Israelitas árabes podem desbloquear o impasse, resta vencerem a apatia, a descrença nos políticos e o sentimento de discriminação

A minoria árabe de Israel corresponde a cerca de 20% da população, mas é apenas representada por 8% dos deputados no Parlamento. Tem, por isso, um potencial de crescimento que poderia beneficiá-la e interromper o ciclo de crises políticas que leva Israel, esta terça-feira, a realizar as quintas eleições legislativas dos últimos três anos e meio. Várias razões contribuem para que os israelitas árabes optem por ficar em casa, a começar pelas disputas entre os seus próprios partidos

Nos últimos quatro anos, em especial, os israelitas habituaram-se a ir às urnas com equipamento extra. Além do boletim de voto e do envelope onde o inserem para depois o depositarem na urna, levam também consigo — em sentido figurado — a máquina de calcular.

Num país que sempre teve governos de coligação desde que é independente, há mais de 70 anos, não basta que os eleitores escolham um partido. Há também que perceber que outras forças poderão ser hipótese para formar uma coligação de Governo.

Esta terça-feira, 6.788.804 israelitas estão convocados para votar nas quintas eleições legislativas dos últimos três anos e meio. Todas as sondagens realizadas desde o início da campanha eleitoral apontam um vencedor antecipado: o partido Likud (direita), liderado pelo antigo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

“Bibi”, como também é conhecido, é o israelita que mais tempo desempenhou o cargo de primeiro-ministro. Em 2019, chefiava o Governo quando foi acusado de corrupção, na justiça. O seu julgamento — cujo início foi objeto de sucessivos adiamentos — ainda decorre.

A circunstância de ser o político mais popular em Israel combinada com os problemas na justiça polarizou os corredores da política: de um lado, partidos que lhe são indefetíveis, do outro formações para quem é impensável apoiá-lo enquanto não resolver os seus problemas na justiça. Incluem-se neste grupo antigos aliados.

Da mesma forma que preveem a vitória do Likud, as sondagens profetizam que nem o bloco de partidos pró-Netanyahu nem aquele que se lhe opõe conseguirá uma maioria de 61 deputados no Parlamento (Knesset, com 120 membros).

A incógnita árabe

Na aritmética dos votos, e na sua tradução em deputados, há um sector da sociedade israelita sistematicamente sub-representado no Parlamento, por comparação ao seu peso demográfico — a minoria árabe.

Em caso de forte mobilização, o voto árabe pode contribuir de forma decisiva para desbloquear o impasse político que se arrasta desde 2019, favorecendo a formação de uma aliança anti-Netanyahu. Já uma fraca participação poderá estender a passadeira para o regresso do ex-primeiro-ministro à cadeira do poder.

“Sem dúvida, o poder está nas mãos dos cidadãos árabes”, diz ao Expresso Arik Rudnitzky, investigador no Israel Democracy Institute, de Jerusalém. “Não me ocorre uma única campanha eleitoral que dependa tanto do voto árabe como esta.”

Rudnitzky estuda padrões de comportamento dos eleitores árabes ao longo de décadas. Diz que “o número mágico” que poderá transformar os árabes na chave para o fim do ciclo de crises políticas no país é uma taxa de afluência a rondar os 55%. Acrescenta: “60% seria inacreditável, uma conquista notável.”

Uma sondagem publicada pelo Israel Democracy Institute na passada quinta-feira revelou que 70% dos eleitores árabes planeiam ir votar: 50,5% “têm a certeza” de que irão e 19,4% “pensam” fazê-lo. “Afinal de contas, o resultado será determinado pela capacidade dos partidos árabes de se organizarem no dia das eleições e de galvanizarem o seu público para votar”, defende a instituição, num comentário à sondagem.

Mais violência, menos votos

À luz da tendência de evolução da participação eleitoral da minoria árabe desde a fundação de Israel, a fasquia dos 55% pode ser uma quimera.

1949-1973 — A média de afluência foi de 83,8%, superior aos 81,4% nacionais.

1977-1999 — Neste período marcado pela Primeira Intifada (revolta palestiniana na Cisjordânia e na Faixa e Gaza), a média caiu para 73,4% e a nacional ficou nos 78,9%.

2003-2021 — A participação ressente-se da Segunda Intifada e de três guerras na Faixa de Gaza e desce para os 57%, enquanto a média nacional foi de 66%.

Esta terça-feira, irão a votos três listas árabes, em representação de quatro partidos que têm sido dominantes entre os israelitas árabes desde a criação do país.

RA’AM
A Lista Árabe Unida tem uma abordagem religiosa conservadora e representa o movimento islâmico no Knesset. Acredita que participar numa coligação de Governo traz benefícios. Foi nesse espírito que se tornou, após as eleições de 23 de março de 2021, o primeiro partido árabe a integrar um Executivo em Israel.

“Foi histórico”, comenta Rudnitzky. O Ra’am teve “algumas conquistas em termos de alocações orçamentais e medidas para responder ao problema da criminalidade [em alta nas cidades árabes] e à situação de comunidades beduínas no Negev [não reconhecidas pelo Estado]. Penso que houve boas intenções, tanto da parte do partido como do Governo. O problema é que não houve tempo suficiente [o Executivo durou pouco mais de um ano]. E a coligação não era homogénea [composta por oito partidos anti-Netanyahu, da esquerda tradicional à direita sionista]. Houve boas intenções, mas não houve resultados significativos no terreno que satisfizessem as expectativas dos cidadãos árabes.”

HADASH/TA’AL
Trata-se da fusão entre a Frente Democrática para a Paz e Igualdade (que engloba o Partido Comunista) — um partido árabe judeu não sionista que acredita na cooperação entre árabes e judeus — e o Movimento Árabe para a Mudança — um partido nacionalista moderado que procura influenciar sem ter de integrar o Governo.

BALAD
A Aliança Democrática Nacional representa a orientação nacionalista palestiniana. Recusa-se a participar no Executivo, argumentando não ver diferenças entre os blocos pró e anti-Netanyahu em matéria de políticas destinadas aos árabes israelitas e aos palestinianos. Apela à abolição da natureza sionista de Israel e defende que o país deixe de ser um Estado judeu e passe a ser um Estado para todos os seus cidadãos.

Quando, em 2015, pela primeira vez, estes quatro partidos foram a votos numa Lista Única fizeram história: elegeram 13 deputados e passaram a ser a terceira bancada mais numerosa no Knesset. Nesse ano, votaram mais de 60% dos eleitores árabes. “Provaram que o todo é maior do que a soma das partes”, comenta Rudnitzky.

Os bons resultados da opção pela união foram confirmados nas eleições de setembro de 2019 e de março de 2020 quando a Lista Única elegeu 13 e 15 deputados, respetivamente, com taxas de participação de 59,2% e 64,8%.

Inversamente, quando concorreram cada um por si, o entusiasmo do eleitorado árabe ressentiu-se e a representação parlamentar decresceu. Nas últimas eleições, em 2021, a participação árabe cifrou-se em 44,6%, com os 10 deputados eleitos a corresponderem a apenas 8% dos assentos no Knesset, muito longe dos 20% de árabes que vivem em Israel.

POPULAÇÃO DE ISRAEL (2020)

  • Total: 9.289.760
  • Judeus: 6.873.910
  • Árabes: 1,957.270

As sondagens para as eleições de terça-feira não são simpáticas para os partidos árabes. Preveem que a Lista Árabe Unida (Ra’am) eleja quatro deputados e a aliança Hadash-Ta’al consiga outros quatro. O Balad não deverá conseguir ultrapassar a fasquia de 3,25%, necessária para garantir uma bancada parlamentar.

Neste contexto, a votação dos árabes torna-se ainda mais crucial já que as sondagens atribuem também um forte aumento ao Partido Religioso Sionista (extremista), que poderá servir de muleta a Netanyahu nas contas visando a maioria de 61 deputados.

Várias razões contribuem, à partida, para desmobilizar o eleitorado árabe, mesmo numa altura em que poderiam fazer a diferença.

DIVERGÊNCIAS ENTRE PARTIDOS — A instabilidade política em Israel — traduzida em cinco eleições legislativas em 43 meses — contagia também os partidos árabes, levando-os a oscilar entre a união e a divisão. Disputas pessoais e desacordos políticos entre os líderes partidários “desmoralizaram as populações árabes”, já castigadas por um quotidiano de dificuldades, agravado nos últimos anos pela subida da criminalidade, comenta Rudnitzky. Em Israel, as comunidades árabes tendem a ser mais pobres e menos instruídas do que as judias e expressam mais razões de queixa, dizendo-se alvo de discriminação no acesso à habitação, empregos e serviços públicos.

VIOLÊNCIA NOS TERRITÓRIOS — Apesar de serem cidadãos do Estado de Israel, os israelitas árabes são “extremamente sensíveis” em relação ao que se passa nos territórios palestinianos, seja porque têm laços familiares com quem lá vive, seja por uma questão de identidade. Desde meio de outubro que a cidade de Nablus, na Cisjordânia, está cercada por forças israelitas numa operação de repressão ao grupo Covil do Leão, responsável por ataques contra militares judeus.

Para Rudnitzky, a situação nos territórios “é um fator decisivo” que condiciona o estado de espírito dos israelitas árabes. “É um problema. Lembra-me 1996, quando [o primeiro-ministro] Shimon Peres tentou mobilizar os eleitores árabes para que votassem nele [contra Netanyahu] e depois [a um mês das eleições] Israel desencadeou uma operação militar no Líbano [“Vinhas da Ira”, contra o Hezbollah] que resultou na morte de dezenas de libaneses inocentes. Esta operação na Cisjordânia, os acontecimentos de maio de 2021 [os distúrbios no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental] e os confrontos diretos entre Israel e o Hamas, tudo isto influencia, afeta e desencoraja os cidadãos árabes.”

Cidadãos com estatuto especial

Muitos israelitas árabes sentiram como uma facada as alterações feitas, em 2018, à chamada Lei da Nacionalidade. Essa lei básica consagrou o Estado de Israel como “nação do povo judeu”, concedeu o direito à autodeterminação “em exclusivo” aos judeus e atribuiu à língua árabe um “estatuto especial”, por comparação ao hebraico, que passou a ser “a língua do Estado”.

“É outro fator que avoluma a intenção de não votar”, diz Rudnitzky. “Quando a situação geral no sistema político árabe já não é boa, soma-se a isso a existência de legislação do Estado que discrimina. É outro fator que desencoraja os árabes a participarem no jogo político, que sentem que não os representa.”

Vistos como uma espécie de ‘quinta coluna’ por muitos conterrâneos judeus, dada a natural solidariedade para com os palestinianos dos territórios ocupados por Israel na guerra de 1967 (Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental), os árabes de Israel somam esse desconforto à fadiga eleitoral comum a todos os cidadãos, cansados de irem às urnas sem perspetiva de Governo estável e duradouro.

Seja por apatia, desinteresse ou boicote, a comunidade que tem potencial para dar novo rumo político a Israel não tem esperança. E isso pode colocar o país na rota das sextas eleições. Ou então voltar a erguer Netanyahu ao poder, à frente de um Executivo integrado por fações religiosas ultraortodoxas e extremistas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui

Da Amazon para as frentes de batalha, os drones estão a moldar a forma como se faz a guerra

De forma crescente, os drones têm assumido protagonismo em contextos de guerra. O conflito na Ucrânia é o mais recente exemplo. Ágeis, sofisticados e polivalentes, os veículos aéreos não tripulados — mesmo que comprados em sites tão populares como a Amazon — proliferam em ações de vigilância, de combate ou suicidas. Ao Expresso, um investigador da área alerta: “Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone, que permite impedir ou neutralizar um drone, está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”

Na era das ciberguerras, os drones são os guerreiros perfeitos. Matam sem remorsos, obedecem sem questionar e nunca denunciam os chefes.” Esta frase foi escrita há dez anos pelo uruguaio Eduardo Galeano, no livro “Os Filhos dos Dias” (Antígona, 2020). Nas últimas semanas, três contendas internacionais parecem confirmar o perfil guerreiro dos veículos aéreos não tripulados. E é tão simples como isto: “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”.

Na guerra da Ucrânia, a Rússia — apanhada de surpresa pela contraofensiva de Kiev sobre territórios que Moscovo já tinha formalmente anexado — retaliou com enxames de drones sobre cidades ucranianas distantes da linha da frente, incluindo a capital.

Não muito longe, no Irão, o regime — acossado há mais de um mês por manifestações populares desencadeadas pela morte de uma mulher curda às mãos da polícia — recorreu a drones para bombardear grupos armados curdos, baseados no Curdistão iraquiano, a quem acusou de instigar os protestos.

Ainda na região do Médio Oriente, sexta-feira passada, o Governo do Iémen intercetou drones armados disparados pelos rebeldes huthis na direção de um petroleiro que se preparava para atracar num terminal no sul do país.

Novas dinâmicas no campo de batalha

De forma crescente, os drones têm vindo a assumir protagonismo em contextos bélicos. Ainda que não vão ao ponto de mudar totalmente a forma como se faz a guerra,“claramente, os drones introduzem novas dinâmicas”, diz ao Expresso o investigador Bruno Oliveira Martins, do Peace Research Institute Oslo (PRIO), estudioso da temática dos drones. “Estas dinâmicas são multifacetadas”, acrescenta. E exemplifica:

  • Ao alcance dos civis. “Na Ucrânia, por exemplo, grupos de civis, como engenheiros, organizaram-se para desenvolver drones com tecnologia comercial. Com os seus conhecimentos técnicos, colocam os drones ao serviço do exército.”
  • Resistência aos poderosos. “Porque os drones são, em geral, uma tecnologia muito mais barata do que muitas outras armas, exércitos e forças menos poderosas podem oferecer resistência significativa face a adversários mais poderosos.”
  • Novos produtores, novas alianças. “Existe uma nova geopolítica em torno do surgimento de atores internacionais ao nível da produção de armas. Isso faz com que algumas alianças e posicionamentos diplomáticos que reconhecemos no passado não existam totalmente, ou estejam a ser adaptados ou modificados.”

Foi nos anos 90, nos Balcãs, que os drones começaram a ser usados em contexto de guerra, para recolher imagens em tempo real das movimentações no terreno — as chamadas ações de Informação, Vigilância e Reconhecimento (ISR, na sigla em inglês).

Desde então, estes “zangãos” (tradução da palavra inglesa “drones”) tornaram-se mais sofisticados, polivalentes e… ameaçadores.

“Na viragem do milénio, surgiu a ideia de armar os drones, para que não só providenciassem imagens como fosse possível atuar em função desse tipo de informação recolhida”, diz Oliveira Martins, que no PRIO coordena um projeto no valor de 1,2 milhões de euros para investigar a integração de drones no espaço civil na União Europeia.

“Os primeiros drones armados apareceram em Israel e nos Estados Unidos, entre 2000 e 2010. E começaram a ser utilizados em conflitos mais convencionais.” Hoje, são usados como arma letal, essencialmente de três formas:

  1. Drone com míssil
    No grupo de drones armados, o exemplo clássico é aquele que transporta um míssil. Disparado o projétil, o veículo tem capacidade para regressar à origem.
  2. Drone improvisado
    É construído com base em tecnologia comercial, à venda em lojas. “Qualquer pessoa pode comprar um drone na Amazon e depois armá-lo”, diz o perito do PRIO. “Grupos terroristas não estatais armam este tipo de drone com granadas, por exemplo.”
  3. Drone kamikaze
    O próprio drone é a arma. Descartável, é disparado contra um alvo, destruindo-o e destruindo-se, replicando o modus operandi dos pilotos de caça japoneses suicidas na II Guerra Mundial. Este tipo de drone foi muito usado pelo grupo terrorista Daesh (o autodenominado Estado Islâmico) na Síria e no Iraque, e por grupos rebeldes em África. Hoje, “é utilizado abundantemente na Ucrânia”, por ambos os lados.

Se se distinguir entre drones comerciais (para utilização civil) e drones para uso militar, Portugal surge em lugar de destaque num dos rankings. “Há dezenas de países, decerto mais de uma centena, que produzem drones para utilização civil. Portugal tem uma empresa, a Tekever, que é líder europeia ao nível de drones utilizados, por exemplo, para vigilância marítima”, refere Oliveira Martins.

Já quanto aos drones armados, se numa primeira fase os principais produtores eram os Estados Unidos e Israel, “depois, foram surgindo novos produtores que, atualmente, representam uma fatia cada vez maior do mercado: de início a China, depois os Emirados Árabes Unidos, o Irão e a Turquia”.

“Neste momento, Irão e Turquia são quem mais atenção internacional têm atraído, nomeadamente a Turquia. Nos últimos anos tornou-se, praticamente a partir do nada, um país extremamente importante na produção de drones armados.”

Na guerra da Ucrânia, drones turcos e iranianos têm servido em trincheiras opostas. Fabricados na Turquia — que assumiu o papel de mediador entre Moscovo e Kiev —, os drones Bayraktar (porta-estandarte, em turco) foram preciosos, nas primeiras semanas do conflito, para a Ucrânia repelir as ofensivas russas.

Num momento dissonante em relação aos horrores da guerra, um grupo de militares ucranianos protagonizou um bem-humorado vídeo musical de exaltação a esse aliado turco.

Mais recentemente, foram drones kamikaze cuja origem se atribui ao Irão a sobressair no arsenal da Rússia. “No verão de 2022, Teerão transferiu centenas de drones militares para a Rússia, numa tentativa de melhorar a sua baça capacidade ao nível dos drones” de combate, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos drones na Universidade do Minho. Batizados por Moscovo de Geran-2, no Irão são designados por Shahed-136.

“O Irão fabrica drones armados e possui vários modelos de drones de combate que complementam o seu programa de mísseis balísticos. É algo que permite a Teerão compensar as suas forças aéreas relativamente fracas e antiquadas”, diz Eslami.

Em 2019, a República Islâmica promoveu um exercício com drones no Golfo Pérsico intitulado “Rumo a Jerusalém”. O professor iraniano considera esta operação “uma das ações mais provocadoras nos anos recentes. A designação que os responsáveis iranianos deram a este exercício militar transmite a ideia que ‘confrontar Israel’ é uma das funções mais importantes que o Irão confere ao seu programa de drones”.

No conflito ucraniano, nem a Rússia confirma ter comprado drones ao Irão, nem este admite tê-los vendido. Mas um negócio entre estes dois países não seria surpreendente, dado serem os Estados mais castigados com sanções pela comunidade internacional — com a invasão da Ucrânia, a Rússia ultrapassou o Irão.

Acresce que, a 18 de outubro de 2020, expirou o embargo de armas ao Irão decretado pelas Nações Unidas, conforme previsto no acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, assinado cinco anos antes. Isto “eliminou qualquer obstáculo oficial à venda e aquisição de armas entre a Rússia e o Irão”, recorda Eslami.

A forma como Turquia e Irão se tornaram referências no fabrico de drones confirma uma consequência importante desta indústria. “Com o surgimento destes novos produtores, a tecnologia de drones armados democratizou-se. Hoje, é muito mais comum um determinado país conserguir adquirir esta tecnologia pelo simples facto de haver cada vez mais Estados e empresas que podem e estão interessados em vendê-la”, diz Oliveira Martins.

“Quando a produção da tecnologia era praticamente um monopólio entre Israel e os Estados Unidos, basicamente só os países da esfera de alianças e parcerias desses dois tinham acesso à tecnologia. A partir do momento em que mais e mais países, de esferas geopolíticas diferentes, começaram a desenvolver capacidade para produzir drones armados, o número de países com acesso a esses equipamentos cresceu exponencialmente.”

Drones turcos tiveram uma importância significativa na última guerra em torno de Nagorno-Karabakh (em defesa do Azerbaijão), na Líbia (em apoio do Executivo de Trípoli, reconhecido pela ONU) e também na Etiópia (adquiridos pelo Governo, contra as forças da Frente Popular de Libertação do Tigray).

Drones em mãos erradas

Além dos conflitos convencionais, os drones tornaram-se protagonistas também nas mãos de grupos terroristas. “Vimos o Estado Islâmico utilizar largas centenas, senão milhares de drones vendidos pela China”, recorda o investigador do PRIO. “Aponta-se para a existência de cerca de 65 grupos não estatais que utilizam drones armados. Mas esse número pode ser bastante mais elevado.”

Ao arrepio de quaisquer motivações políticas ou ideológicas, drones são usados por grupos de criminalidade organizada, nomeadamente narcotraficantes mexicanos. “À medida que a tecnologia prolifera, fica ao alcance de todo o tipo de grupos e para todo o tipo de utilizações.”

“Enquanto a tecnologia drone é barata e extremamente avançada, desenvolvendo-se a uma velocidade estonteante, a tecnologia antidrone — que permite impedir ou neutralizar um drone — está muito menos desenvolvida e tem imensos problemas ao nível da eficácia”, explica Oliveira Martins. “Ainda não se configura uma resposta adequada ao problema securitário que decorre da entrada em massa de drones no espaço aéreo civil.”

Durante a Administração Obama, nos Estados Unidos, o uso de drones em especial no Paquistão, Iémen e Somália — no âmbito de assassínios seletivos de suspeitos de terrorismo — contribuiu para uma perceção negativa da utilidade destes veículos aéreos, em virtude do número de civis mortos.

Para Oliveira Martins, é indiscutível que “os drones são uma tecnologia mais precisa do que outro tipo de bombas mais poderosas”. Porém, “o nível de precisão dos drones varia bastante, consoante o tipo de drone, da tecnologia utilizada, da capacidade do utilizador ou das condições no terreno”.

“Muitas vezes a precisão não é tão elevada quanto é anunciado. E em virtude da existência de uma narrativa em torno da precisão, a fasquia para se decidir utilizar um drone armado num ataque é hoje mais baixa do que antes. Porque há a ideia de que os drones são mais precisos, então vamos utilizá-los, disparar um míssil, porque temos mais confiança na eficácia desse ataque. E o que verifica quem estuda as consequências dos ataques com drones é que muitas vezes a informação que suporta a decisão para atacar com um drone não é suficientemente forte.”

Tragédias americanas

  • A 12 de dezembro de 2013, durante uma operação de contraterrorismo nos arredores da cidade de Rad’a (centro do Iémen), um drone dos Estados Unidos disparou quatro mísseis Hellfire na direção de um comboio de onze carros e pick-ups. O ataque provocou 12 mortos e 15 feridos, todos civis. Os veículos integravam um cortejo de casamento.
  • A 29 de agosto de 2021, dias após a retirada militar dos Estados Unidos do Afeganistão, um ataque desencadeado por um drone americano, em Cabul, matou dez pessoas, incluindo sete crianças. “A pessoa identificada não era terrorista, nem sequer suspeito”, recorda Oliveira Martins. “Suspeitaram do tipo de comportamento e dos sítios que essa pessoa frequentou e decidiram disparar.”

Nestes dois casos, o drone foi preciso, ainda que a informação que validou os ataques fosse incorreta. Mas, como alertou Eduardo Galeano, o drone “obedeceu sem questionar” e “matou sem remorsos”.

(FOTO Veículo aéreo não tripulado MQ-9 Reaper WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui

John Lennon nasceu há 82 anos. O seu caráter inspira ‘telas de contestação’ por todo o mundo

A promoção da paz tornou-se a maior luta de John Lennon, sobretudo nos últimos anos de vida. Hoje, em territórios onde a paz social é uma miragem, como Hong Kong e Myanmar, cidadãos revoltados contra quem os governa expressam as suas frustrações e aspirações em pequenos papeis coloridos que afixam na via pública. Chamam-lhes ‘paredes Lennon’

Imagine there’s no countries
(Imagina que não há países)

It isn’t hard to do
(Não é difícil faze-lo)

Nothing to kill or die for
(Nada por que matar ou morrer)

And no religion, too
(E também nenhuma religião)

Imagine all the people
(Imagina todas as pessoas)

Livin’ life in peace
(A viver a vida em paz)

(Excerto de “Imagine”, de John Lennon)

Década após década, geração atrás de geração, “Imagine” é uma canção que não perde o seu caráter icónico. Mais de 50 anos depois de ter sido lançado, este tema imortalizado por John Lennon continua a mobilizar vozes dos cinco continentes em apelos uníssonos a um mundo de paz, sem materialismo, religiões ou fronteiras a separar os povos.

Quando este hino ao pacifismo foi lançado, em 1971, já após a separação dos Beatles, o seu autor e intérprete tinha apenas 31 anos. John Winston Lennon faria este domingo 82 anos.

Nascido em Liverpool, a 9 de outubro de 1940, o mais carismático dos fab four ‘sobreviveu’ à própria morte por força da sua música e também do seu espírito pacifista e rebelde, que continua a inspirar sucessivas gerações incomodadas com o curso do mundo. Nos últimos anos, as chamadas ‘paredes Lennon’ têm sido mostras dessa influência.

As ‘paredes Lennon’ mais não são do que paredes físicas, muros ou outras estruturas sólidas na via pública, onde transeuntes deixam post-its de todas as cores com mensagens de caráter político e social, exigências àqueles que os governam, apelos à democracia e ao respeito pelos direitos humanos ou slogans de incentivo à continuação dos protestos.

Foram uma ‘arma’, por exemplo, nos protestos pró-democracia em Hong Kong, a região administrativa especial chinesa em luta contra a erosão da democracia e a acelerada integração na República Popular da China.

Em Hong Kong, “a primeira ‘parede’ surgiu no local dos protestos que ocorreram na zona Central [o centro financeiro do território]. Uma delas recebeu esse nome e a imprensa difundiu-o”, recorda ao Expresso Evan Fowler, nascido no território há 42 anos.

O termo pegou e passou a ser usado de forma generalizada para identificar qualquer espaço usado pelos habitantes de Hong Kong — não só nos locais dos protestos, mas por todo o território — para expressarem, por escrito, a sua oposição à crescente influência do regime de Pequim sobre o território.

“Cada campus universitário tinha ‘paredes Lennon’ muito dinâmicas. Recordo-me também de ver muitas em passagens subterrâneas”, diz o cofundador da publicação digital Hong Kong Free Press.

Uma ‘parede Lennon’ no interior de um restaurante de Hong Kong ISAAC LAWRENCE / AFP / GETTY IMAGES

“As ‘paredes Lennon’ apareceram pela primeira vez em 2014, no início dos protestos Occupy”, continua Fowler, referindo-se à campanha de desobediência civil liderada por estudantes — também conhecida por Revolução dos Guarda-Chuvas — que deu origem a manifestações participadas por centenas de milhares de pessoas.

“A ideia de escrever mensagens em papel apareceu organicamente em locais de protestos estudantis. Ter sempre consigo e usar post-its coloridos para escrever lembretes ou apontamentos durante o estudo é uma prática muito comum entre os estudantes de Hong Kong, tanto no ensino secundário como universitário”, diz Fowler.

“No primeiro dia do protesto de 2014, lembro-me de vê-los a aparecer espontaneamente em locais de protesto, basicamente em qualquer lugar que pudesse ser usado como um quadro de mensagens. Nessa altura, os manifestantes estavam desesperados por transmitir as suas razões de queixa àqueles que consideravam estarem apáticos e também aos órgãos de informação internacionais que sentiam estar a ignorar os problemas que os cidadãos de Hong Kong enfrentavam.”

Os apelos tiveram especial eco na ilha vizinha de Taiwan, igualmente assediada por Pequim de forma crescente.

https://twitter.com/lnachman32/status/1367758109834244099

À medida que se iam multiplicando, as ‘paredes Lennon’ passaram também a ser um alvo da polícia de Hong Kong, orientada em fazer desaparecer das ruas toda e qualquer posição antigovernamental.

No Parque John Lennon, em Havana (Cuba), uma escultura do músico, do artista cubano José Villa Soberón, espera por companhia num banco de jardim CHRISTOPHER HUGHES / WIKIMEDIA COMMONS

Este tipo de espaços prolifera noutras zonas do mundo envoltas em convulsões populares, como Myanmar. Curtas mensagens em papel colorido surgem, muitas vezes, em paragens de autocarro e pontes.

É o caso das imagens abaixo, numa travessia sobre o rio Irrawaddy, no estado de Kachin (norte), com posições contra o golpe militar de 1 de fevereiro de 2021 que afastou a líder pró-democracia Aung San Suu Kyi do poder.

https://twitter.com/MayWongCNA/status/1366261558993559555

Mas Lennon porquê?

Na origem deste tipo de ‘telas de contestação’ está a ‘parede Lennon’ original, localizada em Praga, a capital da Chéquia, na pequena Praça do Grão Priorado, em frente à Embaixada de França. Nos anos 1960, este muro — propriedade da Ordem Militar Soberana de Malta — era decorado com poemas e mensagens de amor, escritas a giz e em contexto de passeios românticos.

As inscrições de cariz político não abundavam, naquele país comunista, exceção feita as épocas de agitação, como em agosto de 1968, quando cinco países do Pacto de Varsóvia, liderados pela União Soviética, invadiram a Checoslováquia.

Uma das primeiras pinturas sobre John Lennon, na parede que haveria de ficar batizada com o seu nome, em Praga (foto de 1981) DAVID SEDLECKY / WIKIMEDIA COMMONS

O primeiro desenho alusivo a John Lennon remonta a 1980 (o autor do graffiti é desconhecido). Nesse ano, a 8 de dezembro, o mundo chocou-se com a morte do carismático músico britânico, assassinado junto à entrada do luxuoso e centenário edifício Dakota, onde ele vivia com Yoko Ono, em Nova Iorque.

À época, vários países da Europa de Leste — como a então Checoslováquia —, satélites da União Soviética, lutavam para se libertarem dos tentáculos de Moscovo. Lennon e as suas músicas eram, neste contexto, símbolos da liberdade a que estes países estavam privados.

Escultura em bronze da cabeça de John Lennon com um olho coberto por uma flor, numa rua de Vilnius, capital da Lituânia GO VILNIUS

O espaço tornou-se uma tela ao ar livre, onde os visitantes podiam expressar preocupações, alertar para causas globais e os turistas podiam deliciar-se com uma galeria em permanente construção. A própria imagem de Lennon foi mudando de feições e mesmo sendo tapada por novas camadas de criatividade e contestação.

A aparência geral do muro já mudou muitas vezes. Na noite de 17 de novembro de 2014 — dia em que, 25 anos antes, começara a Revolução de Veludo, que levou ao fim do comunismo no país —, estudantes de arte pintaram o muro de branco, deixando visível uma curta mensagem no meio: “O muro acabou”. A Ordem de Malta apresentou queixa por vandalismo e os estudantes retrataram-se.

Quase cinco anos depois, a 22 de abril de 2019, no Dia da Terra, foi a vez do grupo ambientalista Extinction Rebellion branquear a parede, deixando à vista apenas porções da pintura que lá estava para formar a expressão “Klimatická nouze” (emergência climática, em checo).

Menos de um mês após a Rússia invadir a Ucrânia, surgiu no muro de Praga um retrato de Vladimir Putin com traços de Adolf Hitler MICHAEL HEITMANN / GETTY IMAGES

Já este ano, a presidência checa da União Europeia promoveu a iniciativa “The Freedom Wall” que levou artistas de países membros e também da Noruega e Ucrânia a redecorar o muro com pinturas alusivas ao tema “Liberdade e Energia”.

Um dos participantes, o artista plástico português Hugo Lami, licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, deixou no muro a imagem de um astronauta com o planeta Terra em forma de bola de cristal. “Para mim, o espaço é liberdade, já que não tem fronteiras e pertence a todos nós”, disse, em declarações à Rádio Prague International.

Sem critérios artísticos, muitas vezes a parede foi vandalizada com desenhos desrespeitosos. Em outubro de 2019, na sequência de queixas, a parede foi renovada e novas regras foram adotadas: não é mais permitido pintar a parede com spray, só são permitidas inscrições nas zonas brancas, a lápis ou giz, e está proibida a presença de artistas de rua.

Em julho de 2021, abriu portas, na capital checa, o museu The Lennon Wall Story, dedicado ao local e aos Beatles em geral. A parede física fica a dois minutos a pé — em constante mutação, mas com a mensagem de sempre na sua essência: ‘Façam o amor, não a guerra’. John Lennon não diria melhor.

(FOTO PRINCIPAL A imagem de John Lennon, no mítico muro que o homenageia, em Praga, vai-se adaptando aos desafios do mundo, como a pandemia MICHAL CIZEK / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de outubro de 2022. Pode ser consultado aqui