‘Kafala’, o sistema laboral do Catar que faz do sonho pesadelo

As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante

A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG

A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.

Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.

“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.

“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”

Catar lidera nas reformas

O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.

O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.

Que querem os nativos?

“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.

“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”

Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”

À parte a pressão interna­cional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Nas ruas do Irão há dois meses, protestos soam cada vez mais a revolução

Não é a primeira vez que os iranianos contestam o regime em público. Mas um conjunto de características distingue os protestos atuais de jornadas anteriores. Emmanuel Macron já defendeu estar em curso uma “revolução”. E com futebolistas iranianos solidários com os protestos, o Mundial do Catar pode provocar ondas no país, com os jogos da Team Melli a darem pretexto para ajuntamentos populares, que é tudo o que o regime dos ayatollas quer evitar

Há exatamente dois meses, o Irão começava a revelar sintomas do desconforto que as regras apertadas da teocracia em vigor desde 1979 provocam numa fatia da população cada vez mais sonora. Em dezenas de cidades, milhares de pessoas começaram a sair às ruas em protesto contra a violência do regime, que acabara de ceifar mais uma vida — Mahsa Amini, curda de 22 anos, morreu a 16 de setembro, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos pela polícia da moralidade.

No Irão, protestar em público implica riscos acrescidos, dada a omnipresença nas ruas de forças zelosas da Revolução Islâmica, que investem sobre os transeuntes ao mínimo indício de desobediência — no caso de Mahsa, por não ter colocado corretamente o véu islâmico (hijab), de uso obrigatório para as mulheres.

Em 43 anos de vida que leva o regime dos ayatollahs, não é a primeira vez que os iranianos o questionam frontalmente. Quem observou jornadas de contestação anteriores — nomeadamente em 2009 (de cariz político) e 2019 (com reivindicações económicas) diz, porém, que os protestos atuais diferem de todos os outros.

Encabeçados por mulheres

“São os protestos contínuos mais amplos e duradouros do período pós-revolucionário”, diz ao Expresso Ali Vaez, diretor do programa do Irão do International Crisis Group. “Também são únicos em dois outros aspetos: são liderados por mulheres e têm o objetivo unificado de exigir o fim da República Islâmica”, não apenas de pedir reformas.

O protagonismo das mulheres decorre do caso concreto que incendiou as ruas e da forma como as iranianas se põem no lugar de Mahsa Amini. Na sequência da divulgação do caso, duas outras mulheres — jornalistas — foram levadas pelas forças do regime: Nilufar Hamedi, que investigou o caso no hospital onde Mahsa foi internada; e Elahe Mohammadi, que cobriu o seu funeral, na cidade de Saqqez, no Curdistão iraniano.

Estima-se que cerca de 15 mil pessoas já tenham sido presas nos últimos dois meses de protestos. Segundo a organização Iran Human Rights, com sede em Oslo, na Noruega, a repressão aos protestos provocou pelo menos 326 mortos, incluindo 25 mulheres e 43 menores.

Moharebeh, um crime polivalente

Para muitos detidos, acusados de moharebeh, o futuro é sombrio. Ao Expresso, o iraniano Mohammed Eslami, investigador na Universidade do Minho, explica o significado da palavra: “Moharebeh quer dizer ‘lutar contra Deus’ ou contra valores divinos. Diferentes países islâmicos interpretaram moharebeh de forma diferente. Mas no Irão, todos os ataques terroristas, danos causados ao património público, atividades armadas e roubos à mão armada, tráfico de estupefacientes e violação são classificados moharebeh. Todos esses crimes são punidos com pena de morte”.

Domingo passado, as autoridades emitiram a primeira sentença de morte, no contexto dos protestos — que Teerão rotula de “motins” —, contra um indivíduo não identificado, acusado de “incendiar um edifício do Governo, perturbar a ordem pública e conluio para realizar crimes contra a segurança nacional”, além de moharebeh e “corrupção na Terra”.

Deputados pedem execuções em massa

A sentença seguiu-se a uma posição, no Parlamento iraniano (Majlis), de 227 dos 290 deputados. A 6 de novembro, apelaram ao sistema judiciário para acelerar processos em que estejam implicados “inimigos de Deus” (como qualificam os manifestantes) e equacionem a possibilidade de execuções em massa, como forma de punir, intimidar e silenciar a oposição.

“O regime ainda é capaz de muito mais brutalidade e repressão”, alerta Ali Vaez. “No entanto, preocupa-se com o opróbrio internacional. Portanto, é importante que a comunidade internacional deixe claro às autoridades iranianas que pagarão um preço alto se recorrerem à execução em massa de manifestantes como meio de acabar com o movimento.”

Um dos iranianos acusados de moharebeh é o rapper curdo Saman Yasin, intérprete de temas sobre a pobreza, a desigualdade, a injustiça e, implicitamente, a negligência das autoridades que governam o país.

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Acordo nuclear estagnado

Sem que a repressão aos protestos tenha atingido essa barbárie, o Irão enfrenta já a frontal oposição de países que, ainda há meses, se esforçavam para entabular um diálogo e alcançar um entendimento com Teerão. É o caso da França e da Alemanha, signatários do tratado internacional sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla inglesa).

Sábado, o chanceler da Alemanha enfureceu Teerão ao divulgar um vídeo na rede social Twitter. “Só posso dizer isto à liderança em Teerão: que tipo de governo são vocês se disparam contra os próprios cidadãos?”, questionou Olaf Scholz. “Queremos continuar a aumentar a pressão sobre os Guardas da Revolução e a liderança política.”

Dois dias depois, foi a vez do Presidente francês fazer análise política. “Algo sem precedentes está a acontecer. Os netos da Revolução [Islâmica, de 1979] estão a fazer uma revolução, e estão a devorá-la”, afirmou Emmanuel Macron. “Esta revolução muda muitas coisas. Não creio que haja novas propostas que possam ser feitas agora [para salvar o acordo nuclear].”

Os protestos no Irão irromperam numa altura em que a diplomacia internacional investia no sentido de dar uma nova vida ao JCPOA — assinado em 2015 e ferido três anos depois quando Donald Trump desvinculou os Estados Unidos desse compromisso.

“A questão dos protestos no Irão e as suas amplas dimensões internacionais fizeram com que os países ocidentais tomassem uma posição. A pressão da opinião pública, por um lado, e uma oportunidade para marcar pontos, por outro, fizeram com que os países ocidentais que são partes do JCPOA levantassem questões sobre os direitos humanos no Irão”, diz ao Expresso Javad Heirannia, investigador no Centro do Médio Oriente, da Universidade Shahid Beheshti, de Teerão.

“Com base nisso, os Estados Unidos anunciaram que a questão dos protestos e o apoio aos manifestantes iranianos é prioritária sobre o renascimento do JCPOA.”

Eleição israelita complica cenário

O espaço para negociações tornou-se ainda mais exíguo depois de as legislativas de 1 de novembro em Israel ditarem o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu.

No início de 2018, o então primeiro-ministro revelou estar em posse de “meia tonelada” de documentos sobre o programa nuclear iraniano, usurpados de forma clandestina por agentes da Mossad. Segundo Netanyahu, o material recolhido prova que a liderança iraniana mentiu durante o processo negocial que levou à assinatura do acordo internacional.

Hoje, os países ocidentais que assinaram o JCPOA “tentam retomar a questão nuclear relacionando-a com os documentos de Netanyahu e encontrar apoio para levar a questão nuclear do Irão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas”, opina Heirannia. “Os Estados Unidos não estão muito preocupados em reativar o JCPOA. E o Irão tenta impedir que o assunto chegue ao Conselho de Segurança com base nos documentos de Netanyahu.”

Festa da bola pode ser amarga

Dentro de quatro dias, o Mundial de futebol no Catar pode transformar-se em mais uma dor de cabeça para o regime de Teerão. A seleção iraniana — conhecida como Team Melli e treinada pelo português Carlos Queiroz — está apurada e tem vindo a dar mostras de solidariedade em relação aos manifestantes.

Recentemente, num jogo amigável, em Viena, contra o Senegal, Mehdi Taremi e companhia escutaram o hino nacional sem o cantar, de cara fechada e com um casaco preto desprovido de símbolos por cima do equipamento.

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Entre os jogadores iranianos mais inconformados com a violência com que o regime reprime os protestos está Sardar Azmoun, atleta do Bayer Leverkusen. A 25 de setembro, escreveu no Instagram: “Por causa das leis restritivas que nos foram impostas, na seleção, não devo falar… corro o risco de ser mandado para casa, mas não aguento mais! Vocês nunca serão capazes de apagar isto da vossa consciência. Que vergonha! Vocês matam tão facilmente. Viva as mulheres do Irão!”

A publicação foi apagada pouco depois e a sua conta eliminada. Quando voltou às redes, Azmoun pediu desculpa. “Tenho de me desculpar com os jogadores da seleção, porque a minha ação precipitada deixou os meus queridos amigos irritados, e alguns jogadores da seleção foram insultados pelos seguidores, o que não é justo de forma alguma. O erro foi meu.”

Boicotar ou incitar à rebelião?

Entre a pressão do regime para que os atletas obedeçam às regras e a consciência que os leva a defender os conterrâneos em luta por liberdade, exemplos como o de Azmoun diante da grande montra que é o Mundial, esvaziam o argumento de quem defende que o Irão devia ser impedido de competir como forma de penalizar o regime.

“Privar a nação de uma fonte de potencial alegria nestes tempos sombrios não serviria à causa do movimento [de contestação] e, na verdade, facilitaria a vida do regime, que está preocupado com a possibilidade de os jogos se transformarem em oportunidades para mais ajuntamentos que, por sua vez, possam ser combustível para provocar mais incêndios no país”, conclui Ali Vaez.

“Mas a equipa, que já está sob enorme pressão do regime, certamente encontrará uma maneira de demonstrar que está do lado certo da história.”

(CARTOON Mahsa Amini, a curda iraniana cuja morte está na origem dos protestos OSAMA HAJJAJ / CAGLE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Kamala Harris, a possível candidata que terá ainda de conquistar os Estados Unidos

A resiliência do Partido Democrata nas midterms, eleições que se projetavam como uma “onda vermelha” favorável aos republicanos, relançou o interesse à volta da corrida democrata às presidenciais de 2024. Com Joe Biden prestes a fazer 80 anos, o foco volta-se para Kamala Harris, a sua vice, que partilha com o Presidente taxas de aprovação… negativas

Caricatura da vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris GAGE SKIDMORE

“Era uma vez dois irmãos. Um deles correu na direção do mar; o outro foi eleito vice-presidente dos Estados Unidos. E nunca mais se ouviu falar de nenhum deles.” Esta curta história é uma piada atribuída ao norte-americano Thomas Marshall, que a contava para ilustrar a insignificância do cargo que desempenhou entre 1913 e 1921 — a vice-presidência dos Estados Unidos. Governava então Woodrow Wilson.

Com igual humor, Nelson Rockefeller, o n.º 2 de Gerald Ford entre 1974 e 1977, disse sentir-se em permanente estado de prontidão para acudir a “funerais e terramotos”. Já Benjamin Franklin, governador da Pensilvânia entre 1785 e 1788, sugeriu que se chamasse aos titulares do cargo “sua supérflua excelência”.

Nos Estados Unidos, a vice-presidência está longe de ser o posto mais cobiçado para quem ambiciona fazer carreira na política. “O cargo é muito ingrato e arriscado”, explica ao Expresso Germano Almeida, especialista em política norte-americana e autor de quatro livros sobre Presidentes dos EUA. “Não tem poder real e a sua função é, por definição, ‘negativa’. Ou seja, só se tornará importante se algo de errado e inesperado ocorrer com o Presidente.”

A anunciada presença da atual vice-presidente, Kamala Harris, em representação de Joe Biden, na tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, a 1 de janeiro de 2023, é exemplo da subalternização do cargo em relação ao inquilino da Casa Branca.

Os casos de JFK e Nixon

Além das funções de representação, e do voto de qualidade no Senado conferido pela Constituição — crucial num cenário em que haja empate a 50 senadores entre os dois partidos, como sucedeu desde 2020 e pode continuar até 2024 —, espera-se de um vice-presidente que se mantenha ‘em forma’ para a eventualidade de o Presidente morrer ou renunciar. Aconteceu, e tempos recentes, com Lyndon Johnson após o assassínio de John F. Kennedy, em 1963, e com Gerald Ford após a demissão de Richard Nixon, na sequência do escândalo Watergate, em 1973.

Em 1945, quando ascendeu à presidência após a morte de Franklin D. Roosevelt, Harry Truman teve de tomar decisões exigidas a um chefe de Estado experiente. “Teve de assumir a Casa Branca nos meses finais da II Guerra Mundial, tendo sido dele a ordem de envio das bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui”, recorda Germano Almeida.

Passadas as midterms para o Congresso dos EUA, terça-feira, e com o Partido Democrata (no poder) a revelar uma resiliência que as sondagens não conseguiram descortinar, a corrida do partido do burro às presidenciais de 2024 ganhou renovado interesse. A meio do mandato — e com Joe Biden prestes a atingir os 80 anos de idade (a 20 de novembro) —, quão sólida é uma possível candidatura de Kamala Harris à Casa Branca?

A democrata mais conhecida

Por ser a outra metade do ticket (a dupla Presidente e vice-presidente que vai a votos como um só), Harris, de 58 anos, surge como sucessora natural do mais velho Presidente a ser eleito. “Se Biden não voltar a concorrer à presidência em 2024, julgo que Kamala Harris será a favorita para ganhar a nomeação democrata”, diz ao Expresso Christopher Devine, professor de Ciência Política da Universidade de Dayton (Ohio), com livros publicados sobre a vice-presidência norte-americana.

“Isso não se deve necessariamente ao desempenho de Harris como vice-presidente, mas aos fundamentos de uma campanha para as primárias. Ela seria provavelmente a democrata mais conhecida a concorrer à presidência e não enfrentaria nenhum candidato óbvio. Teria o apoio do Presidente Biden, de muitos altos funcionários democratas e, quase de certeza, amplo apoio entre políticos e eleitores negros — o que, como demonstraram os casos de Hillary Clinton em 2016 e Biden em 2020, pode mais ou menos garantir a nomeação numas primárias democratas.”

BILHETE DE IDENTIDADE

  • Nome: Kamala Devi Harris
  • Data de Nascimento: 20 de outubro de 1964
  • Local de Nascimento: Oakland, Califórnia
  • Pais: Shyamala Gopalan (cientista indiana, na área do cancro da mama) e Donald J. Harris (professor universitário jamaicano, da área da economia)
  • Estado civil: Casada com o advogado Douglas Emhoff, desde 2014. Sem filhos
  • Formação académica: Curso de Direito, no Hastings College of the Law, da Universidade da Califórnia
  • Experiência profissional: Promotora, procuradora-geral e senadora pelo estado da Califórnia

Quarta-feira, na ressaca de uma derrota eleitoral que não lhe foi tão penalizadora como se anunciava, Biden anunciou que vai aproveitar as festividades de Natal para maturar, com a família, a possibilidade de se recandidatar. A decisão será comunicada aos norte-americanos no início de 2023.

“Diria que, neste momento, é altamente improvável que a nomeada presidencial democrata para 2024 seja Kamala Harris”, diz Germano Almeida. “Biden é mais provável, se nessa altura estiver em condições de saúde para tal; se não for o atual Presidente, apontaria outros dois nomes com mais condições políticas do que Kamala: o secretário dos Transportes, Pete Buttigieg, e o governador da Califórnia, Gavin Newsom.”

Quando tomou posse como vice-presidente, Harris fez história — e gerou entusiasmo — no país. Foi a primeira mulher eleita para o cargo e, ainda por cima, era negra e descendente de jamaicanos e asiáticos. “Sendo tudo isso, a verdade é que não representa qualquer desses segmentos no posto”, alerta Almeida.

“O flanco esquerdo do Partido Democrata queria que ela fosse mais radical, a ala moderada e centrista nem com Biden está plenamente satisfeita. Por último, Kamala recebeu do Presidente um dossiê muito complicado de gerir: a imigração e a pressão fronteiriça, tema em que esta Administração ainda não conseguiu marcar pontos.”

“Não venham” para o ‘el dorado’

No seu primeiro dia em funções, Biden derrubou dois pilares da política migratória de Donald Trump: suspendeu a construção de novos troços do muro na fronteira com o México e introduziu legislação com vista à legalização de quase 11 milhões de imigrantes que já viviam no país.

Ao rejeitar uma abordagem securitária do acolhimento de migrantes, Biden incentivou, ainda que involuntariamente, a formação de caravanas de migrantes com origem na América Central, que se fizeram à estrada, muitos a pé, rumo ao El dorado americano.

As imagens degradantes de milhares de pessoas à espera dias a fio para cruzar a fronteira entre EUA e México e dos centros de triagem no Texas sobrelotados, com migrantes instalados em jaulas coletivas, pressionaram a vice-presidente.

A 7 de junho de 2021, durante uma visita à Guatemala — um dos países de origem do problema migratório —, Kamala não criou ilusões a quem só queria fugir da pobreza: “Não venham!”, disse numa conferência de imprensa, ao lado do Presidente guatemalteco.

Migrantes: tema difícil para marcar pontos

“Kamala Harris ficou com uma das tarefas mais difíceis: lidar com os fluxos migratórios da América Latina para os EUA, tema explorado de forma exaustiva pelos republicanos, independentemente da dimensão desses fluxos”, diz ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor na Universidade Portucalense.

“A forma como a vice-presidente tem gerido esta questão, e sobretudo a forma mediática como o tem feito — a visita à Guatemala onde disse aos possíveis migrantes ‘Do not come’ ou as reticências em visitar a fronteira com o México —, tem gerado contestação na ala mais à esquerda do Partido Democrata’, acrescenta.

“Num tema que os EUA pretendem gerir de uma perspetiva estritamente securitária, sem tentar promover o desenvolvimento económico e social, e em que a análise deste está fortemente politizada e carregada de estereótipos, não parece possível que Harris consiga obter vantagens na gestão do tema para a sua carreira política.”

Outro dossiê quente que ficou a cargo de Harris é a questão do “direito ao voto”, tema que causa grande atrito com os republicanos e que muito dificilmente lhe permitirá apresentar trabalho.

“Parte do problema da vice-presidente Harris é que muitos problemas que foram negligenciados sob a Administração anterior ou assuntos sobre os quais ela e o Presidente Biden têm controlo limitado, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, criaram dificuldades económicas que prejudicaram a sua posição”, diz ao Expresso Joel K. Goldstein, professor de Direito na Universidade de Saint Louis (Missuri) e autor do livro “The White House Vice Presidency: The Path to Significance, Mondale to Biden” (2017).

“Harris tem sido uma das principais porta-vozes de conquistas e questões importantes do Governo Biden, como os direitos reprodutivos, a inclusão, a necessidade de responder às alterações climáticas. Isso deve proporcionar uma oportunidade para que ela fortaleça a sua posição enquanto desenvolve trabalho importante a nível governamental.”

A dois anos das próximas presidenciais, as taxas de aprovação não têm sido simpáticas para Harris. Há mais de um ano que tem ininterruptamente uma avaliação no vermelho. O reconhecido projeto FiveThirtyEight, que analisa sondagens, atribuía-lhe, no dia das midterms, 52% de “reprovação” e 39,5% de “aprovação”.

Os números baixos não lhe devem ser imputados em exclusivo. “É muito difícil para um vice-presidente manter popularidade alta quando o índice de aprovação do Presidente é relativamente baixo”, diz Goldstein. É o que acontece com Biden. “A popularidade de Kamala Harris vai andar sempre de braço dado com a do Presidente Biden, muito mais do que pela sua própria ação política”, acrescenta Ponte e Sousa.

“Harris não é muito popular entre os americanos, em geral. Mas é difícil dizer se isso é por caisa dela, ou especificamente da sua atuação como vice-presidente”, afirma Devine. “O mais provável é que esteja a sofrer de uma estreita associação com o Presidente, que tem números baixos. Se Biden não concorrer em 2024, e Harris sim, ela terá a oportunidade de se distinguir dele e concorrer por si própria. Mas, para o bem ou para o mal, a reputação dela estará ligada a Biden. É o dilema que qualquer vice-presidente enfrenta ao concorrer à presidência.”

Adversários de ontem, hoje aliados

Kamala e Joe não são aliados desde a primeira hora, ao contrário do que pode insinuar este descontraído vídeo divulgado no dia da vitória eleitoral de ambos. Foram adversários nas primárias democratas — em que participaram 29 candidatos — e, nos debates, protagonizaram momentos de oposição e tensão.

Na história dos Estados Unidos, não faltam exemplos reveladores do quão dependente estão os vice-presidentes do sucesso dos seus superiores para se aventurarem à Casa Branca. “É uma dependência quase total”, diz Germano Almeida.

“Foi assim com George HW Bush depois de dois mandatos de Ronald Reagan, foi assim com Joe Biden depois de dois mandatos de Barack Obama [com Donald Trump a seguir]. No caso do atual Presidente, o facto de ter sido o escolhido de Obama para vice, em 2008, foi determinante”, apesar dos 36 anos como senador pelo Delaware.

O ‘azar’ de Al Gore

“Nos tempos modernos, quase todos os vice-presidentes foram considerados futuros candidatos presidenciais depois de terem servido como vice-presidente”, conclui Goldstein. “Ser vice-presidente dá vantagem. Mas nunca se deve presumir que garante que se tornarão Presidentes ou candidatos à presidência.”

Almeida dá um exemplo recente de como o trampolim da vice-presidência nem sempre funciona. “Quem tinha tudo para ser um vice-presidente a ascender à presidência após dois mandatos bem-sucedidos era Al Gore [vice de Bill Clinton entre 1993 e 2001]. Teve mais 500 mil votos do que o opositor, mas nunca viria a tomar posse: perdeu no Colégio Eleitoral após três recontagens na Florida.” Especificidades de um sistema eleitoral único, aqui a dar vantagem a George W. Bush.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Cheias no Paquistão, uma tragédia a céu aberto à atenção da COP27

Se não existissem alertas de sobra em relação à crescente agressividade do clima, as históricas cheias do Paquistão ilustram como a vida pode tornar-se impossível. Depois de um terço do país ter ficado submerso, e enquanto a água não recua na totalidade, os números da calamidade não param de agravar-se — dos mortos ao surto de doenças

A cerca de 4000 quilómetros da estância egípcia de Sharm El Sheikh, onde decorre a 27ª sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), o Paquistão é uma tragédia a céu aberto, reveladora da vulnerabilidade do planeta face à crescente agressividade do clima.

“Durante 40 dias e 40 noites, caiu-nos em cima um dilúvio bíblico, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como geri-los”, disse em setembro passado o primeiro-ministro paquistanês, num emotivo discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Shehbaz Sharif referia-se às cheias inéditas que submergiram um terço do país desde meados de junho. A calamidade resultou da combinação entre chuvas da tradicional época das monções, particularmente fortes em 2022, e o efeito das alterações climáticas, que originaram um rápido degelo dos glaciares das montanhas do norte. A água que daí resultou engordou os caudais dos rios.

Com mais de 220 milhões de habitantes, o Paquistão contribui menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.

OS CINCO MAIORES POLUENTES
(% das emissões globais)

  1. CHINA: 29,18%
  2. ESTADOS UNIDOS: 14,02%
  3. ÍNDIA: 7,09%
  4. RÚSSIA: 4,65%
  5. JAPÃO: 3,47%

O Paquistão surge na 31ª posição, com 0,50% das emissões globais (e Portugal em 60º, com 0,14%). O Paquistão é, porém, dos países que pagam um preço mais pela desregulação climática. Cinco meses após o início das chuvas torrenciais, os números da tragédia não param de aumentar. Cinco exemplos.

1739

É o número de mortos contabilizados, desde 14 de junho, pela Autoridade Nacional de Gestão de Desastres, do Paquistão. Há ainda 12.867 feridos registados, decorrentes de incidentes relativos à queda das chuvas das monções ou a inundações provocadas pelo transbordo de rios.

A última atualização, tornada pública a 4 de novembro, detalha que, entre os mortos, há 353 mulheres e 647 crianças. Ou seja, mais de um terço das vítimas mortais são crianças.

A província de Sindh, no sul, é a mais atingida, com um total de 799 mortos. Esta região é atravessada de norte a sul pelo rio Indo — o mais comprido e mais largo do Paquistão —, cujo extravase afetou quase 15 milhões de pessoas.

https://twitter.com/NASAEarth/status/1581020523764404224

33.046.329

É a quantidade de pessoas diretamente afetadas pelas cheias. Perto de metade (14.563.770) vivem na província de Sindh e quase um quarto (9.182.616) no vizinho Baloquistão.

Para se ter noção da área alagada atente-se na dimensão do Paquistão (796.095 km²) e de Portugal (92.212 km²). Se ficou alagado um terço do território paquistanês, isso corresponde sensivelmente ao triplo do mapa português.

Dos 193 Estados-membros das Nações Unidas, 119 têm uma área terrestre inferior à extensão das terras paquistanesas inundadas.

A concentração de água parada expõe populações inteiras a ameaças acrescidas à saúde. Num relatório de 28 de outubro, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) alertou para o aumento de casos de malária “por causa da água parada, enquanto a incidência de diarreia é pelo menos cinco vezes maior do que o normal”.

Já se detetou um surto de dengue crescente, “com 74% dos casos maioritariamente reportados em áreas afetadas pelas cheias”. A destruição de casas e infraestruturas fez aumentar o velho hábito de defecar a céu aberto, com todas as consequências que isso traz ao nível de higiene, saúde pública e mesmo segurança.

2.288.481

É a quantidade de casas destruídas pelas inundações. As autoridades nacionais detetaram ainda 439 pontes danificadas, bem como 13.115 quilómetros de estrada intransitáveis.

As casas, em particular, colocaram milhões de paquistaneses de mão estendida na fila da assistência humanitária. Localidades inteiras passaram a viver em tendas, muitas delas doadas ao abrigo de mecanismos de ajuda internacional. Em Bholari, por exemplo, nasceu “a cidade de tendas Recep Tayyip Erdogan”, disponibilizada pela Turquia e batizada com o nome do Presidente do país.

9.400.000

São os acres de área de cultivo que ficaram encharcados (1 acre = 0,40 hectares).

Neste país que é o quinto produtor mundial de algodão, as cheias danificaram ou destruíram 40% da colheita anual dessa fibra, segundo uma estimativa da Iniciativa Better Cotton.

Esta organização, que promove boas práticas ao nível do cultivo de algodão em 21 países, não prevê “escassez de oferta este ano, embora os impactos provavelmente perdurem no próximo ano”.

No impacto económico desta calamidade, há ainda o registo de 1.164.270 cabeças de gado perdidas nas enxurradas de água e lama, privando milhões de pessoas desse meio de subsistência.

27.000

É a quantidade de escolas destruídas ou danificadas, que privam mais de dois milhões de crianças de irem à escola. Nas zonas mais atingidas pela intempérie, alguns estabelecimentos de ensino ficaram apenas com o telhado à tona, esperando-se que sejam precisos meses até que as águas recuem totalmente.

Para ajudar as crianças deslocadas a lidarem com os traumas provocados pela experiência, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) instalou 500 Centros de Aprendizagem Temporários, em colaboração com os departamentos educativos provinciais.

Estes centros “oferecem às crianças uma oportunidade de se encontrarem com outras crianças num ambiente seguro e protegido, onde podem brincar, aprender e ser crianças novamente”, descreve a UNICEF. Além de constituírem mais de um terço das vítimas mortais, estima-se que 16 milhões de crianças paquistanesas tenham a vida voltada do avesso por causa das inundações.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Perfil de Itamar Ben-Gvir, o extremista que devolveu o poder a Netanyahu

Nasceu numa família secular, mas a Intifada radicalizou-o. O ódio aos árabes tornou o seu partido a terceira força de Israel

Itamar Ben-Gvir WIKIMEDIA COMMONS

Há que recuar uns bons 30 anos para se vislumbrar um raio de esperança no conflito entre israelitas e palestinianos. Em 1993, os Acordos de Oslo prometeram a paz, mas esse desejo não foi unânime. Dois anos depois do histórico aperto de mão entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, um jovem israelita era a voz da oposição e surgia, numa reportagem televisiva, a mostrar o símbolo de um Cadillac arrancado à respetiva viatura: “Chegámos ao carro dele, vamos chegar a ele também.”

“Ele” era o primeiro-ministro de Israel. Semanas depois, Rabin seria assassinado por um judeu radical, dentro do carro, após participar num comício pela paz em Telavive. Já o jovem que vaticinara o massacre de Rabin era Itamar Ben-Gvir, que na passada terça-feira foi o grande vencedor das eleições legislativas.

Líder do Poder Judaico, formação de extrema-direita que concorreu integrada na lista do Partido Sionista Religioso, Ben-Gvir foi o motor do forte crescimento deste último, que passou de seis para 14 deputados, tornando-se a terceira maior bancada do Parlamento (Knesset). “Ainda não sou primeiro-ministro”, afirmou na noite eleitoral, em reação à votação histórica na sua aliança. “Mas trabalharei para todo o Israel, até para aqueles que me odeiam.”

No poder e no tribunal

Ben-Gvir é deputado desde 2021, quando Israel levava já dois anos de instabilidade política, com sucessivas eleições a ditarem frágeis Governos. O crescimento do Partido Sionista Religioso permitiu desbloquear o impasse a favor da direita e consagrou o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu (Likud, partido mais votado), que está a ser julgado por corrupção. Juntam-se-lhe os partidos ultraortodoxos Shas e Judaísmo Unido da Torá.

A ascensão do partido extremista de Ben-Gvir, que advoga a supremacia judaica num país onde 20% da população é árabe, desencadeou alertas de que um ‘Israel judaico’ está a superiorizar-se ao ‘Israel democrático’. Para esta perceção muito contribui o percurso pessoal e político do chefe.

Nascido a 6 de maio de 1976 em Mevasseret Zion, subúrbio de Jerusalém, numa família secular com origem no Curdistão iraquiano, Ben-Gvir radicalizou-se em tenra idade, com a eclosão da primeira Intifada palestiniana, em 1987. “Houve um assassínio, depois outro, e depois outro, e isso fez-me começar a pensar sobre como resolver a situação”, contou.

“Morte aos árabes”

Aderiu a um movimento associado ao partido ultranacionalista Moledet, que encorajava a “transferência” dos árabes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para outros países da região. O caráter voluntário do processo não agradou a Ben-Gvir, que desertou e aderiu ao Kach, um partido racista fundado pelo rabino norte-americano Meir Kahane, que viria a ser rotulado de organização terrorista em Israel.

Hoje, o Poder Judaico, de Ben-Gvir, define-se como partido kahanista e antiárabe. Pugna pela “expulsão” dos israelitas árabes que não demonstrem lealdade ao país. Terça-feira, apoiantes eufóricos com os votos recebidos fizeram a festa gritando “morte aos árabes” e “morte aos terroristas”, que na sua mundividência são sinónimos.

Em defesa de terroristas

A militância extremista fez com que Ben-Gvir fosse dispensado do serviço militar aos 18 anos. Levou-o também ao banco dos réus dezenas de vezes. Em 2007 foi condenado por incitamento ao racismo. O contacto com a justiça despertou-lhe o interesse por estudar Direito. Como advogado, notabilizou-se na defesa de judeus acusados de terrorismo e crimes de ódio.

Na prática, Ben-Gvir é um ‘soldado’ ao serviço da ocupação israelita da Palestina. Vive no colonato de Kiryat Arba, na sempre tensa Hebron (Cisjordânia), com a mulher e cinco filhos. Pendurada em casa chegou a existir uma foto de Baruch Goldstein, o colono que, em 1994, matou a tiro 29 muçulmanos que oravam no Túmulo dos Patriarcas, em Hebron.

Em 2020 Ben-Gvir retirou a foto para facilitar o diálogo com partidos da direita, renitentes em normalizar a participação política de um homem que glorificava a matança de inocentes. “Tirei a foto de Goldstein para impedir um Governo de esquerda”, diria.

No início deste ano passou a andar com segurança reforçada. Alvo de ameaças de morte, nunca se privou de provocar, como quando visitou o bairro árabe de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, em contexto de violência entre árabes e judeus. E passeou-se na Esplanada das Mesquitas enquanto Israel atacava a Faixa de Gaza.

A eleição desta semana revelou que o ódio que Ben-Gvir irradia lhe vale muita popularidade.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui