Um apelo a Ronaldo, Messi e companhia: “Se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar, será uma oportunidade perdida”

As críticas à volta da atribuição do próximo Mundial ao Catar colocam ainda mais os holofotes sobre os futebolistas que irão competir nos luxuosos relvados do emirado. “Os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem” sobre o trabalho escravo dos migrantes, as restrições impostas às mulheres ou a rejeição dos homossexuais, defende Tim Sparv, antigo futebolista finlandês, em entrevista à Tribuna Expresso. Sparv pôs a mão na consciência e tornou-se uma voz em defesa da moralidade no desporto

Nos últimos quinze anos, dois dos maiores eventos desportivos à escala global foram atribuídos, por quatro vezes, a países autoritários, com a ficha suja ao nível do respeito pelos direitos e liberdades individuais.

A China organizou os Jogos Olímpicos de verão em 2008 e a edição de inverno de fevereiro passado, ambos em Pequim. Já a Rússia acolheu os Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e o Campeonato do Mundo da FIFA de 2018.

Este ano, ao realizar o Mundial de futebol, o Catar soma-se à lista exclusiva de países com capacidade para organizar, por si só, um evento de grande dimensão. Sem créditos na modalidade, o pequeno emirado do Golfo Pérsico — pouco maior do que o distrito de Beja e com menos de três milhões de habitantes — beneficia de um orçamento suficientemente ilimitado para deslumbrar o mundo do desporto.

Haverá uma sombra a ofuscar todo o glamour: o tratamento escravo dado aos imigrantes, as restrições dos direitos das mulheres e a rejeição à comunidade LGBTQIA+ levantam questões morais que responsabilizam, neste caso, a FIFA e não deixam indiferentes muitos profissionais do desporto.

Um prémio para ditadores

“Atribuir um grande torneio, como o Mundial de futebol, devia ser um prémio por um registo positivo ao nível dos direitos humanos. Devia existir um conjunto de critérios na hora de dar este tipo de eventos. De outra forma, vamos pôr vidas humanas em risco e vamos recompensar ditadores e países que não o merecem”, defende o antigo futebolista finlandês Tim Sparv, em entrevista à Tribuna Expresso.

“Para mim, este tipo de organizações devem compensar bons comportamentos e atitudes, pessoas focadas na igualdade e em valores positivos. Não pode ser suficiente montar um bom espetáculo durante um mês. É necessário algo mais”, sublinha.

Tim Sparv foi o capitão da seleção da Finlândia no Euro 2020, o primeiro Europeu em que a equipa nórdica participou, em 2021 JOOSEP MARTINSON / GETTY IMAGES

O internacional finlandês, que arrumou as chuteiras no final do ano passado, aos 34 anos, é hoje uma voz ativa na denúncia dos problemas laborais no Catar e no apelo para que os agentes desportivos se envolvam.

“Os atletas podem ter um grande impacto na sociedade, mas muitas vezes isso não acontece. Estamos muito envolvidos na profissão e não vemos as possibilidades que temos, de falarmos com crianças e jovens e de os influenciarmos, de passarmos mensagens positivas, contra o racismo, a favor da igualdade, sobre os migrantes, a importância da leitura, pode ser sobre tantas coisas…”, diz.

“Mas é preciso que seja algo em que acreditemos e que nos apaixone. Chegou um pouco tarde na minha carreira, mas estou feliz por fazer algo.”

Viver na bolha, sem olhar o mundo

Sparv despertou para o problema dos abusos dos direitos humanos no Catar em 2019, quando a seleção finlandesa tinha um estágio agendado nesse país do Golfo. Riku Riski, um companheiro de equipa, alegou razões éticas e recusou fazer a viagem.

“Este episódio fez-me questionar: ‘O que se passa? O que não estou a ver?’ Eu sabia que o Catar não era propriamente como a Finlândia, mas vivia na minha bolha, demasiado concentrado em ser futebolista acima de qualquer coisa, em vez de usar a minha condição de capitão da seleção nacional para consciencializar para determinados assuntos.”

Antes de um jogo contra a Turquia, Haaland, estrela da seleção norueguesa e do Manchester City, usa uma ‘t-shirt’ com a inscrição “Direitos humanos, dentro e fora do campo” JORGE GUERRERO / AFP / GETTY IMAGES

Se qualquer futebolista internacional, mesmo em países sem grande projeção na modalidade, tem potencialmente uma audiência de milhões de adeptos a escutá-lo, esse ativo é muitas vezes desperdiçado pelos maiores craques.

“Nestas grandes competições, os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem destes assuntos. Ficarei muito desiludido se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar. Será uma oportunidade perdida.”

A diplomacia das t-shirts

Tim acredita que haverá equipas ou jogadores individualmente a colocarem o dedo na ferida. Anima-o iniciativas como as das seleções da Noruega, Alemanha e Países Baixos — as duas últimas qualificadas para o Catar — que, em jogos de qualificação para o torneio, recorreram à “diplomacia da t-shirt” para difundir mensagens importantes.

“Direitos humanos dentro e fora do campo”, defenderam os noruegueses em camisolas usadas no aquecimento do jogo contra Gibraltar, a 24 de março de 2021. No dia seguinte, antes de defrontarem a Islândia, os jogadores alemães apresentarem-se em formação com a expressão “direitos humanos” estampada em t-shirts pretas. Dias depois, foi a vez dos neerlandeses juntaram-se à campanha com o slogan “Futebol apoia a mudança”.

Sem adesão da equipa adversária (Hungria), os jogadores ingleses protestam contra o racismo, na Puskas Arena de Budapeste NICK POTTS / GETTY IMAGES

Em março deste ano, Harry Kane, o capitão da seleção inglesa, revelou que os jogadores tinham-se reunido para discutir a questão dos direitos humanos no Catar. E garantiu que os ingleses irão usar as plataformas ao seu dispor para aumentar a consciencialização sobre o assunto.

“É importante perceber que, antes de tudo, enquanto jogadores, nós não escolhemos onde este Campeonato Mundial vai ter lugar”, disse Kane. “Mas isto acabou por contribuir para lançar o foco sobre questões importantes que poderiam não ter vindo à tona se o Mundial não se realizasse ali.”

Ainda o exemplo de Kaepernick

A equipa inglesa tem sido das que, de forma mais convicta, continua, antes de cada partida, a colocar o “joelho no chão”, num protesto antirracismo criado por Colin Kaepernick. Em 2016, este jogador de futebol americano ajoelhou-se durante a execução do hino dos Estados Unidos, em protesto contra a violência racial no país. O gesto acabou com a carreira do futebolista, mas continua a inspirar desportistas em todo o mundo.

“Tenho a certeza que alguém vai usar o Mundial no Catar para fazer algum tipo de campanha, alguma ação focada na situação dos trabalhadores migrantes, na igualdade, nos direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQ”, diz Sparv.

“Estou bastante confiante que alguém diga: ‘Ok, esta é uma grande possibilidade de falarmos sobre estes assuntos, de sermos criativos e fazermos algo acontecer, dentro ou fora do campo, antes ou depois dos jogos’. E os adeptos também têm a possibilidade de desempenhar um papel.”

Tim Sparv abandonou os relvados em dezembro de 2021, aos 34 anos, encerrando uma carreira de quinze anos como futebolista profissional LARS RONBOG / GETTY IMAGES

Sparv acredita no poder da palavra. Além das entrevistas aos órgãos de informação, tem escrito artigos incitando os protagonistas do futebol a não ficarem indiferentes.

Já este ano, deslocou-se ao Catar, numa viagem organizada pela Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (FIFPro), o que lhe possibilitou o contacto com migrantes, deu-lhe um conhecimento mais amplo do problema e conferiu-lhe maior legitimidade para falar.

Como tratar a Rússia?

O finlandês não se mostra partidário do boicote a eventos desportivos realizados em países alvo de algum tipo de desaprovação internacional. Mas aceita que possa haver exceções, e toma como exemplo a invasão russa da Ucrânia.

“Boicotar a Rússia, impedindo-a de participar em eventos desportivos internacionais, é a única coisa a fazer. É um pouco difícil ver como isso afeta os atletas russos individualmente. Eles deviam ter a possibilidade de continuar com as suas carreiras, não usando a bandeira da Rússia, claro. Mas no caso de atletas que apoiem a guerra, façam a apologia de Vladimir Putin ou usem a letra Z, penso que não deverão ter hipótese de participar em competições internacionais.”

Uma bandeira com o “Z” de apoio à invasão russa da Ucrânia é desfraldada durante um jogo do campeonato sérvio ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

A agressão da Rússia à Ucrânia levou países vizinhos a recearem passar por igual pesadelo. A Finlândia, em particular, pôs fim à sua neutralidade histórica e pediu adesão à NATO.

Sparv, que vive atualmente em Praga, a capital da República Checa, de onde é natural a companheira, fez a sua parte e entregou as chaves do seu apartamento, na cidade de Vaasa (na costa ocidental), a uma família ucraniana composta por mãe e dois filhos.

“O pai ficou na Ucrânia, mas a família está bem, se é que é possível dizê-lo desta forma. As crianças gostam de futebol, então levei-as a um clube local, em Vaasa. Já estão a praticar e a fazer novos amigos. Para mim, foi uma forma concreta de ajudar alguém. Senti-me mesmo bem.”

(FOTO PRINCIPAL “Direitos humanos”, lê-se nas ‘t-shirts’ da seleção da Alemanha, num jogo de qualificação para o Mundial do Catar TOBIAS SCHWARZ / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 4 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *