fósseis está a banquetear-se com centenas de milhões de dólares em subsídios e lucros inesperados, ao passo que os orçamentos das famílias encolhem e o nosso planeta queima”, criticou Guterres. “O nosso mundo é viciado em combustíveis fósseis. É hora de uma intervenção.”

“Os poluidores devem pagar. Hoje, peço a todas as economias desenvolvidas que tributem os lucros inesperados das empresas de combustíveis fósseis.”
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas

Para esta terça-feira, estão previstos 34 intervenções na Assembleia-Geral. O período da manhã terminou com palavras de grande preocupação, pela boca do Presidente francês. “Hoje temos de fazer uma escolha simples, no fundo. A guerra ou a paz”, disse Emmanuel Macron.

À mesma hora, era esperada uma intervenção de Vladimir Putin, em Moscovo, sobre a realização de referendos nas zonas controladas pela Rússia na Ucrânia. Já em Nova Iorque, Macron, que desde a invasão russa tem sido dos dirigentes mundiais que mais têm procurado empreender um diálogo com Moscovo, considerou essas consultas “uma paródia”. E concluiu: “A soberania da Ucrânia é crucial”.

(FOTO António Guterres intervém no debate inaugural da 77ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque FLICKR UNITED NATIONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

O indisfarçável incómodo dos súbditos caribenhos em relação ao chefe de Estado sentado em Londres

Carlos III terá um grande desafio a milhares de quilómetros de distância do Palácio de Buckingham. Na região das Caraíbas, vários países que o reconhecem como chefe de Estado contestam, cada vez mais, esse vínculo e defendem a opção pela república. Nos últimos anos, casos como o assassínio de George Floyd, nos Estados Unidos, ou visitas reais desastradas aos territórios contribuíram para esse sentimento. Ao Expresso, um professor jamaicano diz que no país se olha para a monarquia britânica como “um fardo insultuoso explicitamente racista”, que não trouxe “nada de bom”

Mapa dos países membros da Commonwealth BRITANNICA

Ao longo da História, a primazia de alguns poderes políticos sobre grandes extensões geográficas cunhou, na terminologia das relações internacionais, a expressão “império onde o sol nunca se põe”. O rótulo chegou a aplicar-se ao império britânico, com domínios, colónias, protetorados, mandatos e territórios governados ou administrados por Londres desde o Canadá até à Nova Zelândia.

O império não resistiu aos ventos da descolonização, mas não erodiu completamente. Hoje, a Commonwealth — originalmente denominada Comunidade Britânica de Nações — é um espaço de cooperação atrativo, que integra 56 países, de colonização britânica e não só. Os francófonos Gabão e Togo foram as últimas adesões, em junho de 2022. O lusófono Moçambique aderiu em 1995.

No caso específico de 14 membros, há uma ligação umbilical que se mantém com a antiga metrópole e que não se rompeu com a independência desses territórios: continuam a reconhecer o monarca britânico como seu chefe de Estado.

14 PAÍSES SÚBDITOS

  • AMÉRICAS E CARAÍBAS (9): Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Canadá, Granada, Jamaica, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas.
  • PACÍFICO (5): Austrália, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão e Tuvalu.

A substituição no trono britânico de Isabel II — uma líder respeitada — por Carlos III — uma incógnita — está a agitar alguns desses países, que, nos últimos anos, vêm expressando posições antimonárquicas e sonhos republicanos. Esses desejos são especialmente vocais nos oito Estados súbditos na região das Caraíbas, a começar pela Jamaica.

“A morte de Isabel II vai acelerar um diálogo crescente e, em última instância, uma rutura prometida com a coroa britânica enquanto chefe de Estado jamaicano”, defende ao Expresso Jahlani Niaah, professor na Universidade de West Indies, sediada em Kingston (Jamaica).

“Há críticas crescentes dos nacionalistas caribenhos sobre as razões que levaram cidadãos que passaram por histórias de exploração e opressão colonial às mãos dos britânicos a decidirem, voluntariamente, ficar em segundo plano em relação a uma instituição racista representada pela coroa pelo tratamento dado a povos não europeus.”

No dia seguinte à morte de Isabel II, “The Gleaner”, um dos principais jornais da Jamaica, noticiava em manchete: “A morte da rainha é o fim de uma era” e “vai facilitar a rutura da Jamaica com a monarquia”.

No país de Bob Marley, há muito que a submissão ao rei de Londres deixou de ser uma questão meramente académica. A 7 de junho deste ano, Marlene Malahoo Forte, a ministra dos Assuntos Legais e Constitucionais, informou que o processo de transição do país para uma república “começou formalmente”, com a formação de um Comité de Reforma Constitucional, que inclui membros da oposição.

Mal haja acordo no Parlamento, o assunto será submetido a referendo popular. As autoridades de Kingston querem concluir o processo a tempo das eleições gerais previstas para 2025.

Um farol chamado Barbados

“A decisão tomada em 2021 pelo Estado irmão de Barbados, tradicionalmente mais ligado à cultura britânica [era chamado “Little England”], no sentido de remover a rainha [da chefia de Estado], amplificou o debate”, continua Niaah. “E deixou antever ações a nível regional em torno do absurdo que é a coroa e a missão civilizadora da Grã-Bretanha por via de ter um chefe simbólico a morar no Palácio de Buckingham e de haver assuntos de Estado a precisar de aprovação desse gabinete.”

A 6 de outubro de 2021, uma emenda constitucional aprovada por unanimidade no Parlamento de Barbados transferiu para um recém-criado Presidente as competências até então nas mãos do governador-geral do território. Independente do Reino Unido desde 1966, Barbados tornou-se uma república, como já o são, na região, Guiana, Dominica e Trinidad e Tobago.

No mês seguinte, o príncipe Carlos marcou presença na tomada de posse da primeira Presidente de Barbados, Sandra Mason, numa cerimónia em Bridgetown. No uso da palavra, pôs o dedo na ferida: “Desde os dias mais sombrios do nosso passado e da terrível atrocidade da escravatura, que mancha para sempre a nossa história, o povo desta ilha forjou o seu caminho com extraordinária coragem”.

“O passar das décadas ensinou-nos que chegou o tempo de São Cristóvão e Névis rever o seu sistema de governo monárquico e começar o diálogo para avançarmos para um novo estatuto”

Shawn Richards
vice-primeiro-ministro de São Cristóvão e Névis, a 24 de abril de 2022

Para os povos das Caraíbas cujo chefe de Estado é o monarca britânico, esta subserviência em nada corresponde às suas atuais necessidades e aspirações. Igualmente, a instituição tem falhado em tomar medidas que compensem os povos, de alguma forma, pelo histórico papel da coroa no tráfico de escravos.

“Há uma noção comum de que estes são Estados anões e imaturos e que são incapazes de se autogovernarem”, diz Jahlani Niaah. “Mais importante ainda, o soberano permaneceu impassível perante a necessidade de assumir a responsabilidade pelo sofrimento prolongado dos povos coloniais, recusou envolver-se em qualquer forma de justiça reparadora e devolver objetos do património cultural.”

Comparação com George Floyd

No rasto da Jamaica, também o arquipélago de Antígua e Barbuda anunciou recentemente a intenção de convocar um referendo à possibilidade de se tornar uma república. “Provavelmente nos próximos três anos”, disse o primeiro-ministro Gaston Browne já após a morte de Isabel II. “Não se trata de um ato de hostilidade”, explicou, “mas a etapa final para completar o círculo da independência, para assegurarmos que somos uma nação verdadeiramente soberana”.

Niaah desvenda o porquê deste crescente incómodo caribenho: “A distração que representa a vergonhosa exibição de opulência extraída de legados roubados, apresentados como laços empáticos para com uma comunidade [Commonwealth], está a ser cada vez mais encarada com menos ignorância e mais como uma marca à volta do nosso pescoço, um fardo insultuoso explicitamente racista que não nos trouxe nada de bom”.

O professor recua até 2020 quando, nos Estados Unidos, a morte de um negro asfixiado pelo joelho de um polícia teve repercussão mundial. Na Jamaica, o caso voltou os holofotes para uma insígnia do governador-geral, com a imagem de S. Miguel Arcanjo a pisar Satanás, que surge caracterizado em tudo parecido a um homem negro.

Esta polémica, “ao surgir na esteira do caso George Floyd e do movimento #Blacklivesmatter [nos EUA], desencadeou mais desdém por parte dos locais em relação à flagrante audácia dos legados racistas sufocantes que os laços com o Reino Unido representam”.

O governador-geral Patrick Allen comprometeu-se a não mais usar a medalha de honra da Ordem de São Miguel e de São Jorge, que lhe tinha sido presenteada por Isabel II. Houve mesmo apelos para que a insígnia fosse redesenhada.

A realeza britânica é hoje a face visível de um passado colonial que os caribenhos querem esquecer, e nem as gerações mais jovens não escapam ao rótulo. Este ano, dois casais reais perceberam-no da pior forma. Em março, os duques de Cambridge, William e Kate, realizaram um périplo por Belize, Bahamas e Jamaica. No mês seguinte, os condes de Wessex, Eduardo e Sofia, deslocaram-se a Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Antígua e Barbuda.

O pretexto das visitas foi a comemoração do Jubileu de Platina de Isabel II — o 70.º aniversário da sua coroação. Mas estas ofensivas de charme foram percecionadas por muitos locais como manifestações de superioridade e transformaram-se em oportunidades para expressarem a revolta.

À chegada ao Belize, o neto de Isabel II e a mulher viram ser cancelado o primeiro ponto do programa — a visita à aldeia de Indian Creek, para visitar uma fazenda de cacau —, perante a indignação de residentes. “Não queremos que eles aterrem na nossa terra, é essa a mensagem que queremos enviar”, disse Sebastian Shol, o chefe da aldeia, citado pelo jornal britânico “Daily Mail”.

O Belize é outro país que pode vir a dispensar o chefe de Estado instalado em Londres. As autoridades já anunciaram a intenção de realizar uma revisão constitucional e, em março, no rasto da visita real, o ministro da Função Pública, Reforma Constitucional e Política, Henry Charles Usher, afirmou no Parlamento: “Talvez seja hora do Belize dar o próximo passo para realmente possuir a independência. É um assunto que o povo de Belize deve decidir.”

Um possível efeito dominó

Por ser, entre os oito, o Estado maior e o mais populoso, a Jamaica é a referência. Se optar pela república, é possível que origine um efeito dominó e leve outros Estados caribenhos a desvincularem-se da coroa britânica.

Nas vésperas da visita dos duques de Cambridge, 100 personalidades do país divulgaram uma carta aberta exigindo a Londres um pedido de desculpa e o pagamento de compensações pelos anos de escravatura e fazendo um alerta ao neto de Isabel II, que é hoje o próximo na linha de sucessão a Carlos III: “Durante os seus 70 anos no trono, a sua avó não fez nada para reparar e expiar o sofrimento dos nossos antepassados que ocorreu durante o seu reinado e/ou durante todo o período de tráfico britânico de africanos, escravatura, servidão e colonização.”

Durante a escala de William e Kate na Jamaica, houve mais momentos que mexeram com a sensibilidade dos jamaicanos ansiosos por virar a página da relação com o Reino Unido. Os príncipes foram especialmente criticados por terem cumprimentado locais através de vedações em arame, durante a sua deslocação a Trenchtown, uma favela nos subúrbios de Kingston onde nasceram e viveram grandes cantores de reggae.

Igualmente, também o desfile de pé na caixa aberta de um Land Rover pareceu uma recriação de visitas de Isabel II e da nostalgia do passado colonial. Nas ruas, o casal foi acusado de beneficiar do “sangue, suor e lágrimas” de escravos.

Eduardo e Sofia também ouviram o que não queriam em Antígua e Barbuda. O primeiro-ministro Gaston Browne pediu-lhes que usassem a sua “influência diplomática” para que fosse feita “justiça reparadora”. E explicou o porquê de não haver “cartazes no ar” a recebê-los. “Terão notado que aqui não há protestos”, disse, acrescentando que o país acredita numa “discussão aberta e muito objetiva”.

“Continuamos a ter a rainha como chefe de Estado, mas terei de dizer que aspiramos, em algum momento, a tornarmos-nos uma república”, disse Browne. Viria a público que o filho mais novo de Isabel II disse não ter tomado notas dos pedidos de Browne.

Já na escala em São Vicente e Granadinas, houve mesmo cartazes no ar a exigir medidas compensatórias.

Mais recentemente, no Reino Unido, o chamado escândalo Windrush contribuiu para cavar ainda mais o fosso entre os súbditos caribenhos e a coroa. Por força do endurecimento da política de imigração no Reino Unido, aprovado em 2012, centenas de descendentes da chamada geração Windrush foram erradamente detidos, deportados ou viram direitos serem-lhe negados.

Tratava-se de caribenhos que chegaram ao Reino Unido entre 1948 e 1971, a convite do governo britânico, para suprirem carências no mercado de trabalho justificadas com a II Guerra Mundial. Em junho de 1948, cerca de 500 jamaicanos chegaram a bordo do navio MV Empire Windrush, que atracou na cidade inglesa de Tilbury. O rótulo aplicado a esta geração vem daí.

Para acentuar o sentimento discriminatório, em 2003 o Reino Unido passou a exigir vistos aos jamaicanos e, consequentemente, o pagamento de taxas de entrada incomportáveis. Para os caribenhos, foi a confirmação de que a suposta relação especial é afinal inútil.

A coroa “está a ser cada vez mais percecionada por todo o Caribe [outra designação para Caraíbas] como uma instituição ofensiva que investe pouco em fazer a coisa certa para aqueles que são vítimas do seu poder”, conclui o professor Niaah. “Esta é a instituição britânica chave. A política britânica usa a Coroa como instrumento para tirar o pulso aos reinos sob hegemonia britânica, medir o sucesso da violência polida da sua missão civilizadora.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui